Lira e onipotência inexistente – Por Marcelo Uchôa

Não existe autoridade onipotente em um Estado democrático de direito. Que caminhe o impeachment!

Arthur Lira e Jair Bolsonaro - Foto: Palácio do Planalto
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Não é desconhecido de ninguém que o cometimento de crime de responsabilidade sujeita o presidente da República à hipótese do impeachment. A denúncia, que pode ser oferecida por qualquer cidadão, deve ser apresentada à Câmara dos Deputados, que autorizará ou não a instauração do processo, e, sendo o caso, encaminhará a acusação ao Senado Federal para apreciação e julgamento. Esses comandos gerais estão dispostos nos artigos 85 e 86 da Constituição, em combinação com os artigos 14 e seguintes da Lei 1079/50 (lei do impeachment), de modo que a Constituição e a lei reconhecem à Câmara e ao Senado a competência para decidir sobre o impeachment presidencial, não havendo margem para ficcionar que esta prerrogativa possa ser apropriada em forma de superpoder ou força suprema pelo presidente da Câmara.

Como chefe da Casa que recebe a denúncia, o presidente da Câmara tem autoridade para instalar o rito formal do processo, não para resolver sua substância. Não por acaso, o § 2º do artigo 218 do Regimento Interno da Casa alude à verificação de requisitos estabelecidos no § 1º para o recebimento da denúncia, mas estes não são mais que a própria “denúncia assinada pelo denunciante e com firma reconhecida, acompanhada de documentos que a comprovem ou da declaração de impossibilidade de apresentá-los, com indicação do local onde possam ser encontrados, bem como, se for o caso, do rol das testemunhas, em número de cinco, no mínimo”. Requisitos formais.

É evidente que mesmo protocolar esse despacho deve revestir-se de prudência, afinal, discussão da envergadura fatalmente afetará a governabilidade executiva, a dinâmica legislativa, a vida política, mas tampouco o desfecho em si do questionamento pode condicionar-se à mera liberalidade do presidente da Câmara, sob pena da aferição da responsabilidade da mais alta autoridade da República ficar, na prática, constrita a uma pessoa, não ao Parlamento, como prevê a ordem constitucional. No Brasil, essa compreensão distópica alcançou nível de escândalo. No último 30/06, dezenas e dezenas de entidades e pessoas da sociedade civil, partidos políticos e parlamentares apresentaram um superpedido de impeachment unificando os mais de 120 pedidos anteriores que dormitam à mesa do presidente da Câmara e este já anunciou que não o analisará. Está correto isso?

Lógico que não está. Uma vez presentes os requisitos do § 1º do artigo 218 do Regimento Interno, o presidente da Casa sequer pode omitir-se de despachar sobre a denúncia, pois o § 3º prevê um recurso a Plenário, cujo direito será inviabilizado se ele pura e simplesmente ignorar seu dever de manifestar-se fundamentadamente (por inferência legal) sobre o recebimento. Porém, no caso concreto, nem inadmitir a denúncia pode.

Com base em que se pode justificar que o presidente da Câmara prive do crivo dos pares, os quais em conjunto formam a Casa constitucionalmente escolhida para exercer juízo político de admissibilidade de impeachment, uma peça de denúncia de 270 páginas de fundamentação fático-jurídica, subscrita por tantos autores, elencando 23 gravíssimas acusações de crimes de responsabilidade cometidos pelo presidente da República, relacionados a quase todos os incisos do art. 85 da Constituição? Acusações de infrações que dizem respeito à harmonia entre os poderes, à sintonia federativa, à segurança interna, ao zelo à Constituição, aos direitos individuais, sociais e políticos, ao cumprimento das leis e às determinações judiciais, à atenção à probidade na administração, inclusive à austeridade na guarda e emprego do dinheiro público, e, sobretudo, à gestão executiva sobre uma crise pandêmica que já matou 523 mil brasileiras e brasileiros? Impossível.

Se o presidente da Câmara resiste a empreender senso institucional aos requerimentos que a sociedade faz ao Parlamento, ignorando, inclusive, o eco de centenas de milhares de pessoas que têm ido às ruas manifestar sua irresignação, cabe à Justiça intervir para que sua arbitrária inação não aniquile o direito de cidadania, nem inviabilize as investigações e responsabilizações que precisam ser feitas. E não se diga que, em assim procedendo, estará o Judiciário intervindo em assuntos próprios do Legislativo, porque é até mesmo para viabilizar o exercício da competência legislativa que a intervenção se faz necessária. Não existe autoridade onipotente em um Estado democrático de direito. Que caminhe o impeachment!

*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.