Rosemberg Cariry: Nordeste é Cinema! – Por Filippo Pitanga

Se há uma região do Brasil hoje com os maiores polos criativos da sétima arte contemporânea definitivamente é o Nordeste

Foto: Divulgação
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Semana passada falamos um pouco sobre o incêndio da cinemateca nesta coluna e a necessidade de preservação da nossa memória cultural. Mas não podemos falar das obras sem falar de seus realizadores, realizadoras e territórios de resistência, pois falar de memória é também pensar nos lugares que ocupa.

Esta semana, o VI Cine Jardim – Festival Latino-Americano de Cinema de Belo Jardim (PE) está homenageando a carreira de um dos maiores mestres autorais no Brasil em plena atividade, Rosemberg Cariry (CE): Tanto pelo aniversário de uma de suas principais obras, nos 25 anos do Cult “Corisco e Dadá” (2006), com Chico Díaz e Dira Paes nos papéis-título; quanto por mostrar seu cinema de invenção até hoje em obras mais recentes, como o experimental “Notícias do Fim do Mundo” (2019) e o barroco “Os Escravos de Jó” (2020). Sem falar em cults como “Os Pobres Diabos” (2013), que está em exibição no Festival Olhar Periférico, numa dobradinha de Rosemberg (clique aqui).

De 9 a 28 de agosto, você pode acompanhar a 6ª edição do Cine Jardim: Festival Latino-Americano de Cinema de Belo Jardim (Pernambuco), em modo online tanto pelo site oficial quanto através da plataforma Cardume, em acesso gratuito. São seis longas-metragens brasileiros e 33 curtas-metragens produzidos no Brasil, México, Argentina e Espanha, numa seleção especial dentre os mais premiados e destacados deste interregno pandêmico, numa bela narrativa curatorial – vejam os filmes em sequência nas suas respectivas seções e potencialize como eles dialogam entre si. Confira lista dos filmes no final do texto.

Corisco e Dadá (1996), de Rosemberg Cariry, que completa 25 anos, é o filme de abertura do VI Cine Jardim, e já demonstra algumas das razões pelas quais o seu criador possui uma carreira extremamente vanguardista. Desde o tema com personalidades imprescindíveis da história do país, em muito invisibilizadas pelo mercado hegemônico do circuito comercial, ao plano de ação, ancorado nas areias do sertão que ganha vida através do constante som de vento e de pegadas no tempo, como se a fantasmagoria do nosso passado ainda estivesse presente até hoje nesses espaços.

Ao aludir a clássicos como “O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro”, de Glauber Rocha (1969), em termos estéticos pela saturação de cores, e quanto à mise-en-scène pela aridez e o cordel como nortes, Rosemberg trabalha a miscelânea de agentes atemporais como a política, a força popular e até a religião de forma caleidoscópica para dar vida à revolução social que o Nordeste representa.

Urgente, seco e ao mesmo tempo lúdico, existe certa inocência na pureza dos arquétipos trabalhados, não como ingenuidade e, sim, como intocados por mal-entendidos históricos que deixaram de lhes dar complexidades e camadas para substituí-los pela polêmica de fora-da-lei. É muito pungente ter tido tais figuras verídicas, símbolos de contestação, serem resgatadas tanto como brado emancipatório pelo cinema na época da Ditadura Militar Brasileira, quanto como libelo inconformista em períodos de retorno ao conservadorismo político contemporâneo – o que nos faz indagar o quanto de fato conquistamos a Democracia para nosso país, tênue e recente demais para não ser defendida com unhas e dentes. 

E não deixem de conferir também o poético “Os Pobres Diabos”, de Rosemberg Cariry, no Festival Olhar Periférico, que estende a linguagem sobre deslocamentos e descentralização dos eixos cinematográficos para trazer todo o folclore regional e mitologia onírica típicas de seu cinema para a itinerância circense.

