Durante um ano, nossa colunista entrevistou vítimas de estupro e abuso; conheça uma das histórias...

Aqui na Fórum, temos um espaço dedicado a contar as histórias de mulheres e meninas vítimas de violência sexual no Brasil. Durante um ano, nossa colunista Ana Beatriz Prudente entrevistou vítimas de estupro e inspirada pelos seus testemunhos tocantes, escreveu essas crônicas que você lerá aqui

Manifestação contra a cultura do estupro (Foto: Fotos Públicas)
Escrito en OPINIÃO el

Aqui na Fórum, temos um espaço dedicado a contar as histórias de mulheres e meninas vítimas de violência sexual no Brasil. Durante um ano, nossa colunista Ana Beatriz Prudente entrevistou vítimas de estupro e, inspirada pelos seus testemunhos tocantes, escreveu essas crônicas que você lerá aqui.

Vamos às histórias!

“Meu nome é Luíza, tenho 30 anos, venho de uma família da classe operária. Meus pais sempre batalharam muito para sustentar a família e garantir que eu e meus irmãos estudássemos. Apesar de pobres, tivemos uma infância e uma adolescência com muita fartura e pudemos nos dedicar exclusivamente aos estudos.

Minha mãe, depois de trabalhar durante muitos anos em uma fábrica de cosméticos, foi demitida e, sem ter uma formação superior, foi muito difícil retornar ao mercado de trabalho em um posto semelhante. Então, a alternativa que ela encontrou foi executar serviços domésticos. Ela foi governanta na casa de um juiz e todo dia, depois da aula, eu encontrava minha mãe no trabalho e fazia minhas lições em uma biblioteca que seus patrões possuiam. Enquanto isso, minha mãe coordenava os empregados. 

Passei minha adolescência cercada por muitos livros de direito, ouvindo atrás das portas o juiz e seus amigos conversando sobre direito e, mesmo sem ter qualquer ligação com o mundo jurídico, eu sentia que aquele seria o meu universo, que eu queria estudar para me tornar um dia uma profissional da área.

Nossa família era pobre, mas muito organizada. Meu pai, durante muitos anos, atuou como assistente administrativo dentro de uma fábrica. Logo, aprendeu muito observando o contador e os demais administradores trabalharem e levou todo esse conhecimento para casa. Tínhamos pouco, mas contávamos com uma casa própria em um bairro distante, e éramos uma família que aplicava bem os poucos recursos.

Por isso, havia uma reserva financeira para pagar os meus estudos e dos meus irmãos, claro que não seria em instituições caras, mas com valores acessíveis, na qual poderíamos estudar com dignidade, sem passarmos por qualquer constrangimento. Então, segui meu destino e entrei em uma universidade para cursar direito.

A primeira aula que tive no curso de Direito foi a de Teoria Geral do Estado. Esta aula foi marcante para mim, não só pelo conteúdo importante que me introduziu a compreender o Estado, mas pelo meu professor. Um homem alto, que vestia um belo terno, eloquente, simpático. Era impossível não olhar para aquele professor, era impossível não prestar atenção nele. E assim foi, para mim, interessante e hipnotizador durante todo o primeiro semestre. No fim de cada aula, todas as alunas o cercavam para tirar dúvidas, para comentar alguma coisa. Ele era extremamente popular.  

Eu também tinha vontade de me aproximar dele para conversar, mas eu era muito tímida. Naquela época, eu tinha namorado apenas uma pessoa e, falando em figuras masculinas, só tinha mais contato com meu pai, meus irmãos e primos. Ou seja, não tinha essa experiência de comunicação com o sexo oposto, então ficava sempre ali observando de longe todas aquelas alunas em volta do professor. 

Havia muitos comentários pelos corredores do curso de direito sobre ele, mas boatos a gente nunca sabe se são verdadeiros ou falsos. Diziam que ele saía com alunas, outros diziam que ele namorava com um professor. O mais estranho de tudo era que ele não tinha perfil nas redes sociais. Todos estranhavam porque um professor tão popular não estava nas redes sociais. Enfim, ele era o assunto!

Acredito que muito do seu fascínio era justamente o fato de ser tão popular e, ao mesmo tempo, tão discreto em relação à sua vida particular. Ninguém sabia exatamente se era casado, se namorava, se era heterossexual ou homossexual. Havia um grande mistério em relação à sua intimidade e eu acredito que era justamente isso que o tornava ainda mais interessante para algumas alunas que ficavam curiosas a seu respeito.

