O que Mourão não disse, escreve José Dirceu

Em artigo sobre o que os brasileiros esperam das Forças Armadas, vice-presidente tenta justificar o injustificável

Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil
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Por José Dirceu*

O vice-presidente da República, em seu artigo sobre o que os brasileiros esperam das Forças Armadas, tenta justificar o injustificável. A presença maciça de militares no governo Bolsonaro para descontaminar a administração pública como se ela não estivesse sendo mais do que aparelhada, a presença de um general da ativa no Ministério da Saúde pelo conhecimento de logística das Forças Armadas como se o SUS não fosse exemplo de eficiência em vacinação e distribuição de vacinas. E propositalmente, esqueceu-se de mencionar que as Forças Armadas estão submetidas aos poderes constituídos e não são Poder Moderador.

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Na reserva e ocupante de um cargo político eletivo, o general Hamilton Mourão, em artigo publicado em 6 de abril de 2021 no jornal O Estado de S. Paulo com o título “O que os brasileiros esperam de suas Forças Armadas” (link para assinantes), ousou falar em nome dos militares e das Forças Armadas brasileiras. Respondo a seus argumentos e motivos com esse artigo.

Mourão, vice-presidente, começa com o argumento de que cabe aos militares a garantia da lei e da ordem. Sei que ele se apoia no artigo 142 da nossa Constituição, mas o fato é que a lei e a ordem, pela mesma Constituição, são garantidas pelas suas polícias judiciárias, Polícia Federal, polícias civis e pelas polícias militares, que investigam e cumprem as determinações do poder Judiciário, e fazem cumprir a lei. As PMs também fazem o policiamento ostensivo e usam a repressão, dentro da lei e quando necessária, determinados por governos ou pelo Judiciário.

Não por acaso, o vice-presidente deixou de citar o principal: que somente por iniciativa de um dos Poderes constituídos as Forças Armadas podem ser acionadas para esse fim. O ideal é que as Forças Armadas não mais sejam acionadas para GLOs, pois a experiência até agora é a pior possível. Essa tarefa tem que ser delegada a uma Força Nacional profissional e permanente da mesma forma que nossas fronteiras devem ser protegidas e guardadas por uma Guarda de Fronteira, como em todos os países continentais.

Isso sem falar no perigo do uso das GLOs para reprimir manifestações populares ou mesmo das Forças Armadas com fins políticos, como ficou evidente no último incidente envolvendo o presidente e os militares que resultou na troca do Ministro da Defesa e dos 3 comandantes militares.

Precisamos e devemos reformar nossa Constituição para não deixar nenhuma dúvida de que não existe poder moderador, como já proclamou o Supremo Tribunal Federal; e muito menos que as Forças Armadas estão acima da Constituição. Temos ainda que rever sua atribuição de garantir os Poderes constitucionais. Em qual constituição no mundo essa função está atribuída a militares? França, Alemanha, Estados Unidos ou Grã-Bretanha não contam com esse dispositivo.

No final do 1º parágrafo, o artigo tenta atenuar e proteger os militares da desastrosa gestão de um general da ativa, que jamais deveria poder assumir cargos políticos, no Ministério da Saúde. Traz um argumento verdadeiro: a competência das Forças em questões de logística e organização quando convocadas para suprir incapacidade de agências governamentais. Mas não foi este o caso, pois está mais do que provada a capacidade das agências governamentais, no caso o SUS, de vacinar dezenas de milhões de brasileiros em 3 meses como no governo Lula, quando foram vacinados 60 milhões. Sem nenhum incidente foi realizada toda a logística para transportar as vacinas para todo território nacional.

Mourão faz de conta que não existiu a permanente campanha do presidente Bolsonaro, incluindo sabotagem explícita, contra a vacina e a vacinação gratuita e universal com fila única e critérios de idade e vulnerabilidade. A isso, somam-se o descaso e mesmo desestímulo público e oficial ao isolamento e, depois, às tentativas de lockdown, os ataques aos governadores e prefeitos, a negação em manter o auxílio emergencial, o Pronampe e o BEm, protegendo a renda e o emprego para viabilizar o isolamento social.

Desvirtuamento da administração pública

O outro argumento utilizado pelo vice é o desvirtuamento da administração pública pela corrupção e clientelismo político. Salta à vista o ridículo do argumento quando, com total apoio do presidente e de sua base de apoio, a maioria dos parlamentares aprovou uma Lei do Orçamento Anual que é uma verdadeira porta aberta ao clientelismo político e um passe livre à corrupção. Mas Mourão repete o mantra de que Bolsonaro enterrou a “velha política”, quando na verdade ele se casou com ela em comunhão de bens.

