Trotsky e o Brasil, por Valerio Arcary

Trotsky tem algo a nos dizer? A teoria da revolução permanente foi a principal contribuição de Leon Trotsky após a derrota da revolução russa de 1905. Ela pode ser útil para refletirmos sobre os desafios da esquerda diante de um governo de extrema-direita como o de Bolsonaro?

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A expressão precoce mais conhecida em Marx é a última frase de sua introdução à crítica de Hegel em 1844: "Quando todas as condições interiores forem cumpridas, o dia de ressurreição da Alemanha será anunciado pelo canto do galo gaulês". Mais importante essa perspectiva internacional tornou-se um ingrediente básico da revolução permanente, especialmente através da experiência de 1848/49. Aqui também, a origem do termo revolução permanente na Revolução Francesa desempenhou um papel condicionante. Podemos nos lembrar da observação inicial de Marx de que Napoleão havia substituído a "revolução permanente pela guerra permanente". O significado histórico das guerras napoleônicas foi que elas espalharam a revolução burguesa para outras partes da Europa, ou seja, tornaram a revolução "permanente" (em curso) em escala internacional, ainda que limitando a revolução em casa.[1]

                                                                                        - Hal Draper

O ano que não começou se aproxima do seu fim. Uma melancolia prevalece na esquerda nesta véspera de Natal. A conjuntura não está fácil. Em momentos assim a teoria é mais necessária do que nunca. Porque a teoria nos oferece perspectiva histórica.

Trotsky tem algo a nos dizer? A teoria da revolução permanente foi a principal contribuição de Leon Trotsky após a derrota da revolução russa de 1905. A derrota abriu uma situação contrarrevolucionária. Trotsky estava preso, e foi condenado pela segunda vez para a Sibéria. Não podia ser pior. 

Não era uma elaboração que respondia somente à situação na Rússia. Não respondia às necessidades de uma etapa, mas ao contexto de uma época histórica. Ela mantém atualidade para pensarmos a revolução brasileira? Ela pode ser útil para refletirmos sobre os desafios da esquerda diante de um governo de extrema-direita como o de Bolsonaro?

O argumento forte da teoria, na formulação original do livro Balanço e perspectivas, era a perspectiva de que, mesmo em países retardatários, como a Rússia, que chegaram atrasados às transformações capitalistas, aqueles em que as tarefas históricas da revolução burguesa não tinham sido realizadas, estaria reservado aos trabalhadores a necessidade de ser o sujeito social na liderança da revolução democrática em aliança com todos os oprimidos, em especial, a maioria camponesa e as massas das nacionalidades, sob o jugo da tirania de Moscou.

Da hipótese que os trabalhadores seriam o sujeito social da luta contra a ditadura, decorria a conclusão que a esquerda socialista deveria lutar pela direção da revolução democrática. O mesmo problema se coloca no nosso horizonte na luta contra Bolsonaro. Não será a ala liberal da burguesia a força social capaz de derrotar a extrema-direita. Por isso, a questão central de estratégia é não ceder a liderança da oposição à bloco da burguesia liberal. A derrota de Bolsonaro deve abrir o caminho para um governo de esquerda. Mas como abrir esse caminho?

Não podemos saber quando uma nova onda de mobilizações de massas poderá eclodir. Mas sabemos que ela virá. Quanto tempo será necessário para que a paciência das massas se esgote diante da tragédia sanitária, econômica e social? Não sabemos. Mas isso não significa que uma nova explosão, na escala do que foi Junho de 2013, mas desta vez direcionada não esteja fermentando.

Imaginar que a história vai se repetir, e que a estratégia que levou à vitória de Lula em 2002 deve ser clonada para 2022 é fechar os olhos para o que vivemos nos últimos quatro anos. Não é somente falta de imaginação. É, ingenuamente, perigoso. Nossos inimigos não toleraram um governo de moderadas e oncertadas rformas. Essa via foi bloqueada. Lutaremos em todos os terrenos, inclusive no eleitoral, inclusive pelos dioreitos políticos de Lula, mas, da próxima vez que uma oportunidade histórica se abrir a mão não poderá tremer.

      O horizonte de uma esquerda capaz de aprender as lições do golpe institucional de 2016 deve ser a preparação da revolução brasileira. Os russos, tampouco, podiam saber qual seria a duração do intervalo entre 1905 e uma nova onda revolucionária.

