Um Brasil que se equilibra entre seu Harold e seu Felipe – Por Manoel Herzog

Eu só não vou é dar palanque, ou considerar o que fala, o seu Felipe, já que eu tenho qualquer respeito por Literatura pra levar em conta uma opinião cretina. Fecho com seu Harold mesmo.

Foto: Biblioteca Nacional da Nova Zelândia
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Embora não seja todo mundo que o conheça, seu Harold é um homem cuja opinião merece ser considerada, balizar o entendimento médio. Talvez nem tanta gente conheça o seu Harold porque a competência sobre a qual ele opina com tanta proficiência é restrita a um público intelectual, este cada vez mais raro: Literatura. Não devia ser assim, no entanto.

Não vou dizer que seu Harold é a maior autoridade viva em Literatura. Primeiro, que o pobre, pra tristeza nossa, morreu faz um ou dois anos. Segundo, porque isso de "maior autoridade" é perigoso atribuir. Teve Northrop Frye, Samuel Johnson, Antônio Cândido, temos aí a Leyla Perrone-Moisés e a Eliana Robert Moraes, vivinhas. Mas cito o seu Harold porque, que eu me lembre, até ontem era o único crítico a fazer uma consideração simultânea sobre a obra de dois autores opostos por nada menos que um diâmetro na circunferência literária. Seu Harold falou pra quem quisesse ouvir que o afro-brasileiro Joaquim Maria Machado de Assis era um dos maiores gênios da literatura universal, e também falou, ele, um entusiasta da anglofonia, que a série Harry Potter é responsável pela imbecilização das futuras gerações, e que não se pode considerar literatura séria.

É, mas pouca gente deve conhecer, ou ao menos saber, quem foi o seu Harold Bloom. Todavia, aqui neste país de gerações imbecilizadas, todo mundo conhece seu Felipe, o senhor sexagenário que vive na padoca, bermuda frouxa, cofrinho à mostra,  tomando sua breja, falando alto um monte de bobagem, repetindo absurdos que o WhatsApp veicula, deblaterando contra o Estado de bem-estar social, malhando a universidade pública. Seu Felipe dirige à moça do balcão pilhérias machistas que a constrangem, para gáudio dos seus amigos de balcão, outros coroas escrotinhos que sobre tudo opinam.

Muitos dirão não saber quem é esse seu Felipe aí. Retruco que ele não é um, mas muitos, é uma abstração, o tipo médio que se tornou protagonista da História, que não precisa se chamar necessariamente seu Felipe. Pode ser Nelson, Zé, Antônio. Agora que todos estão certos de quem falo, que todos têm uma padaria perto, ou uma praça, um ponto de táxi, um seu Felipe todo seu pra chamar de seu Felipe, conto-lhes a última dele: ao contrário do que professou o sábio seu Harold, seu Felipe defende que não se devia oferecer Machado de Assis aos jovens na escola, que é chato, e que legal é Harry Potter.

Como seu Felipe é cidadão de bem, preza muito a família. Teve um filho varão, que batizou Felipe Júnior. Este, por seu turno, deu sequência à dinastia gerando um Felipe Neto. Todos os Felipes desta alegre cepa repetem o que o vovô fala. Que bom era em 64, que o Brasil não faz cinema que preste. Que Machado de Assis é chato e Harry Potter legal. Mas é direito de todo Felipe pensar do jeito que ele quiser.

Eu só não vou é dar palanque, ou considerar o que fala, o seu Felipe, já que eu tenho qualquer respeito por Literatura pra levar em conta uma opinião cretina. Fecho com seu Harold mesmo, que estudou o tema a vida toda e sabe do que fala. Já vivemos um tempo de filósofos youtubers que opinam sobre tudo, embora nunca tenham formulado uma teoria que os habilitasse como tal, filósofos. Agora, literatos youtubers, absolutamente incógnitos, na tradição de estudos de um vovô sabido, dão pitaco sobre o que não tangenciam. Reitero, é livre a opinião. Causa-me estranhamento é levarem em conta.

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