De leve, o artigo menciona a moralização da administração pública, ignorando a gravidade das denúncias e investigações sobre os filhos e familiares do presidente. E fala da luta contra a violência, o que só pode ser um escárnio ou puro cinismo já que nunca se estimulou tanto a violência, inclusive com o presidente e seus seguidores armando suas milícias –e não só digitais– não apenas com ódio e preconceito, mas com armas letais e de uso exclusivo, até então, das Forças Armadas.

Com relação à segurança pública, o que vimos, até agora, sob o silêncio e omissão dos militares, é a politização e arregimentação dos PMs para a política. E o descaso com os recursos orçamentários discriminatórios para as polícias civis e a Polícia Federal.

Pelo Ministério da Justiça já passaram 3 ministros e pela Polícia Federal 4 dirigentes, sem que ninguém saiba a que veio esse governo em matéria de segurança pública. Não fossem o Judiciário e os governadores e prefeitos, o país estaria entregue às milícias e ao crime organizado. O governo só cuidou em tentar garantir a impunidade dos crimes praticados por policiais com sua inacreditável exclusão de ilicitude. E tem dado apoio aberto, mais do que comprovado, às milícias.

Depois de tecer elogios a competência técnica dos militares, como se os civis não a tivessem, idem à lealdade, critério discutível numa república e no serviço público, Mourão vem com o surrado discurso do aparelhamento da máquina administrativa pela política partidária e ideológica.

Aqui ele está falando de corda em casa de enforcado: Bolsonaro e seu governo são ideologia pura –pior, fascista–, aparelhamento direto e aberto da máquina governamental, da PF, do COAF, da Receita, do MPF. A tudo isso se soma a ocupação cada vez maior da administração pelos partidos do centrão. São fatos e há fotos para provar.

Participação dos militares

O artigo faz todo esse arrazoado para justificar, nos parágrafos seguintes, a participação dos militares no governo Bolsonaro, como se o problema fosse apenas a excessiva, hipertrofiada presença de militares na administração federal e de mais de uma dezena de generais na cúpula do governo. É bom lembrar que vários já foram defenestrados e destratados por Bolsonaro; da humilhação não escapou nem o vice-presidente.

Mas os militares não só tomaram de assalto a administração pública e o governo. Vêm recebendo privilégios como a reforma da Previdência, escondida da opinião pública, que deu a eles condições especiais de uma casta de servidores públicos. Na prática, são os únicos com aumentos salariais sucessivos e cada vez mais recursos orçamentários, um terço dos investimentos da União em 2021.

Mourão sabe que o problema não é apenas a participação dos militares no governo Bolsonaro. Foi e é o envolvimento político da Forças Armadas e sua participação como partido militar na deposição da presidente Dilma, no apoio à Lava Jato, na pressão sobre o STF no julgamento do HC do ex-presidente Lula e na campanha e eleição de Bolsonaro. Tudo isso confessado pelo ex- comandante Villas Bôas em seu livro-depoimento. Sem esquecer que Mourão foi punido, em janeiro de 2016, por declarações políticas; mais grave, por homenagear o torturador impune coronel Brilhante Ustra.

Da mesma forma, foi punido, em 2009, o ex-general Heleno, então comandante militar da Amazônia, hoje ministro do Gabinete de Segurança Institucional. Aliás, também é preciso rever o papel e funções do GSI, que mais se assemelham aos de uma polícia política depois da hipertrofia sofrida, inclusive em matéria de inteligência, durante o atual governo. Fora o fato já comprovado de que espionava a presidente Dilma durante seu mandato.

Tão ou mais grave é a afirmação do também general de reserva Etchegoyen, com papel destacado no golpe que depôs a presidente Dilma e agraciado pelo governo Temer com o Gabinete de Segurança Institucional, de que as Forças Armadas não aceitavam a Comissão da Verdade, o constitucional papel de comandante em chefe do presidente da República em matéria de promoções e educação como se as Forças Armadas fossem um Estado dentro do Estado acima do poder civil. Etchegoyen expôs suas posições, recentemente, em carta-manifesto em protesto pela anulação dos processos contra o ex-presidente Lula.

