Por que os cristãos se acham tão importantes assim?, por Raphael Fagundes

Os comunistas estão mais interessados em libertar o povo da escravidão ideológica e econômica imposta pelos interesses burgueses. E não é preciso matar Deus para isto

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A cantora Elba Ramalho ganhou popularidade nas redes sociais ao fazer o seguinte comentário: "Mas tudo bem, estamos aqui, cristãos, sobrevivendo. E vamos sobreviver a essa turbulência que a humanidade está atravessando. Para muitas pessoas é apenas uma pandemia, para nós, o senhor sabe e eu sei, é muito mais coisa por trás dessa pandemia e que vem ainda com o intuito de nos destruir. Nós somos o incômodo, o calo dos comunistas. Somos nós cristãos, mas nós somos também a resistência e vamos permanecer fiéis, porque Deus vai nos proteger".

O ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, já havia chamado o novo coronavírus de “comunavirus”. O mesmo ministro que disse que as relações exteriores devem ser marcadas pela fé cristã.[1]

A questão é: por que os cristãos se acham tão importantes assim?

Para Karl Marx, o problema não era o cristianismo, mas a religião. Esta era para ele fruto da condição econômica degradante, da miséria, de modo que “a religião é o suspiro da criatura oprimida".

Marx entendia Deus como um falso problema, “que um dia deixará de existir e, nesse dia, até o próprio ateísmo será superado, como foi superada a negação dos mitos gregos".[2] Deste modo, assim como não acreditamos mais nos antigos deuses, em algum momento, o Deus cristão também será desacreditado.

Não se trata do cristianismo, mas da religião em si. Stalin dizia: “Sou contra a religião porque sou a favor da ciência”. Será que Bolsonaro diria ser contrário à ciência por ser a favor da religião? O certo é que a direita quer sempre cobrir as verdades científicas com suas explicações religiosas, fazendo justiça as palavras de Marx, transformando a religião em ópio.

Não há nada contra os cristãos, mas contra o uso do cristianismo. Georges Marchais, secretário-geral adjunto do Partido Comunista Francês dizia em 1.936: “Nós te damos a mão, católico, operário, empregado, camponês, pois és nosso irmão e és como nós oprimido pelas mesmas preocupações”.[3] Tal discurso baseia-se claramente na associação que Engels fazia entre os cristãos e os trabalhadores: “se quer ter uma ideia de como foram as primeiras comunidades cristãs, olhe o ramo local da Associação Internacional de Trabalhadores".[4]

Rosa Luxemburgo, em ensaio de 1.905, insistia que “os socialistas modernos são mais leais aos princípios originais da cristandade que o clero conservador de hoje". Curioso que o slogan dos cristãos revolucionários franceses da década de 1.930, subverte justamente a frase de Stalin citada acima: “Somos socialistas porque somos cristãos”.[5]

Além disso, temos a Teologia da Libertação, que flertou com diversos integrantes dos partidos comunistas da América Latina.

Discursos como os de Elba Ramalho não passam de um teatro para desviar a responsabilidade do governo federal na sua inércia e, em muitos casos, regressão no tratamento da infecção que vem assolando os brasileiros. Os trabalhadores, os mais expostos ao vírus, são o alvo deste discurso porque se sabe que eles são mais suscetíveis a acreditar, já que, como mostra Leonardo Boff, “são os pobres os naturais portadores da utopia do Reino de Deus; são eles que carregam a esperança e a eles deve pertencer o futuro".[6]

Cabe lembrar que entre as várias hermenêuticas teológicas protestantes, existe a exegese sociológica. Nela usa-se o “instrumental teórico da sociologia marxista para analisar a presença, no texto bíblico, das lutas sociais de seu tempo".[7] No Brasil, o grande representante desta vertente era o professor Milton Schwantes que desempenhava papel de liderança também na América Latina.

Esse teatro é covarde por dois pontos de vista. Por um lado, quer iludir o povo, usando de sua crença e manipulando o discurso religioso para servir como narcótico para as massas, como dizia Gramsci. Por outro, pretende-se desviar o foco da incompetência do governo. Bolsonaro culpa a mídia por supervalorizar o vírus, seus correligionários e apoiadores dizem que a culpa é dos comunistas, tudo relativamente num mesmo espaço de tempo.

Os comunistas estão mais interessados em libertar o povo da escravidão ideológica e econômica imposta pelos interesses burgueses. A China, por sua vez, está interessada em desbancar os EUA como a potência que determina o destino do mundo. Sinto muito meus queridos cristãos, os comunistas não estão dando a mínima para vocês. Pelo menos, não no sentido de destruí-los por meio de um complô liderado pelo demônio. Existem preocupações bem maiores e mais realistas. Neste caso, Deus é ainda um falso problema para os marxistas.

Enfim, libertar o povo da manipulação proveniente do discurso religioso é a missão de qualquer um que deseja uma sociedade mais justa. Mas, sem dúvida, por mais que muitos pensem o contrário, não é preciso matar Deus para isto.


[1] https://oglobo.globo.com/brasil/ernesto-araujo-defende-que-fe-crista-marque-politica-externa-23515299

[2] MINOIS, G. História do ateísmo. São Paulo: Edunesp, 1998, p. 615.

[3] COURTINE, J-J. Análise do discurso político: o discurso comunista endereçado aos cristãos. São Paulo: EdUFSCar, 2014, p. 104

[4] LOWY, M. Marx e a religião. BORON, Atilio; AMADEO, Javier; GONZÁLEZ, Sabrina (orgs.). A teoria marxista hoje: problemas e perspectivas. Trad. Simone R. da Silva e Rodrigo Rodrigues. São Paulo: Expressão Popular, 2007, p. 275.

[5] Id. P. 279.

[6] BOFF, L. Igreja: carisma e poder. 3 ed. Petrópolis, Vozes, 1982, p. 186.

[7] ZABATIERO, J. P. T. Hermenêutica protestante no Brasil. In: LEONEL, J. (org.) Novas perspectivas sobre o protestantismo brasileiro. São Paulo: Paulinas, 2010, p. 142.