Jornalismo sentado (e deitado) e a bomba semiótica do general Villas Bôas – Por Wilson Ferreira

Em 2018 a grande mídia interpretou o tuíte de Villas Bôas apenas como “repúdio à impunidade”. Ela se enlameou no psiquismo do Brasil Profundo, açodando o ódio, intolerância e reacionarismo da extrema direita

Foto: Edição de imagens
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O livro do general Villas Bôas é muito mais uma bomba semiótica de contrainformação do que uma ameaça real, como teme a grande mídia: três anos depois, repercute o tuite do general fazendo ameaças veladas ao STF no julgamento do habeas corpus de Lula. Analistas temem “tensões” e “rupturas institucionais”. Porém, são imaginárias porque elas já aconteceram: o golpe militar já houve e não foi noticiado, golpe híbrido (operação psicológica) iniciado em 2008 com a “cabeça de ponte” da questão indígena de Raposa Terra do Sol. Um livro laudatório, orgulhoso pelo sucesso da operação e, ao mesmo tempo, destinado aos jornalistas sentados (e deitados) como revela o ato falho da chamada do programa “Cobertura Especial de Domingo” da Globo News – a hegemonia dos jornalistas que trabalham sentados (e deitados, como mostra a chamada) diante de telas e que perderam o faro investigativo dos que trabalhavam em pé, em campo. Jornalistas que mordem qualquer isca. Até mesmo um Programa de Imunização, sem cronograma ou vacinas. 

Um solo jazzístico de bateria acompanha a entrada da jornalista Cecília Flesch nas dependências da Globo News. Ela passa o cartão corporativo na catraca, caminha rápido falando ao celular. Corta. Plano detalhe do fone sendo tirado e colocado sucessivas vezes da mesa em que a jornalista está sentada, diante da tela do computador. Na sua mesa, rabisca anotações em blocos de notas e com um marca-texto destaca frases de algum release jornalístico. 

Corta. Agora ela está sentada em um sofá na redação da Globo News com um notebook no colo enquanto faz um chamado no celular. Surge um lettering: “Ela passa a semana apurando”... Outro corte... Agora vemos a jornalista deitada no mesmo sofá, atenta ao inseparável celular enquanto balança ansiosamente uma caneta. Continua o lettering: “Para preparar você para a próxima semana”. Corta de novo... Continua o solo de bateria, agora com mais instrumentos percussivos. Cecília Flesch cruza um corredor, sempre atenta à tela do celular, que a conduz ao estúdio. Dos cortes rápidos, passamos para uma sequência em slow motion, quando a jornalista senta-se diante das câmeras.

Esse é o vídeo da chamada para o novo programa “Cobertura Especial de Domingo”. Ele é praticamente um documento etnográfico sobre o que a grande mídia entende por Jornalismo: uma atividade não muito diferente de qualquer outra função corporativa.

Ver esta chamada é lembrar do profético diagnóstico do, infelizmente, falecido pesquisador Ciro Marcondes Filho. No seu livro do início desse século, chamado “A Saga dos Cães Perdidos” (a metáfora do Jornalismo que perdeu o faro e se perdeu), apontava que as rápidas transformações tecnológicas estavam dividindo o campo jornalístico em duas categorias de profissionais: aqueles que trabalham sentados (limitando-se ao tratamento de releases de agências e assessorias de comunicação) e os que trabalham em pé – a minoria que vai a campo investigar.

No caso da chamada Globo News, uma novidade: jornalista que trabalha deitado...

A chamada descrita acima é evidência da autodescrição que o jornalismo corporativo faz de si mesmo: a hegemonia dos profissionais que trabalham sentados. Os signos das imagens sincopadas com um solo de bateria ao fundo (lembrando o filme Birdman com uma bateria quase subliminar acompanhando as cenas tensas de Michael Keaton) não é a da tensão investigativa – velha imagem que moldou uma geração de estudantes de jornalismo: o repórter como um herói investigativo, arredio, cínico, desconfiado, sempre farejando um furo no underground da sociedade.

A tensão signicamente representada na chamada Globo News é a da “apuração”, “checagem”, que se confundem com “investigação” – aliás, o selo “Jornalismo Investigativo” tornou-se uma grife do produto noticioso corporativo para se distinguir das “fake news”. 