Mourão sabe que o Ministério da Defesa nunca foi aceito pelas Forças Armadas e, desde o governo Temer, vem sofrendo uma militarização que praticamente apaga seu papel civil para o qual foi constituído. Mais um sinal da não-aceitação pelos militares da supremacia do poder civil e da submissão dos militares aos poderes constituídos, Congresso e presidente.

Apagão da memória

Gravíssima é a tentativa aberta e reiterada de mascarar e apagar da memória o golpe de Estado militar de 1964 e ainda nos vender a mentira de que herdamos da ditadura a atual democracia e Constituição. Diz o artigo de Mourão que o atual regime foi inaugurado em 1985 –uma falseta, já que a carta constitucional que enterrou a ditadura e a tratou como tal é de 1988. Dizer que o golpe de 64 fortaleceu a representação política pela legislação eleitoral e deu coerência à União é cinismo é pura propaganda.

Recordemos que os militares perderam as eleições em 1965 em Minas Gerais e no Rio de Janeiro para governador. Por isso, veio o AI 2, que acabou com as eleições para presidente, governador e prefeitos de capitais e nos municípios definidos por eles como áreas de segurança nacional.

Os militares reprimiram e colocaram na ilegalidade a UNE, a CGT, as ligas camponesas e o sindicalismo rural; extinguiram os partidos políticos e censuraram a imprensa e toda produção cultural; cassaram centenas de parlamentares e políticos, inclusive todos os possíveis candidatos a presidente, começando por JK; perseguiram e exilaram milhares de cientistas, professores, artistas, intelectuais, sindicalistas e líderes progressistas, nacionalistas e democratas. Da mesma forma que hoje, atacaram sem tréguas a universidade, a ciência e a cultura, expulsaram sem o devido processo centenas de oficiais das Forças Armadas por suas posições e opiniões políticas.

Como nunca tiveram apoio da maioria do povo brasileiro, JK teria sido eleito em 1965. Para contornar a falta de apoio popular recorreram a atos discricionários, reprimiram as oposições e a frente de resistência popular, as lutas estudantis da geração de 1968, os movimentos dos trabalhadores e das classes médias progressistas. Sob o pretexto de combater ações armadas, baixaram o AI 5, que simplesmente impôs o terror político ao país por uma década. Mas o povo não se calou, o velho MDB se tornou um frente anti-ditadura e, em 1974, derrotou a Arena.

Apesar da repressão, do uso da máquina pública, da corrupção, a ditadura nunca mais venceu uma eleição. E só elegeu no colégio eleitoral de 1978 o último general ditador porque baixou o Pacote de Abril mudando a composição desse instrumento ditatorial. Isso sem mencionar a inominável Lei Falcão e os senadores biônicos. Esses são fatos históricos.

Em 1983-84, o povo retomou as ruas nas Diretas, como já fizera nas décadas de 1960 e 1970 apesar de toda a repressão, e impôs uma derrota à ditadura em seu próprio campo, apesar do caráter conservador e negociado da transição que desembocou na Lei da Anistia e na Constituição de 1988. A Lei de Anistia negociada poupou os militares de julgamento por seus crimes mais do que provados de vil tortura, dos covardes assassinatos e ignóbeis desaparecimento de corpos de opositores como ocorreu em várias partes do mundo e na América Latina, desde a Guatemala até o Uruguai, na Argentina e mesmo no Chile. O que revelou-se e continua a se revelar um enorme erro.

O que os brasileiros e brasileiras esperam das Forças Armadas é que cumpram a Constituição e em hipótese alguma façam declarações políticas. Ou ameacem com as armas que a nação lhes entregou para a defender, e não para violar e rasgar a Constituição como em 1964 e 2016 e, depois, em 2018. Que se submetam ao poder civil, ao Congresso Nacional e ao presidente da República dentro da lei e da Constituição, inclusive em sua organização, missões, educação, promoções. Que aceitem todas as decisões do Judiciário e não as contestem, que voltem aos quartéis e se dediquem a construir as Forças Armadas para o século 21 e deixem de tutelar a sociedade e a República.

Que a profissão de fé do vice-presidente de cumprir as “ordens legais e emitidas por quem de direito, sendo integralmente cumpridas na forma da lei” se transforme em realidade e não apenas em declaração formal, porque, como ele mesmo diz, “fora disso, transita-se perigosamente entre a desordem e o autoritarismo”.

*Artigo publicado originalmente no portal Poder 360

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