Ouvindo da plateia o "Solo para Vialejo", de Cida Pedrosa – Por Tomaz Amorim

Tomaz Amorim analisa “Solo para Vialejo”, de Cida Pedrosa, livro vencedor do Prêmio Jabuti de Poesia e de Livro do Ano em 2020

Foto: Escritora Cida Pedrosa (Ana Siqueira)
Escrito en OPINIÃO el

O ano de 2020 deve ter sido um ano intenso para a escritora pernambucana Cida Pedrosa. Seu livro, “Solo para Vialejo”, publicado em 2019 pela CEPE, venceu o Prêmio Jabuti de Poesia e de Livro do Ano. E como se não bastasse, em contexto de fascismo velado no país, Pedrosa foi eleita vereadora em Recife pelo Partido Comunista do Brasil (juntando-se assim à brava lista de literatos parlamentares, como Jorge Amado). Se o elemento político é evidente em todo o livro, não se trata de uma obra que submeta qualquer de seus elementos a imposições externas. O contato delicado com a memória e a história se dá a partir do movimento interno do texto, suas exclamações e silêncios marcados falam de política ao modo da poesia e da música. Assim, a obra é militante, mas fiel a seu próprio movimento, é engajada na própria voz que pode falar de si e do mundo de uma perspectiva viva que não a do panfleto.

O editor do livro o descreve com razão como um grande poema lírico, com características do épico. Isso é verdade e nos remete a Pablo Neruda e a João Cabral, mas a maneira muito fresca, muito leve de citar canções e poemas e também de alterar repetidamente o registro dá ao todo uma originalidade muito própria. Há uma viagem geral, sem dúvida, mas as partes também funcionam bem, quase como poemas autônomos, em uma sequência de pequenos relatos, memórias pessoais e coletivas, reivindicações políticas, momentos de melancolia e de erotismo. Esta montagem épica-lírica consegue assim um feito estético importante: está falando da ordem do dia, das coisas mais atuais, vistas como repetições do passado, mas, ao mesmo tempo, parece falar de um mundo que se foi, de um mundo bonito e triste, que através do poema também consegue se projetar no futuro. É mesmo como uma barra de sabonete embrulhada em um papel de seda que subitamente encontramos em uma penteadeira. Terá pertencido a uma tia-avó? Mas se perfuma ainda tanto. Que tempos terão sido aqueles? Como pode ser tão presente esse cheiro?

Desde o título, a associação do texto com a música é muito intensa. São diversos mecanismos literários empregados, aliterações, assonâncias, citações musicais, um uso quase agressivo da repetição para marcar o ritmo, etc. Dentre eles, o que talvez chame mais atenção são os tercetos que repetem um mesmo verso. É um tipo de refrão que surpreende pela versatilidade. Aos poucos, o leitor entende o ritmo e vai também sendo conduzido. A monotonia que poderia surgir da repetição dá espaço a pequenas variações, os sentidos vão se multiplicando, aqui o terceto é violência, ali é celebração, aqui é memória, ali presentificação.

A repetição, aliás, se encontra por todo o livro e é utilizada como na música. De palavras repetidas surgem outras - palavra puxa palavra - como notas isoladas que aos poucos dão origem a um acorde. Acorde que quando surge é o oposto da repetição, costumam ser versos primorosos, com palavras ou inversões preciosas: “tirar da flor a seda branca”. Este acorde, por sua vez, será repetido e variado e o livro é um pouco este exercício, a repetição de sons e imagens que ganha movimento rumo às paisagens geográficas e mnemônicas da região. O leitor vai sendo conduzido neste bailado leve. Permite-se perguntar: o que significa tirar seda da flor? Por que a inversão? Que bicho-flor é esse que dá seda? Se não resistir, no entanto, logo ele descobre que o que parecia quebra era só mudança de compasso, o algodão surge em sua diversidade, como matéria fundadora do capitalismo, como produto da escravidão e, ao mesmo tempo, em sua forma viva e feminina (como na Sertã, feminina): flor de seda.

Pedrosa não tem apenas um ouvido excelente, mas uma compreensão muito delicada do ritmo, em sentido amplo. Os poemas se utilizam tanto da rítmica sonora, quanto da espacial, plástica. A posição dos versos na página amplia as dimensões da repetição e da diferença. A partir de um certo ponto, parece que não estamos mais lendo poesia, mas música, como em uma partitura. O alinhamento e os espaços dão os tempos e os ritmos, os sons das vogais dão os tons. Desta interrupção, deste solo virtuoso do jazz sertanejo, passa-se a outros compassos, versos tradicionais em formatação comum, prosa poética, tercetos de um só verso repetido, etc. E assim, novamente, o que era antes repetição se torna buquê de palavras certeiras e construções raras que compõem uma imagem poética: "fia armaduras para sóis tristes / fia o acalanto para madrugadas rasas / fia o orvalho para manhãs natimortas".

