O Exército no fio da navalha – Por Chico Alencar

Ao comandante do Exército, general Paulo Sérgio cabem duas possibilidades: A primeira, punir Pazuello, como exige o regulamento militar. A outra, passar a mão em sua cabeça, como pede o capitão-presidente

Eduardo Pazuello com Jair Bolsonaro em ato no Rio (Foto: Alan Santos/PR)
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Quem assistiu a “O resgate do soldado Ryan”, filme dirigido por Steven Spielberg e estrelado por Tom Hanks, acompanhou de perto uma situação de extrema tensão logo nos 20 minutos iniciais. Eles retratam a chegada das primeiras levas de forças aliadas na Praia de Omaha, uma das cinco na costa da Normandia, no Norte da França, em que houve desembarque em junho de 1944.

As imagens do filme são de tirar o fôlego até para quem está no conforto de uma sala de cinema. Elas retratam, de forma crua, a situação extrema e o medo estampado no rosto dos combatentes.

Os alemães tinham construído sólidas fortificações, protegidas com casamatas com ninhos de metralhadora e peças de artilharia. No primeiro momento tinham superioridade militar. As forças que desembarcavam, em sua maioria iam literalmente ao encontro da morte. Quem conseguia avançar uns quantos metros além da praia o fazia sobre cadáveres dos companheiros.

A maioria dos participantes desses desembarques iniciais morreria. Isto estava nos cálculos dos comandantes. Ali, como em tantas outras operações militares, foi sacrificado certo número de vidas para que, no cenário geral, se obtivesse vantagem. Não é algo diferente do que muitas vezes se faz no jogo de xadrez, sacrificando-se peças para obter vantagem estratégica.

A França estava ocupada pelo exército alemão e, apesar de os nazistas já terem perdido a iniciativa na guerra desde o ano anterior, a abertura de uma segunda frente, prometida aos soviéticos desde 1942, ajudaria a abreviar o conflito. Por isso, naquele momento era vital o estabelecimento de cabeças de ponte que garantissem a chegada de reforços em grande escala.

Era uma situação dramática para as forças aliadas que participavam do desembarque. Elas viviam uma situação limite. Não havia espaço para vacilação ou indisciplina. As ordens tinham que ser cumpridas de forma estrita, sem vacilação. Tudo deveria funcionar como um relógio.

Quando acionada, muitas vezes uma força militar enfrenta situações assim. E, justamente por serem preparadas para atuar em situações limite, em seu seio a disciplina e a hierarquia são rígidas.

“A disciplina militar é a rigorosa observância e o acatamento integral das leis, regulamentos, normas e disposições, traduzindo-se pelo perfeito cumprimento do dever parte de todos e cada um dos componentes do organismo militar”, afirma o artigo 6º do Regulamento Disciplinar do Exército Brasileiro. Preceitos semelhantes existem em quaisquer forças armadas.

Por isso, mesmo países cuja legislação não contempla a pena de morte, ela é prevista em casos de guerra. Numa situação como a mostrada no filme citado, caso algum militar se insubordinasse, recusando-se a cumprir uma ordem, seria imediatamente morto por um superior.

Não fosse assim, aliás, poderia se generalizar o pânico, comprometendo a operação e podendo levar à morte a ampla maioria dos atacantes.

Exatamente por isso, um exército tem na disciplina, na hierarquia e no cumprimento de ordens pilares básicos.

À luz dessas premissas é que deve ser avaliada a situação criada pela indisciplina do general Eduardo Pazuello, mesmo que não estejamos numa situação de guerra. O general feriu os códigos militares e participou de uma manifestação política de apoio aos arroubos ditatoriais do presidente Jair Bolsonaro, que, mais uma vez, resolveu testar os limites de tolerância a seus ensaios de virada de mesa no jogo democrático. O ato que convocou, no qual ninguém usava máscaras, tinha como uma das palavras de ordem “Eu autorizo”. A frase seria uma espécie de sinal verde para o presidente atropelar a Constituição quando julgasse conveniente.

Ora, uma pedra de toque nos regulamentos disciplinares do Exército é que militares da ativa, como era o caso de Pazuello, são proibidos de participar de manifestações políticas.

Isso tem uma razão clara.

Braço armado do Estado, numa democracia as Forças Armadas devem se subordinar incondicionalmente às instituições civis. E seria uma enorme contradição permitir que seus integrantes, que detêm o monopólio do uso de armas na sociedade, se imiscuíssem nas disputas políticas.

Assim, o comportamento de Pazuello foi muito grave.

Alguns bolsonaristas afirmam que o Alto Comando do Exército deveria relevar a indisciplina. Seu argumento – absurdo – é que a manifestação, em cujo carro de som o general subiu e usou o microfone, inclusive sem máscara, era em apoio ao presidente da República, que, constitucionalmente, é o comandante em chefe das Forças Armadas.

Restariam, então, as perguntas: isso poderia tornar aceitável a participação política de um militar da ativa? Em outras palavras: fazer política a favor do governo pode?

É evidente que não. O Exército não é guarda pretoriana do presidente. É uma instituição do Estado, não do governante de plantão.

As desculpas esfarrapadas posteriores de Pazuello só pioram a situação. A explicação de que aquela manifestação não era um ato político cheira a deboche.

Também é um achincalhe a frase de que tudo não passou de um passeio de moto. O general deveria se envergonhar de dizer coisas do tipo.

O comandante do Exército, general Paulo Sérgio, está agora no fio da navalha. Cabem a ele duas possibilidades. A primeira, punir Pazuello, como exige o regulamento militar. A outra, passar a mão em sua cabeça, como pede o capitão-presidente, perdoando a flagrante indisciplina e a postura antidemocrática.

Nesse último caso, que autoridade teria o comandante para, no futuro, enfrentar outros gestos de indisciplina?

O ovo da serpente ganharia mais calor no ninho em que está sendo chocado...

**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.