       Trotsky defendia, doze anos de 1917, que a vitória na revolução contra o Czarismo deveria ser a antesala de uma segunda revolução em processo ininterrupto, em permanência, contra o capital.

“Afirmando que a nossa revolução é burguesa nos seus objetivos e, por consequência, nos seus resultados inevitáveis, fixam-se limites a todos os problemas que levanta esta revolução; mas isto quer dizer que se fecham os olhos perante o fato de o autor principal nesta revolução burguesa ser o proletariado, que todo o curso da revolução empurra para o poder”. [2] 

Considerando a maturidade de condições históricas, que se definiriam à escala internacional, estaria colocada a possibilidade de substitucionismo social e um desenvolvimento por saltos históricos. Esta análise se fundamentava na teoria do desenvolvimento desigual e combinado.

O capitalismo russo reproduziu, no percurso da passagem protelada da sociedade agrária para a urbano-industrial, um traço peculiar no desenvolvimento dos Estados com regimes obsoletos. Mas o fez em uma escala imensa, comparativamente, mais intensa: o amálgama de formas mais modernas e as mais arcaicas resultou numa formação econômico-social, especialmente, peculiar. Nela, o atrasado condicionava a existência do mais avançado e, vice-versa, o mais moderno impunha uma totalidade que era maior e mais complexa que a soma das partes.

Toda formação econômico-social em países retardatários convive com contradições internas dilacerantes, expressão do desenvolvimento desigual e combinado: a estrutura social mesma se atrasa em relação ao desenvolvimento das forças produtivas. Grandes massas camponesas no campo, às vezes, numericamente, muito expressivas subsistem muito tempo depois da penetração da grande indústria. Também se perpetuam resíduos de classes médias de artesãos e comerciantes nas cidades, embora as suas atividades estejam, economicamente, ameaçadas pelo progresso técnico e pela concentração do capital.

Disto resulta que relações sociais arcaicas e obsoletas são uma obstrução à penetração de relações modernas e avançadas, mas como o desenvolvimento é desigual, surgem amálgamas desproporcionais: às vezes, o vigor das novas relações serve como um impulso adiante, mas outras vezes, contraditoriamente, reforçam e cristalizam uma ordem social-política inferior. As forças de inércia histórica, em mais de um sentido, são muito poderosas: elas retardam os processos de transformação social.

O debate sobre a natureza da revolução é um dos mais instigantes da teoria da revolução do marxismo, e remonta à velha polêmica entre a teoria da revolução por etapas e a teoria da revolução permanente. A dialética entre a força de pressão de tarefas históricas inconclusas, a resistência reacionária da burguesia e a disposição de luta dos sujeitos sociais resume a teoria da revolução permanente, seja qual for a sua versão, desde Marx até hoje.

O substitucionismo social, o núcleo “duro” da teoria, se apóia na compreensão de que, considerado o estágio de desenvolvimento à escala internacional, a gravidade da crise revolucionária, ou a impossibilidade de adiamento da satisfação das necessidades sociais exerce um grau tão elevado de pressão, que as tarefas que, historicamente, corresponderiam a uma classe, mas que, pelas mais diferentes razões faltou ao seu encontro com a História, passariam a ser cumpridas por outra. Era, talvez, nesse sentido que Marx pensava o famoso “a História não se coloca problemas que não possa resolver”.

Claro que o próprio Marx, foi sempre muito cauteloso em retirar conclusões teóricas apressadas. Por isso, só esboçou a possibilidade de substituição da burguesia como sujeito social, e ainda assim, em um texto essencialmente “alemão”: a famosa Mensagem à Liga dos Comunistas. Apresentou nessa Mensagem uma proposta que trabalhava com a hipótese de que a pequena burguesia poderia substituir a burguesia na revolução democrática, abrindo o caminho para a entrada em cena dos trabalhadores. Ou seja, uma reedição da experiência jacobina, mas que deveria ir além, através da entrada em cena do proletariado para fazer a revolução permanente, transformando a revolução política democrática em revolução social anticapitalista.[3]

Como sabemos, esta hipótese não se verificou, ou só se manifestou, muito parcialmente, e foi derrotada nas revoluções de 1848. As transições tardias assumiram, finalmente, formas não revolucionárias, tanto na Alemanha (o regime bismarckista, com seu exdrúxulo equilíbrio de forças sociais, que permitiu o aburguesamento dos junkers, sem revolução camponesa, e a industrialização capitalista sem desmoronamento do II Reich), quanto, em muito menor medida, na Itália.

