Quem são os verdadeiros genocidas – Por Raphael Fagundes

Tanto o presidente, quanto a crítica pueril da mídia liberal, servem como artifícios que nos impedem de criticar o verdadeiro vilão da história, o verdadeiro genocida: isto é, o capital.

Foto: Governo do Estado do Ceará
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É muito difícil não concluir que a opção pela imunização de rebanho em vez de angariar esforços para adquirir vacinas não se trata de uma política genocida. Pode ser científica, inclusive se aproxima da velha teoria que impulsionou o imperialismo do homem branco a subjugar os quatro cantos do mundo conhecida como darwinismo social, mas não impede de ser genocida.

Contudo, dizer que Bolsonaro é criador desta necropolítica é um erro. Assim como nos impérios capitalistas de outrora, a política é manipulada pelos interesses econômicos exploratórios. Bolsonaro está entre nós e os verdadeiros genocidas. Bolsonaro é uma hipostasia heurística de um ser hostil, o fantoche usado para esconder a bruta mão do capital.

O jantar de Bolsonaro com diversos empresários e os aplausos destes últimos ao seu pronunciamento é a prova de que eles apoiam a política do presidente. Mas como dizia Marx e Engels, “o poder político do Estado moderno nada mais é do que um comitê para administrar os negócios comuns de toda a classe burguesa".[1]

Em 2022, Bolsonaro terá apoio dos empresários, principalmente do pequeno empreendedor (o mais vulnerável) para coagir os trabalhadores a votarem nele. Além disso, os grandes empresários que não o abandonaram, também estarão ao seu lado, como já fizeram nas eleições passadas.

É por isso que ele se põe contra o lockdown. Não é ele em si, mas os empresários. Mas a retórica é de que os trabalhadores serão os maiores prejudicados, para assim convencê-los a defender os interesses burgueses. A burguesia consegue fazer de seus interesses os interesses de todos.

Há uma passagem no Manifesto Comunista que curiosamente se adequa à situação que vivemos. “A aglomeração de operários em grandes massas ainda não é o resultado da sua própria união, mas da união da burguesia, a qual, para alcançar seus próprios objetivos políticos, é obrigada a colocar em movimento todo o proletariado, o que por enquanto ainda pode fazer".[2] A burguesia promove a aglomeração do proletariado e faz este acreditar que a ideia é dele mesmo autônoma, lógica e que não está sendo manipulado. Ele se aglomera para atender aos interesses burgueses não para atender aos seus.

O lockdown seria um outro caminho científico, mas a única maneira de o alcançarmos com eficiência e sem prejuízos para a classe trabalhadora seria com a taxação das riquezas das classes mais altas. Essa seria a razão pela qual os trabalhadores deveriam se “aglomerar”. Os operários são a origem da riqueza das classes dominantes, se todos decidirem parar de trabalhar, ficando em suas casas, numa espécie de greve geral, a burguesia seria obrigada a ceder.

Mas o discurso poderoso da burguesia, tanto dos que dizem ser a favor de medidas restritivas, quanto os contrários a estas, não dão espaço para esse tipo de mobilização.

O famigerado presidente é apenas a ideia. Os liberais, por meio da imprensa, têm como convicção pôr a culpa no político, no Estado, e em tudo que acreditam ser um óbice para o crescimento do mercado. E uma vez que eles adotaram isto como forma de entender o mundo, fazem com que todas as coisas com isto concordem. Sendo assim, o presidente deve ser a origem de todas as ideias ruins, mas o fato é que se Bolsonaro não tivesse apoio dos empresários, que, inclusive, promovem manifestações contra as medidas restritivas, ele teria que adotar uma outra postura, por sua vez, conivente aos interesses do setor que o apoiaria.

Não existe bolsonarismo. Este termo é somente uma representação. O que existe são os interesses dos empresários que pressionam o governo a não adotar medidas restritivas. Quem não se lembra da marcha de Bolsonaro com empresários ao STF no ano passado?

Quando a imprensa noticia sobre os protestos contra as medidas mais restritivas, ela se refere aos manifestantes como sendo bolsonaristas. Mas na verdade eles são empresários. O próprio Bolsonaro não é bolsonarista, mas (desculpem o neologismo) empresarista.

A imprensa não quer culpar os empresários para não ficar com uma imagem negativa com o setor. Para isso, canaliza todo o seu arsenal de ódio para Bolsonaro. Este, por sua vez, adora gritar asneiras contra as medidas restritivas, fazendo parecer que a ideia partiu realmente dele, criando assim o embuste da pseudoideologia bolsonarista que nos impede de acessar o real, os verdadeiros genocidas.

A aversão às medidas de isolamento social é empresarial. Bolsonaro é a máscara, o caminho político, a ficção que nos separa do empresariado. Se quisermos chegar à raiz do problema, precisamos denunciar o capital.