Jornalismo de correia de transmissão

Cecília Fesch “apura” ou “investiga”: “consultando documentos”, “verificando informações”, tudo para “confirmar as informações que recebe”. Confunde apuração com investigação. Sentados, jornalistas viram terminais de releases que serão apenas editadas (antigamente, falava-se que isso era “gillette press”). Atividade tautológica: checar a conexão entre as palavras e as coisas, perdendo de vista conjunturas, contextos, cenários, causalidades e, principalmente, a essência do questionamento investigativo: quem ganha com essa informação que está chegando pelo meu celular, através da tela do computador ou por aquela voz ao telefone?

Em postagem anterior discutíamos que este jornalismo sentado é perfeito para o jornalismo de correia de transmissão: aquele jornalismo de ponto eletrônico ou de correia que transmite os scripts das chefias dos aquários das redações, que edita vazamentos e pautas pré-estabelecidas de informantes - clique aqui.

É didático percebermos a reação desse jornalismo sentado e de correia de transmissão às duas últimas bombas: a primeira, o relato do general Eduardo Villas Bôas no seu livro (“General Villas Bôas: conversa com o comandante”, da FGV Editora) de que no dia 2 de abril de 2018, Villas Bôas discutiu a ideia com a cúpula do Exército de admoestar o Supremo Tribunal Federal, que em dois dias iria julgar um pedido para evitar a prisão de Lula, condenado em segunda instância no caso do tríplex do Guarujá – o que resultou na postagem em rede social com ameaças veladas ao STF.

E a segunda, o sonho da “marcha da imunização” começa a se desvanecer com a paralisação no Rio de Janeiro e ameaça em outras cidades: não há vacina suficiente nem para os primeiros grupos prioritários – apenas 2,4% da população foi vacinada, enquanto novas variações da Covid-19 começam a circular pelo país. Desde que o dublê de general e ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, dar o pontapé inicial enviando pacientes contaminados para hospitais de outros estados em meio ao caos da rede de saúde no Amazonas.

Santa ingenuidade...

Em 2018 o jornalismo da grande mídia interpretou o tuíte de Villas Bôas apenas como um “repúdio contra a impunidade”. A grande mídia já havia se enlameado no psiquismo do Brasil Profundo, açodando o ódio, intolerância e reacionarismo da extrema direita para se vestir de amarelo e ir para as ruas. Por que não, então, também se aliar aos militares? Era o bate bumbo do antipetismo e do ativismo judicial.

Santa ingenuidade, Batman! Agora, os mesmos analistas e apresentadores que disseram isso em 2018 falam agora em “pressão contra o STF”, mostrando em infográficos a “resposta” do ministro Edson Fachin qualificando como “intolerável e inaceitável”... Com um atraso de quase três anos... 

Sejamos investigativos: quem ganha com essa suposta ingenuidade dos jornalistas sentados (e deitados)? O livro do general Villas Bôas parece ter um efeito calculado dentro da atual guerra semiótica de informações. É uma verdadeira bomba semiótica!

Senão, vejamos. Desde as “manifestações antidemocráticas”, da ameaça de um filho de Bolsonaro quando falou em fechar o STF com um cabo e um soldado, até os “300 de Brasília” apontando rojões contra o Supremo, tanto a mídia corporativa como a chamada progressista alertam para uma possível “ruptura institucional”, de uma suposta tensão entre o golpismo de Bolsonaro com a sobriedade da cúpula do Exército e assim por diante.

A questão é que o “golpe militar” não foi e nem será noticiado pelos jornalistas sentados. Sob as aparências de um suposto conflito de Bolsonaro com o comando do Exército e idas e vindas de falas que, ora distensionam, e ora tensionam (guerra criptografada), o consórcio Exército-mídia-mercado já chegou ao poder e já deu o seu “golpe”. Tudo na “caneta”, na legalidade.

Desde a reação militar em 2008 às políticas do governo nas demarcações das terras indígenas na Raposa Serra do Sol, foi iniciado um conjunto de operações psicológicas (guerra híbrida) que culminou com o golpe de 2016 e, hoje, 11 ministros militares, além de 6.157 militares da ativa e reserva ocupando cargos no governo – sobre isso clique aqui.

Para os militares, Raposa Serra do Sol foi, numa concepção de guerra, a “cabeça de ponte” de um ataque generalizado não só às demarcações e homologações de terras indígenas no Brasil, como o início de uma guerra híbrida para garantir a “segurança nacional” através de uma “paralisia estratégica”: penetrar no sistema organizacional do país inteiro e provocar o colapso não de uma frente e a captura de um ou outro oponente, mas da captura de um país inteiro. Domínio total de espectro.

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*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.