Maradona e Pelé: a crueldade dos juízes das caixas de comentários, por Henrique Rodrigues

Morto e vivo julgados pelos puritanos virtuais. O tribunal infantil e maniqueísta está em sessão. Já não se pode morrer que a multidão afoita vem execrar o defunto, ou o rival. Que inferno viver assim. Não entendem que pessoas podem fazer o bem e o mal na mesma vida. Não se trata de genocidas!

Foto: Edição de imagens.
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A notícia da morte de Diego Maradona foi um choque para mim. Expirava ali o homem que é parte de minhas memórias da infância. Tinha cinco anos e lembro de meu pai gritando na sala de casa, durante a Copa de 86, espantado com o que via.

Pouco tempo depois, eu não perdia um só jogo do Napoli no Campeonato Italiano, transmitido pela Rede Bandeirantes, aos domingos. Silvio Luiz e Sílvio Lancellotti conduziam a narração e os comentários, nos belos e modernos estádios da época. Eu imitava Maradona com minha bola Dente de Leite ovalada, mesmo sendo ridiculamente inábil para o esporte.

Não vi Pelé jogar. Aliás, ainda guardo na memória a euforia e a felicidade de vê-lo entrar em campo e atuar por apenas 43 minutos no jogo comemorativo de seus 50 anos, no estádio San Siro, em Milão, contra a Seleção do Resto do Mundo, em 1.990. Se recebesse a notícia de sua morte também ficaria chocado. Sou santista e passei a vida escutando as proezas realizadas no meu time pelo maior atleta que já nasceu na Terra.

O futebol foi uma paixão importante na minha vida e em minha formação como indivíduo. Muitas coisas pelas quais tenho paixão hoje começaram por causa do futebol, mesmo que atualmente não dê a mínima para o assunto, por achá-lo monótono e homogêneo demais. Virei uma espécie de enciclopedista da coisa. E basta.

Só que o assunto aqui não é exatamente este. Poucas vezes vi o tribunal brasileiro da internet tão excitado como ontem. Minutos após o anúncio da morte de Don Diego e da manifestação de pesar de Pelé, no Twitter, uma onda furiosa de comentários explodiu no ciberespaço. Dividida em duas frentes antagônicas, a massa exsudava ódio por todos os poros. As acusações eram de todas as naturezas, contra os dois gênios do futebol.

Contra Pelé, as alegações começam sempre pelo caso de sua filha Sandra, jamais reconhecida pelo pai (exceto por decisão judicial), que morreu clamando por um abraço dele. Suas posições políticas omissas e dúbias, aliadas a uma apatia blasé em relação aos grandes temas nacionais, assim como o flerte recente com o escatológico e autoritário governo de Jair Bolsonaro, condenavam o Rei do Futebol ao inferno, sem escala no purgatório.

Em relação a Maradona, os argumentos eram a sua arrogância, o animus trapaceiro, a dependência química que devastou sua vida e seus posicionamentos políticos abertamente de esquerda, citando sempre a amizade com Fidel Castro, Lula e Hugo Chávez. Para esse lado do Circus Maximus romano, Maradona já fez check-in com o cramulhão.

Do ponto de vista político, surge uma forte associação de Pelé com a direita e de Maradona com a esquerda. Acho natural, por conta da polarização inflamável em que vivemos.

O que incomoda é essa falta de pudor de quem fica pinçando cada segundo de vida do outro, do nascimento à morte, só para fazer julgamentos demagógicos baseados num moralismo castiço. Claro que há seres totalmente repugnantes que merecem a lata de lixo da História.

Não me parece razoável querer achar humanidade e condutas honrosas em figuras funestas como Pinochet, Videla, Hitler, Franco ou Ustra. Mas devemos lembrar que falamos de dois esportistas, com vários defeitos graves e virtudes louváveis. Pecadores como todo pobre diabo que vem ao mundo.

Maradona fez coisas erradas em sua vida, assim como Pelé também fez. Aliás, assim como eu fiz e todos vocês fizeram. E nem pensem em levantar a voz para berrar que há níveis de gravidade para erros cometidos. Eu até acho que há, mas não faço ideia do que se passa na cabeça de cada alma que faz uma bobagem nessa vida. O papel de julgar absolutamente tudo, em relação a absolutamente todos, diz muito mais a respeito do inquisidor do que a respeito do réu. O mundo não é essa coisa barroca parecida com uma corte do juízo final.

A comoção segue mundo afora. Maradona e Pelé, por décadas, mexeram com a emoção. E não só a emoção dramática exacerbada dos argentinos, nem com a emotividade esfuziante dos brasileiros. Eles acrescentaram emoção ao mundo. Suas copas e títulos são parte da vida de muita gente. Eles também fizeram um monte de presepadas.

Enquanto isso, morto e vivo são julgados pelos puritanos virtuais. O tribunal infantil e maniqueísta está em sessão. Já não se pode morrer que a multidão afoita vem execrar o defunto, ou o rival. Que inferno viver assim. Não entendem que pessoas podem fazer o bem e o mal na mesma vida. Não se trata de genocidas!

Nosso desprezo e execração devem ser reservados aos monstros. Àqueles que em sua malignidade açoitam o povo e a humanidade, indignos do título de ser humano. Tenhamos sempre em mente que julgamentos atrozes, sobretudo de pessoas com as quais não temos qualquer proximidade, invariavelmente são um sinal de nossa crueldade com o outro.

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