É acompanhando estas personagens nômades pelos sertões interioranos que vamos redescobrindo o papel da arte em democratizar o acesso à cultura e educação, não obstante as condições precárias que, malgrado o fato, são impostas a quem fizer esta nobre abnegação. Os caminhões e vans que servem como transporte para a trupe de maltrapilhos, representando a faceta proletária da dignidade do trabalho, também são plano de fundo artístico do palco em que a maior parte das cenas ocorre.

Ao invés de vermos um circo por suas performances no picadeiro, vemos as relações humanas acontecerem nos bastidores, nos entreatos, mesmo que a trilha sonora nos pregue uma peça como se já estivesse valendo a apresentação ao vivo desde que eles acordam até os últimos minutos de fechar tudo e seguir viagem. Enquanto isso, a lona do circo é representada na maior parte das cenas com o céu azul ao ar livre como contraplano e o horizonte em panorâmicas infinitas, lembrando que não é o lugar que faz o artista, e sim a motivação que faz acontecer.

Um elenco magistral que vai de Chico Díaz a Silvia Buarque, Everaldo Pontes, Gero Camilo, Zezita Matos e muito mais, interpretando de Lampião (Lamparina) e Maria Bonita, ao Diabo que vai provocar as personagens... Tudo isso atravessado por diálogos rimados que brincam de fazer repentes com sonoridade crítica das palavras, sem deixar de ter humor, como conjugando “diplamacia” e “patifaria”, para criticar a corrupção dos podres poderes – liberdade esta que só poderia advir de uma companhia autônoma e irreverente de artistas mambembes como os aqui representados...

E se estamos falando de um cineasta cearense homenageado em Festival Pernambucano, vale ressaltar também que o efervescente núcleo criativo do cinema brasileiro encontrado mais do que nunca no Nordeste, numa onda mais forte até do que o Cinema Novo na década de 1960, precisamos falar também da Paraíba.

Em 5 de agosto foi celebrada a fundação da Paraíba e também foi a data que se iniciou, na plataforma de streaming Petra Belas Artes À La Carte, o festival “O Novíssimo Cinema da Paraíba”, realizado em parceria com a Fundação Cultural de João Pessoa (Funjope) e da prefeitura municipal de João Pessoa. Disponível até o dia 18 de agosto, a mostra - composta por sete longas e 17 curtas-metragens - leva aos assinantes e não assinantes o que há de melhor na produção cinematográfica recente do estado. Se você ainda não conhece, acesse por um período de experiência gratuito durante o festival.  

A mostra traz o que há de melhor na produção cinematográfica recente do estado. Já nos dias 10 e 11 de agosto acontecem duas superprogramações paralelas do festival, com conversas ao vivo sobre os filmes e o mercado de cinema na Paraíba:

“São onze anos da implementação da política pública de produção de obras cinematográficas pela Fundação Cultural de João Pessoa/Funjope, o Edital Walfredo Rodriguez de Produção Audiovisual, que leva o nome do cineasta primeiro da nossa Paraíba, que na década de 20, com uma câmera 35mm, desbravou o estado da Paraíba, do sertão ao litoral, documentando as mais diversas manifestações da nossa cultura, e em 1929 lança o filme Sob o 'Ceo Nordestino'”, explica Paulo Roberto, Gerente da Divisão de Audiovisual e Curador da Mostra.

“Com essa implementação inaugurou-se o Novíssimo Cinema da Paraíba, uma produção alicerçada na organização da classe trabalhadora do cinema local, que conquistou os meios de produção e agora colhe os seus frutos. São filmes de curta e longa-metragem, que, por meio de documentários e ficções, convidam a descobrir as diversas Parahybas desse Estado alicerçado na sua cultura marcante e multifacetada”, completa.

