Eternos: Mitologia Grega no Espaço Sideral com mais filosofia e menos ação – Por Filippo Pitanga

Cineasta oscarizada por cinema independente pega desafio de blockbuster da Marvel e leva mitologias da Antiguidade para o Espaço Sideral a perguntar: Vale a pena salvar a humanidade?

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Enfim a super produção “Eternos”, um dos filmes mais recentes da nova fase do MCU, ou universo cinematográfico Marvel (editora de super heróis em quadrinhos), que desafiou a crise das salas vazias de cinema durante a pandemia, chegou agora no conforto do lar através da Disney Plus. E é uma surpresa bastante gratificante anunciar que foi uma grande injustiça o enorme efeito chicote que o filme sofreu por tentar levantar questões importantes de representatividade e políticas afirmativas identitárias, passando como se fosse apenas panfletário – o que não é.

O filme idealizado por Chloé Zhao, ganhadora do Oscar 2021 de melhor filme e direção por “Nomadland” (leia aqui), é uma excelente iniciativa de refrescar esta seara cansada de “super-heróis”. Tem seus probleminhas, sim, mas os riscos que assume e os lugares que explora são muito mais interessantes do que a abordagem tradicional típica da Marvel. Aliás, o único maior defeito dele é essa constante obrigação de ter que tentar se encaixar sempre no MCU, pois ele funciona completamente sem isso.

Um filme que pega a máxima "Eram os deuses astronautas?" e leva adiante, associando a escala evolucionária à nossa capacidade de fabular mitos e crenças acerca da nossa própria gênese de forma antropofágica, o que se torna tão poderoso quanto o poder de criar e destruir, seja com potencial renovador ou predatório (paradoxo este profundamente interligado ao cerne da raça humana).

Sem falar na ótima metáfora do esquecimento e da loucura como elementos disruptivos da crença, um forte poder de indiferença e de apagamento mais destrutivos do que qualquer bomba. Algo que permeia a linguagem da produção, como de representatividade desde os bastidores, já que há várias línguas e dialetos pronunciados no filme como um mundo verdadeiramente ultraconectado (até mesmo a inovadora e exemplo poderoso de primeira personagem do MCU com deficiência auditiva na pele de Lauren Ridloff de "The Walking Dead" e "O Som do Silêncio").

Acrescentando-se ainda outros elementos linguísticos redimensionados como as mitologias citadas, com suas próprias bagagens prévias de significados, desde nomes como Cersi (Circe, feiticeira da mitologia grega), Thena (Athena, deusa greco-romana da Guerra) e Ikaris (Ícaro, lendário personagem que tentou voar perto demais do sol) etc.

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E não só no conteúdo, mas esteticamente, usando uma opção bem esperta de realçar os "efeitos especiais" da inteligência, tecnologia e cultura sobre os da Força e poder físico. Muito inteligente o uso plástico de fractais como algoritmos linguísticos nas roupas, cenários e até nas "magias" (que nada mais são que tecnologias ainda inexplicáveis pra nós. Misticismo pode ser ciência sem resposta). Muito inteligente o design de produção com amarelo, azul e verde predominantes, cores representantes da energia pura e do fogo, do céu e espaço ou mesmo da natureza e da vida, respectivamente.

Sem falar na coragem de inverter as polaridades e transformar os "mocinhos" em "vilões" piores do que o obstáculo inicialmente proposto, e depois tornar este, inclusive, simbioticamente associado por analogia aos próprios protagonistas (derrotar o outro é derrotar uma parte de si próprios).

E essa coragem está no filme inteiro, como no uso da diversidade do elenco distribuída de forma livre nas raízes históricas revisitadas da própria humanidade, como nos mitos geradores desde a Mesopotâmia à Babilônia, da Índia à América Latina e até aparições especiais do Rio de Janeiro e Iraque...

