Manhãs de Setembro e Ponto Zero: Produções brasileiras nos streamings – Por Filippo Pitanga

Plataformas como Amazon Prime Video e Netflix estão cada vez mais adquirindo obras brasileiras e ampliando a representatividade nacional no cardápio.

Divulgação
Escrito en OPINIÃO el

Nesta semana foi anunciada uma nova iniciativa da Netflix trazendo muito mais filmes e séries brasileiras, prometendo, a partir deste mês, não só mais produções originais, como também um acervo de novos clássicos do acervo recente nacional. Alguns destes cults já estão disponíveis, como “Boi Neon” de Gabriel Mascaro (2015), “Tatuagem” de Hilton Lacerda (2013) e os documentários de Maria Augusta Ramos, como o multipremiado mundialmente “O Processo” (2018).

Mas, a partir deste mês de julho, estaremos vendo “Estômago” de Marcos Jorge (2007) e “Shaolin do Sertão” de Halder  Gomes (2016), além de originais Netflix como “Emicida: AmarElo – Ao Vivo” de Fred Ouro Preto (2021), que é o show na íntegra e de forma complementar ao documentário previamente lançado “Emicida: Amarelo – É Tudo Pra Ontem” (2020), que abordamos em coluna anterior (clique aqui).

E não é só a Netflix. Outras plataformas de streaming também estão fazendo este movimento, como a Amazon Prime Video, tanto em cults como “Ponto Zero” de José Pedro Goulart (2015), quanto com produções originais, vide a série “Manhãs de Setembro” de Luís Pinheiro e Dainara Toffoli, protagonizada pela cantora Liniker, além de grande elenco, como Karine Teles, Paulo Miklos, Thomas Aquino e Gero Camilo. – sobre os quais iremos nos debruçar de forma mais profunda logo abaixo.

Na contracorrente do cinema nacional atual, temos aqui uma obra estética e com misto de surrealismo imagético de Buñuel com crônica familiar de Nelson Rodrigues: “Ponto Zero” de José Pedro Goulart não é um trabalho fácil para um realizador. Na direção oposta ao esperado, o filme ousa em imagens e temas com a seguinte premissa estrutural: o cinema pode prescindir da fala e diálogos?

Bem, desde que o cinema mudo ganhou cores e som no início do século passado, alguns cineastas ainda tentaram se debruçar sobre estas questões principalmente de linguagens imagéticas. Vide Chaplin que, mesmo diante do fim do cinema mudo, escolheu conscientemente continuar a filmar seus filmes em P&B e sem som/diálogos durante anos e anos, assim como muitos continuam até hoje, há de exemplo os prêmios para “O Artista” em 2011.

José Pedro Goulart, em seu primeiro longa-metragem, teve duas ideias bem claras: A primeira sobre a vida comum de um jovem silenciado pelas circunstâncias ao redor, como muitos jovens tidos como nerds deslocados são... E a segunda ideia materializada como um acidente que pode mudar tudo, o ‘ponto zero’ do título. Na verdade, não é sobre o acidente em si, e sim o momento de escolha de qualquer pessoa na vida onde todas as suas experiências se reúnem na formação da personalidade, e obrigam a assumir responsabilidades para o resto de sua vida como um ser pleno.

O diretor realmente reflete com primor algumas seqüências das mais liricamente belas do ano em imagens que substituem qualquer fala do garoto central, quase sempre calado. Como há de exemplo o prólogo/epílogo numa longa tomada do universo, como se o jovem protagonista fosse um astronauta tocado apenas pelas ondas de rádio da Terra, e de repente se tornasse um mergulho numa piscina da alma do rapaz, brincando imageticamente de “Eram Deuses Astronautas?”.

Outras ideias também são muito expressivas, como fazer no olhar do jovem todo o trânsito de veículos na rua ser invertido de ré, como se sua inocência ainda fosse na contramão do mundo; e igual força têm as pedaladas de bike através de cenas do filme com outros personagens, sempre invisível. Noutras vezes, o asfalto é retratado como céu. Tudo muito lúdico e belo, com um quê surrealista de Buñuel. E não apenas no olhar da câmera, porém também nos sentidos ampliados principalmente pelos efeitos sonoros. O som aqui ganha destaque, seja nas transmissões de rádio que permeiam a história de mais de uma forma, ou o barulho dos carros, ou mesmo o peso da chuva caindo sobre a cidade alagada, transbordante, outra coadjuvante importante no desenrolar da trama; água como sinônimo de fonte de vida e de morte na natureza.

Por outro lado, como dito, o filme é claramente construído através de dois mundos: O de construção da personalidade do jovem, com uma mãe carente traída pelo pai negligente, e o do tal ‘acidente’ como ponto de ruptura que botará os ensinamentos à prova. E, de fato, as ideias em torno do cotidiano de formação do protagonista acabam superando as ideias que se seguem ao acidente, independente da beleza de filmagem numa chuva torrencial do fatídico evento do ponto zero.

Há tentativas de inserções muito válidas de questões familiares ‘Nelson Rodriguianas’, propondo que o amadurecer precoce do garoto terá de fazê-lo encarar cedo alguns destes fardos da vida que advém com responsabilidades na vida ‘do outro’. Um bom exemplo disso é o desejo sexual, que marca muito da transição entre a juventude e a vida adulta, delineado pela imposição de consequências, de obrigações e respeito.