Cabe pensar, para além do nível formal, sobre este apego à repetição, apego que não é apenas requinte em busca de beleza, mas também de representação de algo difícil de se acessar diretamente, em linha reta, progressiva. Talvez se possa dizer que em “Solo para vialejo” a repetição é tanto musical, desenvolve o tema a partir da repetição sonora, quanto traumática, a elaboração lenta da violência através da repetição do trauma ("salada de negro / salada de negro / salada de negro"). A aliteração extrema de alguns poemas lembra a fala gaguejante de quem precisa juntar as forças para falar uma verdade difícil. Por outro lado, em outros poemas, quase se ouve a canção, é tudo musicalidade, leve, e as palavras se puxam umas às outras como notas de uma música. São talvez os dois modos, contraditórios, mas possíveis, complementares, de contar a história do Brasil.

O movimento épico do livro é diaspórico. Mas são diásporas brasileiras, estranhas, dos índios que são exilados em sua própria terra, em seu próprio tempo, aquele “pêndulo que dizia do infinito” antes dos brancos. A repetição musical-traumática das palavras “negro” e “negra” no poema marca a segunda diáspora, da África para este "chão desafricanizado". A partir da fugas de negros e índios para o interior do continente (em sentido inverso ao de “Morte e Vida Severina”), o livro vai narrando o surgimento das comunidades, das práticas ligadas à terra, em fuga do branco. A escravidão negra é tratada em sua crueldade, mas também como testemunho da inteligência e da perspicácia dos antepassados que sobreviveram através de todo tipo de estratagemas. Da fuga, os quilombos, as revoltas, os bandos, os ciganos, as comunidades diaspóricas que vão se reterritorializando. O planalto, o sertão, o interior vai se convertendo em um tipo de asilo, de refúgio: "barrigudas serras zumbiniando negros afoitos e fortes fermentando o fronte de terras fartas e férteis". Os caminhos históricos dos levantes populares vão mostrando a geografia do lugar, suas trilhas, suas alturas, sua vegetação. E os personagens, muitos coletivos, históricos e míticos, mas muitos outros também personagens locais, imortalizados nessa poesia com seus nomes, profissões e talentos (quase sempre musicais). Todos eles em vida, contando através de suas ações o que houve, as etimologias, as lutas, as belezas.

O branco não some de vista (e muitas vezes fala na voz da própria eu-lírica), volta através das ondas do rádio, volta também transfigurado, quando por bem bem, pelo contato com o negro e sua música, são Bob Dylan e Gonzagão. E se o livro não passa pano, diz com todas as letras que a música negra é primeiro embranquecida para poder ser permitida (as oposições não duras, mas contrastantes abundam nos versos, a música branca dentro da igreja na missa de manhã com nome e sobrenome, a música negra e cigana na rua de noite tocada pelos artistas negros que ela busca relembrar), há um tentativa de contato, por outro lado, de cura, que se dá justamente através da música e também desta voz poética que ama profundamente a negritude.

É difícil não lembrar, a partir desse interesse tão delicado no blues (de maneira surpreendente para quem lê longe do sertão), do “Bluesman” do Baco Exu do Blues. São as ligações submarinas do atlântico negro em que vibram cordas comuns na América do Norte e na América do Sul. As américas se encruzilham, o blues e o xote, o samba-rock de Jackson do Pandeiro. Vale citar o Baco: “Eu sou o primeiro ritmo a formar pretos ricos / O primeiro ritmo que tornou pretos livres / Anel no dedo em cada um dos cinco / Vento na minha cara, eu me sinto vivo / A partir de agora considero tudo blues / O samba é blues, o rock é blues, o jazz é blues / O funk é blues, o soul é blues, eu sou Exu do Blues / Tudo que quando era preto era do demônio / E depois virou branco e foi aceito, eu vou chamar de blues / É isso, entenda / Jesus é blues / Falei mermo”.

“Solo para Vialejo” tem algo de show itinerante, como se as vozes de Bodocó tivessem montado uma banda e viajassem até nós contando histórias deste outro lugar e deste outro tempo. Daí talvez a sensação de intimidade, são memórias dos outros, mas são memórias íntimas, como todos os lugares as tiveram, prestando atenção sobretudo nos que foram esquecidos. Sentamos na plateia, encantados, mas somos também convidados a participar. Cida Pedrosa escreveu um livro sedutor sem em momento algum aliviar as dores e as violências. Está tudo ali, misturado, como em um espetáculo de circo de interior, fantástico e triste. É um livro que talvez tente apontar um caminho lembrando do bonito, quase milagroso, do passado. São poemas, são canções como as que talvez ainda hoje só toquem nos rádios dos caminhoneiros. É sobretudo uma poesia de cura, como o emplastro da "salada de negro", que servia para curar todo tipo de enfermidade: é poesia de bálsamo.

**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.