Onde o filme se aproxima da Marvel, ele sai perdendo, mas onde ele se afasta e abraça a mitologia do mundo ele ganha mil camadas enriquecedoras (inclusive nas formas de representar visualmente os Impérios da Antiguidade: deslumbrantes os Jardins Suspensos da Babilônia, por exemplo). E isso dito independente das 2 irônicas cenas pós-créditos e personagens extras revelados...

Por falar nisso, muito audacioso o uso da gigante atriz Angelina Jolie numa personagem controversa e de difícil identificação (apesar da possibilidade de redenção ser bem previsível), quase como se fosse participação especial, bem como o suporte do insignificante (mas idolatrado) Kit Harington de "Game of Thrones" -- não obstante ser ótima a escalação de um ator de porte como mero par romântico propositalmente insignificante da protagonista (ao menos por enquanto...).

O filme quase não possui os tradicionais vícios da Marvel (e de Hollywood) como alívios cômicos fixos (apesar de uma ou outra boa piada) ou mesmo de cenas de batalha injustificadas ou sem perdas e pontos de virada necessários pro roteiro. Ainda que valha muito a menção honrosa ao coadjuvante indiano Karun, que serve de alter ego para a própria diretora Chloé Zhao (autorreferência e autoparódia crítica ao mesmo tempo).

Karun jamais deixa de ter uma câmera na mão, acompanhando absolutamente tudo o que acontece ao seu redor, não obstante o perigo ou o limiar ético de se filmar (em muito aludindo como metalinguagem às técnicas de filmagem de docuficção que notabilizaram a própria cineasta a ganhar o paradigmático Oscar de filme e direção por "Nomadland" em 2021), bem como permite um diálogo diegético com o que está sendo filmado. Assim, desafia estereótipos e clichês como a pegada documental da sua linguagem assinatura, bem como as exigências externas por mais ação ou pela quebra da quarta parede para a inserção do olhar da cineasta.

O filme é uma bela homenagem a uma revisão do racha de culturas mundiais na gênese da humanidade. Uma Babel revisitada. A pluralidade da tão alardeada diversidade do elenco de fato está a serviço da história (com "h" minúsculo e da metalinguagem com "H" maiúsculo). Não adianta ver o filme como escapismo da Marvel. Tem de abraçar a pretensão dos códigos e símbolos sobrepostos para ele alcançar a intenção da Chloé Zhao.

Pode-se dizer, também, que Chloé se confunde às vezes com a necessidade de deixar as personagens quase máquinas, por seus conceitos originais, e de demorar a humanizá-los conforme avançam, o que demora a quebrá-los em pedaços com mais identificação com o público... Mas ao mesmo tempo vai chegando lá pelas beiradas, como justamente com os já referidos personagens Karun, com a Thena interpretada por Jolie e até com a primeira família não binária do MCU do personagem Phastos (Interpretado por Brian Tyree Henry da série "Atlanta").

Não era pra serem personagens "agradáveis". A única ali com real empatia é a protagonista Cersi (Gemma Chan, acostumada na carreira dela a ser escalada como robôs ou aliens -- altamente recomendo-se aqui a série britânica dela "Humans"). Assim como é bastante irônico os 2 personagens mais poderosos da equipe serem os mais "repelentes" e de difícil identificação. Podemos ver isso como mais um ato ousado de Chloé Zhao como subversão dela ao sistema do MCU a que está atada o tempo inteiro.

Por fim, mas não menos importante, a mania megalômana dos filmes de ação e de super-heróis de que o mundo sempre deve ser ameaçado com a destruição total antes do fim de fato traz reflexões estimulantes desta vez -- não sendo apenas o perigo da tática procedural de "monstro da semana". Tanto abre brecha para outros desafios no MCU como um todo, como Galactus O Devorador de Mundos, como filosoficamente falando: viria a verdadeira ameaça de dentro, e não de fora? Afinal, valeria à pena salvar a humanidade do seu destino apocalíptico tão previsto desde a Bíblia? "Eternos" é mais um filme a se acrescentar a esta ponderação através da arte, sem deixar de lado a diversão.

**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.