Ricardo, Vânia, Rua Augusta e Araraquara

Livro de Chico Felitti, além de contar a história de Ricardo, figura onipresente da noite LGBT de SP, traz também parte da memória dos corpos não normativos da capital paulista que perigam serem esquecidos na falta de memória

Rua Augusta, que já foi ponto de encontro do fervo LGBT, hoje está gentrificada/ Foto: Sobreviva em SP
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Lançando em 2019, o livro Ricardo e Vânia: o maquiador, a garota de programa, o silicone e uma história de amor (Ed. Todavia), de Chico Felitti, conta a história de uma personagem da noite LGBT de São Paulo, que ficou conhecida pela alcunha de “Fofão” (mas daqui pra frente apenas o tratarei como Ricardo). O apelido pejorativo surgiu por conta das aplicações de silicone que Ricardo fez em seu rosto ao longo de sua vida.

A obra nos lança para dentro de várias histórias e transformações, não apenas dos corpos, mas também da cidade de São Paulo. Entre o luxo e o lixo, entre o reflorescer da Rua Augusta e a sua tomada de assalto pela gentrificação, leia-se especulação imobiliária.

O livro de Chico Felitti, com o qual passei o último final de semana grudado, despertou em mim várias sensações. Chorei algumas vezes com a história de Ricardo, me identifiquei com o esquecimento, com a lembrança de nossa finitude. Os amigos e os amores vão deixar as nossas as vidas e tudo que parece sólido, como diria Marx, um dia com certeza vai se desmanchar no ar.

A figura de Ricardo foi mais de uma década onipresente em minha vida. Desde o final da década de 1990 e até, digamos, 2012/14, frequentava a Rua Augusta, ainda um ponto de encontro para o início e fim de noite das LGBT, dos curiosos, enfim, de todos os corpos que buscavam esbarros. Porém, é uma época que morreu, não sobrou quase nada dos pontos em que eu vivia e que, quase sempre, encontrava Ricardo.

Livro de Chico Felitti que narra a vida de Ricardo e Vânia/ Foto: Marcelo Hailer


Lembro de algumas vezes tê-lo cumprimentado e o ajudado com alguma peça de teatro. Alguns desses encontros foram na esquina da Augusta com o metrô Consolação sentido centro. Era basicamente certo que o encontraríamos por lá, mais tarde ele estaria em algum ponto da mesma rua comendo e descansando.

Durante a leitura, me lembrei que a figura de Ricardo sempre me despertou curiosidade. Queria saber por que o rosto dele tinha ficado daquele jeito, queria saber da vida dele. Bom, essas respostas encontramos na reportagem de Felitti e no seu livro, que aprofunda e nos leva para outros lugares.

Araraquara. Além da Rua Augusta e de Ricardo serem onipresentes na minha formação, digamos, na passagem para a vida completamente adulta, a cidade de Araraquara também tem a sua história. Foi lá que uma amiga-irmã viveu o seu momento mais feliz na vida. A chamarei de Bela.

Bela, que também vivia comigo para cima e para baixo na Rua Augusta, viveu uma temporada de quase 10 anos em Araraquara, onde foi estudar humanidades. Lembro que na época em que partiu para a cidade tão longínqua fiquei triste, mas logo descobri que poderia visitá-la algumas vezes e assim o fiz.

Na primeira visita que fiz a Bela em Araraquara, ela estava radiante, nessa época vivia em uma kitnet próxima do centro. Foram dias memoráveis, nos embriagamos, fomos conhecer as costas de Cristo, o outro lado da cidade, naquela época com muitas ruas de terra e casas novas sendo construídas. Hoje devem estar pavimentadas, acho, pois nunca mais visitei aquela região.

Nesta primeira visita nunca vou me esquecer da tarde sábado, um calor de mais de 30 graus, o cheiro de laranja que predomina sobre a cidade e nós dois lendo, recitando um para o outro trechos do livro “Ame e dê vexame”, de Roberto Freire. Ficamos horas discutindo sobre os amores, monogamia, poligamia e o deixar partir. Foram dias memoráveis.

Na segunda visita, ela já estava morando em uma casa, a qual dividia com outra pessoa, com quem compartilhava intimidades. Essa casa ficava de frente para uma escola infantil e tinha um jardim maravilhoso. Lembro que, antes de chegar em seu lar, tinha passado a noite anterior em São Carlos, onde fui ao encontro de uma pessoa que, mesmo que rapidamente, despertou um profundo interesse.

Cheguei na manhã seguinte, virado e perfumado de álcool. Bela continuava sorridente, mas, desta vez, além de irradiante, continha acúmulo de histórias e experiências, se não estiver enganado, da primeira visita para a segunda já tinha transcorrido quase dois anos. Enfim, cheguei e fui recebido com festa.

Foi nesta ocasião que ela me levou, pela primeira vez, a um encontro xamânico, foi a minha primeira experiência com ayahuasca. Só poderia ter sido com Bela. Nunca vou me esquecer: fui para o encontro espiritual fantasiado de Rua Augusta, ou seja, roupas pretas e um nike de cano alto, preto e com alguns detalhes amarelo. Ninguém se importou, acharam graça e me receberam de braços abertos.

Alguns dias depois iríamos à Parada LGBT de São Carlos. Naquele tempo eu rodava o estado de São Paulo cobrindo paradas fora da capital, perdi as contas de quantas, e sempre achava tudo aquilo, fora do centro urbano, profundamente subversivo. Ainda acho que é.

Engraçado essa costura da história de Ricardo com Bela: ambos foram, em determinado momento, felizes em Araraquara. Ambos viveram amores nesta cidade. Ambos, quando voltaram à capital paulista, não foram mais felizes.

Ricardo, o personagem retratado no livro de Chico Feliti/ Foto: reprodução redes sociais



Bela quando retornou à São Paulo já não era mais a mesma, continuava ali, mas havia perdido parte do seu brilho que foi indo embora ano após ano. Foi tragada por uma série de questões, mas, entre elas, o modelo de vida que levamos – ou melhor, o qual somos obrigados a levar, a adoeceu. Nunca mais curou.

A minha saudosa amiga encerrou a sua missão por aqui em fevereiro de 2017. Ricardo completaria a sua estadia nesse plano em dezembro do mesmo ano.

Junto com Ricardo e Bela foram embora memórias de uma vida, mas também de um coletivo. A rua Augusta também morreu, foi assassinada pela gentrificação, que ironia: foram as LGBT que revitalizaram e depois acabaram expulsas. Sem novidades.

Junto com Bela foi também uma parte da minha vida. E outra parte, no sentido coletivo, mas também de memória, foi embora com Ricardo, figura onipresente na minha vida noturna.

Eu e Bela felizes em Araraquara/ Foto: arquivo pessoal



Parte do meu brilho também foi embora. Quando somos obrigados a lidar com grandes impactos e perdas não há alternativa, a não ser ressignificação total da vida.

Nunca mais voltei para Araraquara ou São Carlos, mas tenho ótimas memórias. Também não vivo mais na Augusta, hoje passo por lá. Algumas coisas e pessoas morrem e o que nos resta é saber lidar com as memórias. Quando for bom, visitá-las, mas sempre com cautela, senão afundamos em círculo sem fim.

Fui feliz com Bela, em Araraquara, em São Carlos e na Rua Augusta, com a onipresença de Ricardo.

As memórias ficam, mas a vida já é outra, assim com a Rua Augusta e Araraquara.

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