Sobre a militância (3)

Valerio Arcary: “Uma militância de esquerda deve ser uma ação o mais consciente possível, portanto, o mais madura possível. A lealdade às ideias que se expressam em um programa deve ser superior à lealdade a pessoas”

Foto: Sayonara Moreno/Agência Brasil
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É cruel ter que aprender com as derrotas. A verdade é que, quando pensamos na escala do complicado processo de formação da consciência de classe das amplas massas, com suas oscilações, avanços e recuos, nada substitui a experiência. Mas quando pensamos na escala dos setores de vanguarda que buscam uma organização mais perene para lutar, seja estudantil ou sindical, popular ou camponesa, negra ou indígena, feminista ou LGBT, movimento ou partido, podemos aprender com o tesouro de ensinamentos herdados pelos que vieram antes de nós. Não precisamos “inventar a roda” de trinta em trinta anos. Devemos aprender com a experiência dos outros. Uma lição importante é que devemos seguir ideias, não somente líderes. Esse critério vale para qualquer organização, seja mais moderada ou mais radical. Uma militância de esquerda deve ser uma ação o mais consciente possível, portanto, o mais madura possível. A lealdade às ideias que se expressam em um programa deve ser superior à lealdade a pessoas. Leia também o primeiro e o segundo artigo da série sobre a militância As ideias por si só não transformam o mundo. Mas, se a excessiva credulidade é perigosa no terreno das nossas relações pessoais, ingenuidade política em excesso é fatal. Disso não decorre que não seja necessário construir lideranças. Elas são indispensáveis. São vitais. Mas ninguém pode estar acima do coletivo que representa. Instrumentos coletivos de luta tendem a ter direções coletivas. Direções coletivas erram menos que pessoas, porque a pluralidade impõe freios e contrapesos. Organizações coletivas são mais lentas, porém, mais eficientes. São, sobretudo, mais controláveis. Sendo mais participativas são, tendencialmente, mais saudáveis. Não são as qualidades excepcionais dos líderes que explicam, essencialmente, o pequeno ou grande caudilhismo. É, sobretudo, a fragilidade político-programática das organizações coletivas. Há uma dialética perigosa nesse fenômeno. As organizações coletivas são frágeis quando o que as sustentam não é a força das ideias do projeto estratégico. A potência da grande personalidade substitui o protagonismo da militância coletiva. O caudilhismo reflete sempre uma imaturidade subjetiva grande. Lealdade às ideias não é doutrinarismo, mas adesão a princípios. Lealdade incondicional a pessoas é formação de camarilha. Uma camarilha é um grupo de pessoas que se defendem umas às outras, não importa o que façam. Podemos ser melhores do que isso. As pessoas, mesmo quando têm qualidades excepcionais, são mais limitadas e imperfeitas que as organizações coletivas. Na situação em que vivemos as ideias enfraqueceram seu peso, e o peso dos líderes se agigantou porque a centralidade da imaginação estratégica se perdeu. A confiança na força das ideias diminuiu. Isso decorreu da crise do socialismo como projeto depois da restauração capitalista. O que ficou no lugar foi a improvisação tática. Debatemos, furiosamente, o que fazer amanhã, sem discutir para onde vamos. Improvisação tática na luta por reformas do capitalismo que não esteja ancorada na imaginação estratégica da luta pelo socialismo, na época em que vivemos, é a antessala do desastre. Uma das mais importantes lições da experiência histórica acumuladas pela esquerda, desde 1978/79, é que não há dirigentes infalíveis, por mais capazes que sejam. As ideias deveriam ser um marco de compreensão comum da realidade, e um ponto de apoio do que fazer para transformá-la. Acontece que as ideias só adquirem força política quando há pessoas dispostas a lutar por elas. Não há forma de lutar por um programa que não seja construir uma organização para defendê-lo. Nada substitui a construção de instrumentos coletivos. Talvez, uma das regressões mais impressionantes dos últimos vinte e cinco anos é que os mandatos de deputados de esquerda passaram a intervir como se fossem organizações coletivas. Não são. A participação dos ativistas nos mandatos pode ser maior ou menor, é verdade. Mais ou menos democrática. Mas a força dos mandatos de esquerda no Brasil decorre, em primeiro lugar, de sua capacidade operacional, não de um programa. A imensa maioria dos eleitos é representante de um setor na intersecção entre os explorados e oprimidos, e responde aos interesses mais imediatos da base social que os elegeu. Não há, na imensa maioria, salvo honrosas exceções, nem tempo, nem espaço, nem disposição para pensar além da renovação dos mandatos. As verbas parlamentares são elevadas. Já a capacidade dos coletivos se autofinanciarem com cotizações voluntárias limitadas. Essa disparidade material cria uma distorção. Os profissionais políticos têm muito tempo. Os militantes, pouquíssimo. Os instrumentos coletivos são pobres, os mandatos são prósperos. Essa dinâmica favorece o carreirismo. O carreirismo é uma doença política incurável. Outras são curáveis. O carreirismo, não. Porque o carreirismo tem e impõe uma lógica irrefreável: a manutenção dos mandatos termina sendo mais importante que a defesa da causa que justificou sua existência. Os meios transformam-se em fins. Por isso, são numerosos os deputados e senadores mutantes. A frustração política da vanguarda ativista com os partidos atingiu um grau muito elevado. A desconfiança afastou muitos entre os melhores militantes das organizações coletivas. A febre do independentismo contagiou. A consequência foi a atomização. Os partidos e organizações se enfraqueceram. Os mandatos passaram a ser, em maior ou menor medida, quem controla os partidos, e não o contrário. Organizações coletivas, evidentemente, também, adoecem. Mas sendo coletivas têm mais chances de se autocorrigirem. Claro que a necessidade de representação não diminuiu. O resultado foi que num mesmo partido passaram a conviver tantos “centros políticos” quantos os mandatos parlamentares. As pressões parlamentaristas, de um lado, e movimentistas de outro diminuíram o lugar dos partidos. O lugar do programa passou a ser encarado como um tema reservado para especialistas, intelectuais. Acontece que a experiência histórica ensina que teoria e prática são indivisíveis. Elaborar um programa não é o mesmo que escrever uma tese de doutorado, não é um desafio literário. Especialistas devem ter um lugar respeitado na esquerda e são muito valiosos, mas para encontrar as boas respostas é necessário saber se colocar as perguntas justas. São os lutadores, os militantes, os ativistas que acumulam experiência, no terreno da luta de classes, que têm as melhores condições de formulá-las. Mas uma imensa parcela do ativismo passou a se organizar, somente, em movimentos sociais fragmentados que se multiplicaram, e passaram a funcionar com a disciplina de partidos, mas sem programa para a sociedade. Em comparação, durante os quinze anos que vão de 1979 até 1994 prevalecia na esquerda o critério oposto. Os centros políticos eram as correntes e partidos. A militância que surgia das lutas sociais vivia um processo de politização e amadurecia se organizando em torno de programas. Havia variados programas e diferentes partidos, uns mais moderados, outros revolucionários, mas a tendência era centrípeta, não centrífuga, e essa dinâmica favorecia uma reorganização da esquerda em patamar superior aquela que existia antes da derrota de 1964/68. Abriu-se agora, com as derrotas acumuladas, desde 2015/16, uma nova etapa de reorganização. Ela, até este ano, se desenvolveu “a frio”, em um marco defensivo, ao contrário da situação aberta, em 1978/79, quando o processo foi “a quente”, quando do ascenso das lutas sociais na reta final da luta contra a ditadura. Mas, tudo pode mudar.
*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.