First Cow: A Primeira Vaca da América – Por Filippo Pitanga

Novo filme a aportar nos cinemas brasileiros (e em breve no streaming) exemplifica muitas coisas que estão acontecendo hoje no cenário socioeconômico pandêmico usando poucas palavras e poderosas analogias imagéticas

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Alerta de gatilhos!... Mas parece ontem que este crítico viu um dos melhores filmes somente a ser lançado esse ano nos cinemas, e que estreou mundialmente no Festival de Berlim do ano passado, na última grande aglomeração oficial ainda segura da sétima arte, antes de a pandemia fechar tudo no mês de março. E tudo isso sob aclamação de aplausos numa sala com capacidade para quase dois mil assentos ocupados! – Algo inviável comercialmente no Brasil antes mesmo da pandemia, cujo público já não conseguia lotar salas nem de 500 lugares para blockbusters, quiçá para filmes independentes ou experimentais de baixo orçamento.

Pois o longa-metragem era “First Cow – A Primeira Vaca da América” (2020) de Kelly Reichardt, cujo novo subtítulo em português pode assustar alguns dos leitores, fazendo parecer que se trata de algo diverso do que a intenção original de sua diretora, mas que de fato a simplicidade da proposta oculta camadas muito mais profundas do que uma tradução literal e piegas poderia apreender...

Se o leitor acompanhou até aqui, com certeza deve estar dando um merecido crédito por caminhar de mãos dadas com esta coluna. No entanto, decerto, após ler tantos compartilhamentos sinceros aqui, às custas de se perder nossa amizade pela extrema franqueza, a última coisa que os leitores experientes desta coluna pensariam seria julgar um título pela capa e presumir que “First Cow – A Primeira Vaca da América” poderia se tratar de uma animação infanto-juvenil da Disney como “Nem que a Vaca Tussa”, ou mesmo um documentário sobre a gênese do capitalismo e a importância da agropecuária...

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Quando toda uma sala com capacidade de quase duas mil pessoas faz chover aplausos num exigente Festival de Berlim, no mínimo há de se avaliar que este trabalho não ficaria em interpretações tão unidimensionais quanto a encerrada por noções pré-concebidas. Tanto que, sem falsos exageros, Kelly Reichardt foi amplamente considerada a grande esnobada do Oscar por toda a mídia especializada, e já vinha sendo apontada por este próprio crítico como a injustiçada da vez, como em coluna de 29 de fevereiro de 2020 e 12 de janeiro de 2021.

Mesmo não estranhando a ser ignorada pelas premiações de grande porte, é nos festivais independentes que a cineasta costuma ganhar acolhida, levando todos os prêmios possíveis. E nem é como se troféus tipo o Oscar fossem tão inclusivos assim, mesmo diante das mudanças recentes... Afinal, todos podemos lembrar de quando a atriz Natalie Portman fez um protesto no tapete vermelho com um vestido que continha inúmeros nomes de diretoras esnobadas pela Academia no ano passado – o que gerou a repercussão toda a impulsionar indicação dupla na categoria, como neste ano concorreram Chloé Zhao (que acabou ganhando inúmeras estatuetas, incluindo melhor filme com “Nomadland”) e Emerald Fenell (ganhadora de roteiro original com “Bela Vingança”).

Mas Kelly definitivamente está em outro patamar. O nível de crítica ao próprio modo de viver norte-americano combina com o decolonialismo tão em voga nos Festivais Europeus, como foi o caso da recepção a “First Cow” na Berlinale 2020, como a partir do aparentemente simples fio condutor da história de dois caubóis que começam um inusitado negócio de venda de biscoitos adocicados logo no ambiente misógino do Velho Oeste…

Um excelente exemplo da densidade decolonialista contida nos roteiros de Reichardt pode ser captado pela seguinte cena: A certa altura da projeção, um chefe britânico serve chá chinês para a visita de um chefe indígena, a quem ele irá apresentar a vaca recém-importada da Europa (a vaca referida no título “First Cow”), cujo leite está sendo roubado pelo melhor amigo do caubói chinês para fazer biscoitos!

O fato de termos figuras subalternizadas a subverter a ordem social das instituições ali representadas é algo muito poderoso. Desde a participação oficial nos ritos políticos de personagens indígenas (seja licença poética da diretora ou não), inclusive na pele da mais recente atriz-assinatura de Reichardt, Lily Gladstone (da ótima parceria anterior em “Certas Mulheres”), ao fato de chineses estarem presentes de mais de uma forma: Tanto no produto colonizado à mesa (lembremos que o primeiro levante norte-americano contra a colonização britânica foi justamente a Revolta do Chá de Boston, e temos ali um chá chinês), quanto na presença do protagonista também chinês, que está dois passos à frente da burocracia dos líderes locais – e não através de oportunismo, mas sim de afetos e niilismo. 

