Trump, Biden e o cachorro abandonado, por Raphael Fagundes

Donald Trump elogiava o seu cão. Dizia que “a amizade nunca esteve melhor". “O Brasil o ama e os EUA o amam”, disse o presidente norte-americano, ao declarar que seu cão vinha “fazendo um ótimo trabalho”.[3] Mas, o que o Brasil teria que ver com o cão de Trump?

Foto: The Withe House
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Antes de começar, é preciso deixar claro que, qualquer semelhança do animal não humano citado neste texto com um ser humano, é mera coincidência. Seria ignóbil de nossa parte promover tal injúria e, portanto, já antecipamos nossas desculpas.

“Nos Estados Unidos, as causas referidas para entrega de cães em abrigos foram, em primeiro lugar, problemas comportamentais dos animais (46,8% dos casos) e, em segundo lugar, mudanças na disponibilidade de espaço, ou nas regras de conduta social do espaço ocupado pelo ser humano (29,1%). Ainda como causas importantes de abandono, constam o estilo de vida do proprietário do cão (25,4%), a diferença entre a expectativa (sejam elas emocionais, físicas ou sociais) do proprietário, a preparação deste novo dono para a chegada do animal e a realidade nos cuidados do cão (14,6%)”.[1]

Ou seja, o cão deve se adaptar as necessidades de seu dono, caso contrário, ele será abandonado. Isto quer dizer que, para este animal encontrar um novo dono, é necessário que este último se encaixe nas condições comportamentais dele (muitos donos adotam um cão às cegas, apenas por achá-lo “fofo" e depois se arrependem), ou se este cão for treinado e tiver seu comportamento alterado.

“Nos Estados Unidos, cães com maior risco de serem abandonados foram cães machos, antes dos dois anos de idade, sem raça definida, com tempo de posse inferior a dois anos, adquiridos a baixo ou nenhum custo e que morderam uma pessoa no último mês”. Trump comprova essa estatística, já que havia adquirido um cão e o manteve em sua posse exatamente por dois anos. E agora o abandonou. Mas não sabemos se o animal havia de fato mordido alguém, embora fosse extremamente raivoso.

Luiza Alves e Simone Steyer utilizam a teoria do apego para compreender a interação humano-animal. Nela identifica-se a garantia de proteção e segurança. Partindo de John Bowlby, que analisa o apego essencialmente entre mãe e filho, entende-se que a aproximação entre ambos “garantiria proteção e segurança ao bebê”. Há, também, uma relação de bem-estar na reciprocidade entre dar e receber carinho.[2]

Donald Trump elogiava o seu cão. Dizia que “a amizade nunca esteve melhor".  “O Brasil o ama e os EUA o amam”, disse o presidente norte-americano, ao declarar que seu cão vinha “fazendo um ótimo trabalho”.[3] Mas, o que o Brasil teria que ver com o cão de Trump? Por que nós o amaríamos, embora amantes de animais, o bicho de estimação do líder norte-americano?

Geralmente, quando se compara o relacionamento entre pessoas à relação homem-cão, trata-se de uma metáfora que alude a uma relação de submissão. Embora, na verdade, esta convivência fraternal, homem-cão, não seja tão submissa, já que os seres humanos que se dedicam a ter um animal de estimação desenvolvem um relacionamento emotivo de dependência, e, de certa forma, recíproco. O animal de estimação não é mais um ser passivo nesta relação.

A percepção do sofrimento animal acentuou-se no século XX devido ao “enfraquecimento ou a transformação das crenças religiosas e filosóficas”, que destacavam a diferença homem-animal. Muitos protetores abandonaram até mesmo a Igreja pelo fato de o cristianismo não ser tão amigável com os animais de outra espécie. Membros de esquerda do parlamento acreditavam que não era necessário criar leis para os animais, já que era “preciso ter piedade pelos homens antes de tê-la pelos animais". [4]

Contudo, com as transformações nas sensibilidades humanas, estas concepções se alteraram e a Igreja Católica, por seu turno, liderada pelo Papa Francisco, promoveu o franciscanismo e consequentemente a causa animal. Para o caso da política, temos hoje candidatos de esquerda, como o caso de Boulos na cidade de São Paulo, que apresentam como proposta a criação de uma secretaria municipal dedicada aos animais.