Entre os destaques do festival estão dois filmes inéditos: o longa “A república da selva”, de Manoel Fernandes Neto, que retrata uma república de estudantes localizada no litoral da Paraíba, meses após o impeachment da presidente Dilma Rousseff, e o rescaldo de uma ebulição política sem precedentes, e o curta “Cabidela's bar”, de Tadeu de Brito.

Outros destaques são os filmes premiados: “Sol alegria”, de Tavinho Teixeira e Mariah Teixeira, longa que conta com a participação de Ney Matogrosso no elenco e que teve sua première no Festival de Roterdã, na Holanda, para depois chegar ao Olhar de Cinema, em Curitiba, onde venceu o prêmio especial do júri no Festival;  “Rebento”, de André Morais, vencedor dos prêmios de Melhor Filme Internacional e Melhor Atriz no Diorama Film Festival, na Índia; e “Faixa de Gaza”, com Marcélia Cartaxo, uma história que se passa em um conjunto habitacional de periferia e acompanha Mago, chefe de um bando de jovens os aliciando. O curta participou de 15 festivais e mostras de cinema, entre elas duas participações internacionais nos Estados Unidos e Angola, colecionando dez prêmios.

Confira a lista completa de filmes no VI Cine Jardim:

Sessão de Abertura: Corisco e Dadá de Rosemberg Cariry.

Mostra Competitiva de Longas-metragens: A Mulher da Luz Própria de Sinai Sganzerla, As Órbitas da Água de Frederico Machado, Casa de Letícia Simões, Vermelha de Getúlio Ribeiro, Vil, Má de Gustavo Vinagre, Sertânia de Geraldo Sarno.

Mostra Competitiva de Curtas-Metragens: 23 Minutos de Rodrigo Beetz e Wesley Figueiredo, Ailin en la Luna de Claudia Ruiz, Ângela de Marília Nogueira, Aquele Casal de William de Oliveira, Atordoado, Eu Permaneço Atento de Lucas H. Rossi dos Santos e Henrique Amud, Baile de Cíntia Domit Bittar, Cabeça de Rua de Angélica Lourenço, Cadeia Alimentar de Raphael Medeiros, Caranguejo Rei de Enock Carvalho e Matheus Farias, Carne de Camila Kater, Cinema Contemporâneo de Felipe André Silva, Como Ficamos da Mesma Altura de Laís Santos Araújo, Êles de Roberto Burd, Epirenov de Alejandro Ariel Martin, Ex-Humanos de Mariana Porto, Ilhas de Calor de Ulisses Arthur, Sangro de Tiago Minamisawa, Bruno H. Castro e Guto BR, Teoria sobre um Planeta Estranho de Marco Antônio Pereira.

Agora confira os filmes do Festival “O Novíssimo Cinema da Paraíba”:

Lista de longas-metragens: A república da selva de Manoel Fernandes Neto, Sol alegria de Tavinho Teixeira e Mariah Teixeira, Ambiente familiar de Torquato Joel, Beiço de estrada de Eliézer Rolim, Jackson - Na batida do Pandeiro de Marcus Villar e Cacá Teixeira, Rebento de André Morais, Seu amor de volta (mesmo que ele não queira) de Bertrand Lira. Confira agora os curtas-metragens: A ética das hienas de Rodolpho de Barros, Acho bonito quem veste de Marcelo Coutinho, Animais na pista de Otto Cabral, Batom vermelho sangue de R.B. Lima, Bodas de Aruanda de Chico Salles, Cabidela's bar de Tadeu de Brito, Campana de Gian Orsini, Coletivo de multidão de Manoel Fernandes, Contínuo de Carlos Ebert e Odécio Antonio, CRUA de Diego Lima, Deus Não Acredita em Máquinas - DNA-M de Ely Marques, Faixa de Gaza de Lúcio César Fernandes, Hosana nas alturas de Eduardo Varandas Araruna, Lebara de Sérgio Ferro, Menino Azul de Odécio Antonio, Moído de Torquato Joel, Rafameia de Mariah Teixeira e Nanda Félix. .

*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.