Outro aspecto marcante são as autorreferências da diretora em relação às suas próprias obras. Mas não de modo simplesmente Tarantinesco, como se estivesse reduzindo ao fato de todos os filmes estarem no mesmo universo cronológico... E sim o fato de reiterar citações visuais e semânticas para além da estética, e fazendo com que o mero ato de revisitar aquela cosmologia amplia as interpretações sobre os mesmos signos. Desde situações a usos de câmera e planos complementares, como a lenta panorâmica inicial para o rio que vai descortinando um navio e os usos comerciais de tais códigos, enquanto que há muito mais para contar a partir as circunstâncias deste rio do que os olhos podem ver a princípio – quase como se continuasse reflexões de sua filmografia inteira.

Por exemplo, se já havíamos experimentado a amizade desconstruída entre dois homens em “Old Joy” (2006), agora começamos a nova trama pelo disparador de dois esqueletos humanos abraçados numa cova rasa, de modo a nem sabermos qual seria o gênero das duas ossadas e nem a razão para terem morrido abraçados daquele jeito. Qual teria sido a causa da morte? A idade? Teria sido um romance? São pessoas do mesmo gênero ou diferentes?

Estas indagações caminham de mãos juntas com outra referência ao próprio universo, pois quem descobre esta cova rasa no presente contemporâneo é uma personagem feminina com uma companhia canina que fareja de longe o rastro daqueles corpos tão antigo que vieram à tona por mudanças ambientais e explorações humanas desenterrando o passado. E este arquétipo também já foi explorado por Reichardt como em “Wendy e Lucy” (2008), que era protagonizado justamente por outra de suas atrizes-assinaturas, Michelle Williams, ao lado de uma cachorra que dava nome ao título. – e sendo também mais um filme adaptado de obras de Jonathan Raymond, assim como “First Cow”.

É desta forma que viajamos para o passado dos dois esqueletos, a princípio sem saber quais virão a ser suas identidades, mas norteando a história a partir do ponto de vista dos dois caubóis que tinham tudo para ser rivais em meio à cruel exploração comercial da terra ‘desbravada’, mas passam a ser melhores amigos contra tudo e todos e num sistema desigual e pouco clemente. Nada mais precisa ser dito, nem a natureza nem o desfecho de sua relação, nem se permanecem estritamente fraternais como irmãos, ou se algo mais romântico poderia se desenvolver entre eles. A graça está justamente nas sutilezas e subtexto com que a diretora trabalha, e nas lacunas intencionais para que tiremos a conclusão que bem nos aprouver.

Até poderíamos levantar a questão suscitada por alguns cinéfilos se o filme poderia acabar incorrendo, mesmo que sem querer, num registro um pouco condescendente da gênese do capitalismo nos EUA, através do refinamento do recurso do leite da vaca roubado para gerar biscoitos lucrativos... Porém, como dito mais acima, não podemos ignorar as raízes das bagagens históricas de nossos caubóis. O lugar de fala advém de uma postura contra-hegemônica e anti-exploração do oprimido, tanto que os biscoitos não são caros e nem pretendem ser vendidos de forma elitista, sendo comuns a todos que almejassem num preço justo.

A distribuição livre dos recursos, ainda mais de uma vaca que vinha traumatizada da viagem colonizadora, e que só dava o leite para os anti-heróis deste filme por ser tratada com carinho e humanidade, diz muito de como não se ver o mundo apenas como commodity. Não há no roteiro uma tentativa propriamente de destruir o sistema opressor. Lembrando que o filme marca o espaço temporal em 1820 no Oregon, com a principal fonte de renda vinda da caça predatória de castores, e que um dia tais recursos acabariam e, como nômades, eles teriam de passar para um próximo território. Ao invés disso, o discurso do filme perpassa fontes renováveis de socialização, mesmo que ainda através de um produto, mas cuja satisfação mirava muito mais no bem estar do que na exploração desenfreada – uma virada da terceira via atual onde até o capitalismo abarcou características do socialismo, por exemplo.

Eita reviravolta! Isso são séculos de exploração econômica, ideológica e cultural de territórios norte-americanos e europeus, revisitada por dramaturgias contemporâneas, e ora sendo decolonizada pela arte. As ancestralidades não eurocêntricas, outrora subalternizadas no mundo, estão dando a volta por cima através do protagonismo de novas narrativas com a ajuda do cinema!