Como a maior parte dos seres de seu tempo, Trump e seu cão demonstram um relacionamento recíproco. Seu cão se sentia feliz, forte, satisfeito por ter um dono que tanto se parecia consigo. É uma questão de autoestima. Então, se dava ao seu dono e recebia em troca (nada material de verdade) carinho e confiança. Aliás, até mesmo entre os seres humanos, a relação de confiança é um dos principais motores da modernidade, como explica o sociólogo liberal Anthony Giddens.

Agora com a saída de Trump da presidência dos Estados Unidos, o seu cachorro ficou abandonado. Será que Joe Biden, o novo presidente da maior potência econômica do mundo, vai querer adotá-lo?

Estudiosos observam que muitas das emoções que levam os indivíduos a adotarem um cão são as mesmas que os levam a adotar uma criança. Incluindo aí o desejo de ser pai/mãe. Na maior parte dos casos, embora exista o altruísmo, “a adoção ocorre para satisfazer os desejos dos próprios adotantes".[5] A grande psicanalista Nise da Silveira, dizia que os cães são animais que se tornam “amigos de destino (e), sem dúvida, para muitos deles, o único elo de vida que dá calor ao rude mundo externo”.

O cão abandonado por Trump possui um temperamento muito adverso deste possível novo dono. A questão é que, desde tempos imemoriais, os homens se beneficiavam do relacionamento com os cães para a proteção territorial e na ajuda para a caça. Embora hoje os elementos que levam a adoção de um animal de estimação sejam em grande parte de caráter emocional, há, em alguns casos, a necessidade prática.

A adoção pode solucionar problemas relacionados à “ameaça potencial nas áreas de saúde pública (devido às zoonoses), social (desconforto com relação ao comportamento animal), ecológico (principalmente no que se refere ao impacto ambiental) e econômico (custos com a estratégia de controle populacional)”. Além disso, há problemas para o próprio cão, tornando suas “condições de saúde física e mental deficientes, agravadas pela maior suscetibilidade a estados de sofrimento e exposição a maus tratos”.[6]

O nosso cão abandonado, portanto, poderia causar doenças (principalmente na difusão da raiva), aumentar os prejuízos no meio ambiente (que já são grandes), além dos problemas sociais e econômicos.

Mas, certamente, Joe Biden adotará o cão abandonado por Trump, devido à ameaça de adoção por outros donos - chineses provavelmente. Ou seja, a adoção se dará por questões práticas, não emocionais. A necessidade primitiva de proteger o território irá convencê-lo a pagar por bons adestradores capaz de amansar o cão raivoso.

[1] ALVES A.J.S.; GUILOUX A.G.A.; ZETUN C.B.; POLO G.; BRAGA G.B.; PANACHÃO L.I.; SANTOS O.; DIAS R.A.; Abandono de cães na América Latina: revisão de literatura / Abandonment of dogs in Latin America: review of literature / Revista de Educação Continuada em Medicina Veterinária e Zootecnia do CRMV-SP / Continuous Education Journal in Veterinary Medicine and Zootechny of CRMV-SP. São Paulo: Conselho Regional de Medicina Veterinária, v. 11, n. 2 (2013), p. 34 – 41, 2013.

[2] LUIZA ALVES, SIMONE STEYER. Interação humano-animal: o apego interespécie. Perspectivas em Psicologia, Uberlândia, vol. 23, n. 2, pp. 124 - 142, Jul/Dez, 2019.

[3] https://www.google.com/amp/s/veja.abril.com.br/mundo/trump-elogia-bolsonaro-antes-de-jantar-na-florida/amp/

[4] BARATAY, E. Comover-se com os animais. In: CORBIN, A., COURTINE, J-J. e VIGARELLO, G. (Dirs.) História das emoções. Petrópolis, RJ: Vozes, 2020, p. 232.

[5] Mendonça,  T.  R.  O.  de;  &  Queiroz  e  Melo,  M.  de  F.  A.  Adoção  de  Cães  por  Universitários: um  estudo  ator-rede sobre  a  relação  humano/não-humano. In: Pesquisas  e  Práticas  Psicossociais,  9(1),  São  João  del-Rei,  janeiro/junho  2014.

[6] ALVES A.J.S. op. Cit.

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