Bolsonaro acaba enganando as pessoas com esse discurso fabricado pelos grandes empresários e reproduzido por ele mesmo através de sua fórmula ficcional troglodita. Tudo é uma farsa para se eleger. Entre nós e o bolsonarismo estão as palavras dos conservadores e a pobre crítica liberal. A burguesia, como a natureza para o filósofo inglês Francis Bacon, torna-se inacessível. Tudo é ficção.

Se analisarmos a crítica liberal por meio de uma perspectiva zizekiana, podemos tirar a conclusão de que o discurso produzido por este grupo quer forjar um objeto paraláctico puro, no qual, o objeto só pode ser percebido por um único ponto de vista, já que espreita o medo de um outro ponto de vista ser adotado, o que levaria o objeto a se tornar apenas mais um objeto ordinário.

Contudo, podemos encarar a burguesia como o real, pois ela é a “coisa à qual o acesso direto não é possível e [ao mesmo tempo] o obstáculo que impede esse acesso direto". A burguesia banca uma imprensa que produz um discurso que nos impede de ter acesso a ela, e Bolsonaro, como “a tela distorcida que nos faz deixar de ver a coisa".[3]

Sem termos acesso ao nosso verdadeiro algoz, não podemos formular uma luta efetiva contra a origem de nossos problemas: a falta de renda. A taxação das riquezas seria o verdadeiro caminho para encarar a pandemia, pois o lockdown seria possível sem trazer prejuízos. Os ricos continuariam ricos, mas, por sua natureza covarde, preferem em meio ao caos sobrevoar como abutres que observam o definhar de sua presa.

O pensamento de Slavoj Zizek observa que, enquanto Kant dizia que o acesso absoluto à coisa-em-si é impossível, Hegel radicaliza dizendo que o absoluto é uma negatividade. Daí o filósofo esloveno mostra porque o diretor Kiéslowski preferiu mudar de documentário para ficção. Num documentário não se pode explorar todos os aspectos da realidade. Não se pode, por exemplo, fazer um documentário sobre o amor mostrando duas pessoas fazendo sexo, mas na ficção isso é possível. A ficção, portanto, nos permite explorar mais o real pois estamos cientes de que não passa de fingimento.

Ou seja, Bolsonaro e o discurso liberal midiático apresentam-se como verdades, reais, por isso não podem explorar por completo aspectos reais, não podem dizer que os verdadeiros genocidas são os empresários. Mas se os compreendermos como ficções (e este é o objetivo deste texto), poderemos explorar o real, que, em nosso caso, seria a atuação da burguesia como a verdadeira genocida.

Recentemente vimos economistas, empresários e banqueiros enviando uma carta ao presidente para que este tome providências para resolver a crise do país. A carta pede medidas de apoio às pequenas e médias empresas e propõem "uma reforma no sistema de proteção social, visando aprimorar a atual rede de assistência social e prover seguro aos informais".[4] Mas o caminho prático para se alcançar este objetivo seria convencer o governo a congelar o salário do funcionalismo público e extrair recursos de privatizações para criar um auxílio social. Contudo, ninguém fala em taxar as grandes fortunas.

O economista Marcelo Manzano nos explica a política econômica adotada por Guedes que busca agradar o setor industrial dos mais variados espectros. “Para liberar até R$ 44 bilhões do orçamento de 2021 às famílias que passam fome, Guedes exigiu como contrapartida a criação de gatilhos que bloqueiam as despesas públicas do governo federal sempre que elas alcançarem o nível prudencial de 95% da receita. Como as receitas andam anêmicas, na prática Guedes dispõe agora de uma máquina de produzir austeridade que será capaz de esfacelar o que resta de serviços públicos no país”.[5]

Tanto o presidente, quanto a crítica pueril da mídia liberal, servem como artifícios que nos impedem de criticar o verdadeiro vilão da história, o verdadeiro genocida, isto é, o capital. Este, que consiste no real em si, é o vilão e condutor do governo. Quando mudar a postura em relação à pandemia, Bolsonaro também mudará. Não são as ideias reacionárias de Bolsonaro que provocam o genocídio, mas algo bem Real, os interesses do capital.

**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.


[1] Karl Marx e Friedrich Engels, Manifesto do Partido Comunista, Martin Claret, São Paulo, 2006, p. 47.

[2] Id., p. 53.

[3] ZIZEK, Slavoj. Visão em paralaxe. São Paulo: Cia das Letras, 2008, p. 43.

[4] https://exame.com/economia/covid-19-economistas-e-empresarios-querem-novas-acoes-e-falam-em-lockdown/

[5] https://diplomatique.org.br/o-brasil-como-campo-de-provas-da-selvageria/