Confira abaixo Coletiva do filme First Cow de Kelly Reichardt, com a presença da própria e do ator Orion Lee, realizada na competição pelo Urso de Ouro do 70º Festival de Berlim em 23 de fevereiro de 2020, e ora republicada na Revista Fórum:

Kelly explica que a história foi baseada em livro escrito por Jonathan Raymond, “The Half Life”. Mas vai além do segmento literário, e continua investigando a masculinidade, agora no velho oeste, algo que ela gosta muito… Ela explica que parte da motivação para este filme foi egoísta da parte dela fazer esta adaptação por sentir muita falta dos personagens do livro que tanto ama: “Não sei se faz sentido ou se nós é que fazemos o sentido acontecer”. O filme é sobre amizade e comunidade e como as pessoas se encaixam…e até amizade com animais. Alguns padrões e relações vão além da economia… E às vezes basta uma boa ideia para se ter uma participação nesta comunidade…

Sobre a parte real da história americana do oeste, em 1820, a cidade estava no mapa por causa da viabilidade econômica da trilha dos castores, que eram caçados livremente, e geravam pele para chapéus, também geravam óleo e etc. E as pessoas da época se estabeleciam por lá dizendo que esse comércio duraria para sempre (isso é até dito no filme)… Kelly diz que seria o equivalente a um CEO de uma empresa se mudar para um novo território e rejeitar algo do lugar pra onde se mudou e com o qual teria uma fonte natural de renda… Mas ainda assim era possível ter fontes de Economia alternativa (como os dois protagonistas vão demonstrar durante o filme).

Sobre a pergunta em relação à vaca do filme e do título representar uma possível metáfora para a Gênese do capitalismo, Kelly responde que não foi essa a intenção original. Era só uma história sobre a amizade com os animais… Mas, claro, existe sim a questão econômica. E aquele rio que aparece no filme sempre serviu pra comércio. E muitas novas economias se formavam porque a terra era abundante…

O ator Orion Lee acrescenta que os castores eram gratuitos na natureza… Parecia livre caçá-los, mas era um monopólio controlado. Não era livre. Os bancos comandavam. Não podia fazer nada sem o intercâmbio deles.

Perguntada sobre influências do gênero e território do filme western como Hawkins, Leone e etc, Keilley lembra como referência para ela da cineasta Ida Lupino também… E ela diz que é da Califórnia, por isso teve outras influências. E aqueles filmes falavam de matar índios… Algo que estava completamente fora de seu interesse. E há outras referências, pois leu livros inclusive de mulheres sobre isso. E os enquadramentos apontando para outras direções acabam mostrando algo diferente pra cada história, então sempre miramos para algo novo quando uma pessoa diferente liga a câmera.

Sobre edição (que ela própria faz) ela diz que para ela é sobre construir e desconstruir e desmontar pra reconstruir… Ela gosta muito disso como cineasta.

Perguntada sobre a A24, cujos produtores dela estavam com ela desde antes de se criar a A24, e que lançaram 2 filmes dela antes da existência da produtora… E só depois que foram pra a A24. Ela diz que não sabe o que aconteceria se não tivessem uma ótima curadoria de projetos e escolhido trabalhar nos filmes dela desde o começo. Kelly elogia que o trabalho deles na escolha de projetos é realmente orientado pela arte e são muito talentosos.

Sobre a dificuldade para as mulheres no mercado de trabalho do cinema, Kelly disse que é difícil falar sobre isso, que precisaria pensar melhor na pergunta, pois é uma pergunta muito importante para ela, e agradece por ter sido perguntada. Mas ela chega a dizer que tenta trabalhar duro para ajudar a mudar essa perspectiva de dificuldade para as mulheres. E sempre fez cinema independente, então sempre se sentiu meio outsider.

Sobre detalhes de época como chapéus, roupas, adereços… Eles foram investigando e descobrindo gente que fazia de fato esses apetrechos. Sem falar nos jargões e linguagens da época que foram bastante treinados. A van da produção tinha muita gente compartilhando informação cultural (ela brincou)...

O ator Orion Lee diz ainda que eles tinham um acampamento com reconstrução histórica. Aprenderam muito lá, sobre detalhes, ofícios… Até pequenas coisas, como manter a madeira seca para a fogueira, etc...

E sobre contracenar com os outros atores, como a maravilhosa Lily Gladstone (que já trabalhou com Kelly em outros filmes como “Certas Mulheres”), ou mesmo com o coprotagonista John Magaro, o ator Orion Lee diz que quando leu o roteiro (em sua visão pessoal) achou que os 2 protagonistas eram 2 nerds não violentos (diferentes de como aquela terra era), e que se tornam amigos por essa identificação pacífica. E não é como se o seu personagem fosse mais comunicativo que o outro… mas sim que, para sobreviver, e por ser um imigrante chinês no velho oeste americano, ele teve de desenvolver uma linguagem de comunicação própria (algo que o personagem de John, por ser americano nato, não teve de passar).

Kelly complementa que John pensou que seu personagem era como David Crosby (quase um hippie)...

**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.