Respeito pela/o parceira/o, como belamente o cineasta procura representar na culpa carregada pelo jovem através de uma bela mulher com que começa a alucinar. Este não entendimento em saber lidar com tais fatores causa uma depressão necessária para, no fundo do poço, poder reencontrar e se reconhecer na afirmação ou negação dos defeitos de seus pais, mais semelhantes consigo do que poderia pensar.

Todos estes fatores poderiam ser melhor trabalhados ou integrados da metade em diante da projeção, na quebra abrupta de uma dinâmica rítmica antes mais lúdica na narrativa, mas que não tira o grande valor das tentativas de José Pedro em ousar... Pelo contrário, apenas realça os contrastes. Grande empreitada de um diretor promissor, necessário para a diversificação do cenário atual, que vem a verter a experiência que já possui de curtas-metragens, em parceria com Jorge Furtado, agora vertida para longas.

Já o seriado “Manhãs de Setembro”, produção original da Amazon Prime Video, foi inspirado a partir da música homônima da saudosa Vanusa, que, aliás, é até personagem nos episódios através da voz da consciência da protagonista, na pele de Liniker, uma jovem mulher trans que recebe a visita de sua ex-companheira (Karine Teles), com um filho a tiracolo (Gustavo Coelho), sobre o qual ela nunca sequer soube da existência antes da transição.

Por falar nisso, é notável a qualidade do elenco. Bastante experiente no audiovisual brasileiro, no cinema e na TV, vemos o casting se materializar na nossa frente num passe de mágica e talento através de grandes artistas como Karine Teles (“Benzinho” de Gustavo Pizzi, 2018) e Gero Camilo (“Carandiru” de Hector Babenco, 2003). A dupla citada, por exemplo, pode parecer começar apenas como meros coadjuvantes de luxo, mas vão roubando aos poucos todas as cenas de "Manhãs de Setembro". Karine dá matizes viscerais e de fácil identificação, ao invés de cair na tentação de vilanizá-la só porque está numa posição de antagonismo em relação a Liniker. Assim como Gero, como melhor amigo da protagonista e casado com personagem de Paulo Miklos, conseguindo se dividir entre o núcleo da protagonista e de Karine, com igual empatia pelo lado humano e falho de ambas.

Esta é uma série cuja intenção é extremamente nobre, com muito potencial, mas que acaba padecendo às vezes de um roteiro desencontrado e com pouco desenvolvimento nas partes mais interessantes, apesar da boa química das personagens de Liniker e seu filho interpretado por Gustavo Coelho.

Mas vale ressaltar um ponto extremamente alto: é quando Liniker canta que não tem para ninguém. Aliás, as melhores narrativas, de fato, estão nas letras cantadas e performances de Liniker, que evoluem a trama muito melhor do que os diálogos propriamente ditos... É indubitável que Liniker é uma das maiores intérpretes de nossa geração, e sua voz é tão potente que transforma qualquer letra em mise-en-scène sem esforço algum.

Como atriz, ela está crescendo aos poucos, e poderia ter recebido mais estímulo se sua personagem talvez ganhasse mais episódios do que os meros 5 para desenvolver tanta coisa, que por vezes fica na superfície. Seja a própria relação com o filho, ou o namoro com o personagem do ótimo ator Thomas Aquino (“Bacurau” de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, 2019) – também esquecido perto do final e negligenciado num triângulo amoroso tirado do nada e sem ser previamente trabalhado (mesmo com a ótima Clebia Sousa, também de “Bacurau”).  

Ponto também para a participação da sempre irresistível Linn Da Quebrada (“Corpo Elétrico” de Marcelo Caetano, 2017, e “Bixa Travesty” de Kiko Goifman e Claudia Priscilla, 2018), mas que poderia ter recebido bem mais enfoque com seu enorme potencial dramatúrgico e química com Liniker – até porque é importantíssima, sim, a representatividade de um elenco trans, mas quando não se tridimensionaliza mais nenhuma personagem para além da protagonista, podemos ter desperdiçados talentos e triangulações importantes que as personagens teriam entre si.

Outro ponto não tão explorado a contento, e que pode acabar parecendo descartável, foi a própria narração da Vanusa como peso na consciência da personagem de Liniker, ainda mais quando as subtramas não se encontram da melhor forma, pois existem sobre um débil fiapo monocromático de um só tom. Algo que, mais uma vez reitera-se aqui, não poderia ter sido desenvolvido em tão poucos episódios. Algo que se torna ainda mais frustrante principalmente após o ótimo terceiro episódio ("Gersinho"), que havia sido um marco na evolução das personagens, mas que infelizmente volta a retroceder tudo de novo quando parece precisar ‘segurar’ a trama e correr com o desfecho em dois episódios a mais.

Pena, pois o potencial está lá. E, por mais que tenha sido dito ser apenas uma minissérie com início, meio e fim, espera-se realmente que eles dêem o potencial merecido para desenvolver um pouco melhor a partir de uma segunda temporada o que já foi plantado na primeira, pois a matéria-prima vale e muito a pena.

**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.