Exame de fezes – Por Lelê Teles

Discursos compulsivos e sem nexo são sintomas comuns em ditadores em final de jornada, ocorrem quando o sujeito percebe o início do fim

Foto: Reprodução/Facebook Jair Bolsonaro
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“Eu sou igual ao cocô de vocês”, o Necrarca.

Não se tem um minuto de paz.

Respiro fundo, de olhos fechados, ergo e baixo os ombros... giro o pescoço.

Uma borboleta, leve e lívida, esfrega as asinhas transparentes nas flores do jarro, uma ave grita numa árvore: “ah...”.

O sol adormece com ternura e languidez.

Abro os trabalhos: belisco o meu chope, lambo a bruma espúmica no bigode hídrico (aahhhhh), devolvo o copo à mesa...

E sou surpreendido pela vinheta: “tan tan tan tan tan tan taaaannnn”.

Na tevê, câmeras e microfones giram em torno de um globo.

Todas as atenções se voltam para o aparelho: “vem bomba aí”, diz o garçom, flanela na mão e os olhos na tevê, fingindo limpar a mesa limpa.

Na mesa ao lado, um barbudim congela o movimento de acender o cigarro, o sinal fica vermelho na rua, os carros param, para o vento; tudo para.

Entra o gravata, voz grave: “o presidente Fulano de Tal é internado às pressas no Hospital das Forças Armadas e pode passar por cirurgia no intestino... mais informações...”.

O sinal abre, o cigarro acende, o vento venta.

O garçom, retomando o movimento mecânico de esfregar a mesa, não passou pano pro Necrarca: “quem diria que um soluço seria a solução, hein. Internado, ele não tem tempo de fazer merda”, gracejou o garça.

Pronto, não se falou em outra coisa.

Os mascarados, todos vacinados, mantendo uma certa distância uns dos outros, forjavam diagnósticos.

Como não sou chegado ao senso comum, fiz uma chamada de vídeo ao sapientíssimo Cacique Papaku, gastroenterologista prático e fisiologista holístico de mão cheia.

Papaku pediu-me um relato dos sintomas do sujeito; ei-lo:

O homem começou a arrotar em entrevistas, em seguida vieram os refluxos, logo depois os soluços...

O sujeito mostrava-se incomodado.

Careteando ao falar e emitindo bisonhos esgares de boca, nitidificava que os gases aprisionados ameaçavam erupção, provocando irritantes dores abdominais; por isso, a criatura figurava como um baiacu inchado, as papadas infladas, as pálpebras bêbadas, as órbitas dos olhos em esbugalhos.

“Nesse estágio de desconforto intestinal”, explica-me o sempre atento Papaku, “o suco gástrico, num randômico vai e vem, provoca queimação e traz um ácido amargor à boca, como se o sujeito cagasse ao contrário”.

Fiz uma cara de enojado.

“Mas estamos a falar de sintomas”, alertou-me o sábio de penachos, “vamos à causa, como foi a semana do constipado?”.

Eu disse que a coisa não foi nada boa, que a cobra fumou, que o Senado, a PF, o STF, o TSE e o diabo estão nos calcanhares do sujeito.

Que ZeroUm, ZeroDois, ZeroTrês e ZeroQuatro estão no bico do corvo e que a primeira-dama também está no circuito; tem PM metido em compra de vacina, reverendo tomando chope, mimimilitares blefando ameaças e tem até um áudio fantasma assombrando a Casa de Vidro; há fortes rumores de corrupção vindo à tona, é como se um bueiro transbordasse...

Apelei para uma metáfora escatológica.

“E o Lula, e o Petê?”, perguntou-me o selvagem, como se fosse uma conversa entre dois diabos.

Expliquei que Lula desponta para vencer no primeiro turno e o Petê não para de receber filiações.

“Aí está. A maior parte dos problemas intestinais é psicossomática”, cortou-me Papaku.

“A gente sente enjoo quando vai falar em público, fica com o estômago cheio de borboletas quando está apaixonado, sentimos um gélido estremecimento no abdômen quando nervosos... o cagaço sempre vem quando a gente tá com o cu na mão. Esse me parece ser o caso do nosso impaciente”.

Achei apressado, desconfio de diagnósticos instantâneos; ainda mais assim, sem a presença do enfermo.

Falei que o Necrarca tentou um tratamento precoce, tomando água com o copo invertido, mas que parece não ter funcionado.

“A merda, depois de feita, não tem como desfazê-la, é impossível descagar. Mas o grande mal é a merda presa, ela provoca humores e, tratando-se de um político com poder e com transtornos, isso é um perigo. A coisa pode feder quando ele sair do hospital”.

Fiquei em silêncio para que ele pudesse desenvolver.

“O intestino”, franqueou-me, “é o caminho mais curto entre a boca e o ânus; desregulado, não se sabe mais o que é um e o que é o outro, e o sujeito pode ser acometido tanto por um vômito anal quanto por uma diarreia oral, conhecida como logorreia”.

A logorreia, tratou-me de explicar, é um distúrbio mental que leva a pessoa a proferir discursos compulsivos e sem nexo. Como um Napoleão de hospício. Discursos compulsivos e sem nexo são sintomas comuns em ditadores em final de jornada, ocorrem quando o sujeito percebe o início do fim.

Quis saber quanto à cirurgia, se é grave, se resolve...

“Ele pode tomar sal de frutas, um emético e um laxante, mesmo com copo invertido, isso ajuda a aliviar a coisa momentaneamente. Agora, um cirurgião é um exagero. Abri-lo e fechá-lo só vai remediar; o mal permanecerá lá dentro, porque o mal não está no estômago, está no cérebro”.

Fiz cara de espanto. Merda no cérebro é coisa de caranguejos, siris e goiamuns...

“Na medicina oriental, filho do vento, o abdômen é como um segundo cérebro, ele ocupa um lugar quase sagrado, é o centro nevrálgico do ser humano; os japoneses o chamam de hara. Para os hinduístas e budistas ele se chama manipura, e é o terceiro dos sete chakras, também chamado de chakra do plexo solar, responsável pela energia emocional. Entende? Mil demônios gritam dentro da cabeça do Necrarca: o ódio dos desafetos, a revanche dos desprezados, a culpa pela inaptidão, o medo da tranca...”.

Saquei tudo.

O Necrarca tá se cagando de medo, mas paradoxalmente o seu corpo se recusa a expelir as fezes, como se acionasse um mecanismo de defesa. Constipado, ele se enfeza. Enfezado ele parte para a agressão, para a calúnia, para as mentiras e para o seu delírio autocrático.

Quando criança, vou repetir essa história, o pequeno ZeroZero arrancava as fraldas, se lambuzava de fezes e as comia.

A mãe o levou a uma copromancista. A feiticeira, futucando as fezes do garotinho, vaticinou que o sujeito, sem dúvidas, era um coprófilo e que a merda entraria e sairia de sua boca ad aeternum.

As fezes do infante também indicavam que o pequeno se tornaria político, fazendo na vida pública o que faz na privada.

E que, por fim, como num círculo do inferno de Dante, após a descarga do barqueiro Caronte, acabaria afogado entre estrumes e estercos, todo cagado, como uma estátua de praça.

A futuróloga tem futuro.

Oremos ao senhor.

*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.