A explicação “última” para esse processo tortuoso, está em uma dialética entre revolução e reforma, que escapa às análises que perdem a referência da dimensão internacional da transição burguesa: é porque a burguesia francesa ensaiou, mesmo que “com o freio de mão puxado”, uma segunda revolução para derrotar a Restauração, em 1830, que a burguesia alemã, renunciou à sua revolução de “1789” em 1848. Alertada pelo exemplo de Paris para o despertar das novas forças sociais proletárias, sobretudo, na insurreicção de Junho de 1848, preferiu uma solução de compromisso com os “terratenentes” prussianos, e tolerou o bismarckismo até quase o final do XIX. Só então, se sentiu mais confortável, representada por um regime democrático/semi-bonapartista, construído por cima, através de reformas controladas, entre as quais, a legalidade do SPD, sempre foi uma das questões centrais de disputa. Todas essas observações, são ainda mais pertinentes para compreendermos os conflitos sociais na época mais revolucionária da história da humanidade.

No século XX, a engrenagem da revolução permanente resumiu as leis fundamentais do processo revolucionário contemporâneo: confirmou-se de tal maneira e em uma tal escala, que fazem os prognósticos, tanto de Marx quanto de Trotsky, parecerem muito tímidos. O substitucionismo social ultrapassou tudo que as mentes mais audaciosas pudessem prever, e quem sabe o que ainda nos está reservado no futuro.

Neste final sorumbático e macambúzio de 2020, olhemos para o Chile ou Argélia de 2019, para a Bolívia ou o Peru de 2020. A hora da nossa onda de mobilizações revolucionárias virá. Não sabemos quando, mas ela virá.

Feliz Natal.   


[1] É frequentemente ignorado que a onda revolucionária europeia, em 1848, era pensada por Marx com uma dinâmica de revolução permanente, também, na dimensão internacional, sem a qual seria insólita a perspectiva de vitória de uma revolução na Alemanha. A citação que se segue de Hal Draper é nesse sentido esclarecedora: “Marx nunca esperara que o movimento ganhasse sozinho em uma atrasada Alemanha, se limitado apenas às forças alemãs. Ele olhou para a Alemanha como um campo de batalha em uma guerra europeia (a revolução), e geralmente um campo secundário. Isso acrescenta outra dimensão ao conceito de revolução permanente; pois vê o curso da revolução à escala europeia, procedendo "em permanência" (em ondas contínuas) de um país para outro. Esta interação de país a país tem dois aspectos: o papel dos países mais avançados (mais industrializados) em relação a outros onde a burguesia ainda não havia conquistado o poder político; e o papel dos países opressores em relação às nacionalidades oprimidas (...) (grifo e tradução nossos) DRAPER, Hal. Karl Marx’s theory of revolution.  New York, Monthly Review Press, 1978. p. 241.

[2]  TROTSKY, Leon. Balanço e perspectivas, capítulo IV - A revolução e o proletariado. Disponível na internet em português no site: https://www.marxists.org/portugues/trotsky/1906/balanco/index.htm

Consulta em 21/03/2017.

[3] Como hoje a expressão “revolução permanente” está associada de forma irreversível à tradição política inspirada no pensamento de Léon Trotsky, alguns esclarecimentos são indispensáveis, para evitar confusões. O conceito “revolução permanente” era corrente nos meios de esquerda no final dos anos quarenta do XIX. Sua origem, ao contrário de um mito histórico recorrente, não era blanquista. Mais do que uma referência histórica de 1789 era um slogan de uso bastante generalizado, e muito amplamente aceito, para além dos círculos comunistas, até entre alguns democratas. A seguir temos o último parágrafo da Mensagem: “Mas a máxima contribuição para a vitória final será feita pelos próprios operários alemães, tomando consciência dos seus interesses de classe, ocupando o quanto antes uma posição independente de partido, e impedindo que as frases hi­pócritas dos democratas pequeno burgueses os afastem por um instante sequer da tarefa de organizar com toda independência o partido do proletariado. Seu grito de guerra há de ser: a revolução permanente”. MARX, Karl e ENGELS, Friedrich.Mensagem do Comitê Central à Liga dos comunistas” In Obras Escolhidas.  São Paulo, Alfa-Omega, p.92.

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