O primeiro semestre do meu primeiro ano de faculdade chegou ao fim, ainda estava bem longe do fim do curso, claro, mas já estava vivendo meu grande sonho. O final deste período foi uma experiência intensa com provas e mais provas, seminários etc. O professor popular de Teoria Geral do Estado optou por devolver as provas para os alunos a partir de uma conversa individual. Então, ficamos todos em fila e entramos um por um na sala de aula. Eu estava muito nervosa, pois tinha sido uma prova dissertativa na qual eu estava muito tensa e havia colocado uma grande pressão sobre mim. Estava apreensiva na fila pensando em minha nota.

Chegou, então, minha vez: entrei na sala e lá estava ele, com um terno azul marinho de risca de giz, com uma camisa social rosa claro, gravata vinho e lenço vinho no bolso. Era a pura elegância, parecia que tinha saído de um editorial de moda da revista Vogue. E eu, diante dele, nervosa como nunca, pois até aquele momento não havia visto alguém tão elegante assim. De tão tensa, eu fiz menção de sentar à cadeira, mas, acabei “sentando no ar”, caindo no chão em seguida. 

Não preciso dizer o quão envergonhada fiquei naquele momento. Ele, no entanto, gentilmente levantou e me ajudou a me erguer e a sentar novamente à sua frente. Pediu que eu me acalmasse porque a minha prova havia sido a melhor da turma. Enquanto lia minha avaliação, o professor fazia observações muito elogiosas que me deixaram muito emocionada, estava muito feliz por ser elogiada por aquele homem.

Ao sair da sala, eu me despedi ainda encabulada e o professor, bastante sorridente e simpático, disse-me que eu tinha muito potencial e que deveria continuar naquele caminho. Sai da sala muito satisfeita, estava extasiada, eu gargalhava. Meus colegas logo comentaram: “Com certeza, você foi muito bem porque está radiante”.

Normalmente, eu sempre ia da faculdade para a casa ao término das aulas, não costumava frequentar os bares dos arredores, como muitos dos meus colegas. Eu me sentia culpada e sabia que meus pais tinham batalhado muito para me colocar na faculdade, sentia que tinha uma dívida com eles, assim, me cobrava muito. Aquele dia, porém, foi diferente, eu queria me permitir tomar uma cerveja, absorver os elogios, a nota 10, então, sai e fui para o bar da frente, sozinha. Fiquei um tempo ali, até que começou a chover e, como eu pegava transporte público, decidi esperar a chuva passar.

O bar estava já meio vazio por ser final de semestre, fiquei vendo a chuva cair e tomando a minha cerveja. Logo entrou pela porta o professor charmoso, todo molhado. Ele apertava a ponta do paletó pela qual escorria muita água, quando me viu foi ao meu encontro e me cumprimentou, dizendo que ficaria por ali até a chuva passar. Perguntou, então, se podia sentar comigo. Aceitei e ficamos conversando, contei toda a minha infância, sobre a minha família, da qual eu me orgulho muito. Enquanto eu me abria com ele, cada vez mais, não havia abertura por parte dele para que eu soubesse da sua vida particular. No momento em que a chuva cessou, o professor levantou e me disse estar cansado e precisava ir, apesar da adorável companhia. Em seguida, ele me perguntou como eu iria para casa e, apesar de eu recusar num primeiro momento, o professor me deu carona relatando que aquelas tinham sido as melhores horas de seu dia e que seria ótimo estendê-las um pouco mais no trajeto até minha casa.

Eu estava me sentindo muito especial e para mim ele já não era mais tão distante e mitológico, comecei a enxergá-lo como um homem de carne e osso, sentia-me cada vez mais à vontade em sua companhia. Ao chegamos no portão da minha casa, ele estacionou o carro e ao me despedir estendi minha mão e acabamos nos beijando, depois o beijo se repetiu com intensidade e vontade. Aquele dia marcou o início de nosso namoro, trocamos telefones, ele foi embora e eu entrei em casa ruborizada, calada, mas explodindo de alegria.

Meus pais perguntaram se eu estava bem, e eu disse que sim, fui então dormir, mas não conseguia pegar no sono, sonhava acordada: eu havia beijado o homem mais bonito que eu já tinha visto!. Queria mandar uma mensagem para agradecê-lo, no entanto, tinha vergonha, não sabia o que fazer. Por volta das 2h chegou uma mensagem no meu WhatsApp: “Foi maravilhoso, ninguém pode saber o que aconteceu entre nós. Em breve, eu te procuro”. A mensagem era muito clara, a partir daí dormi feliz e tranquila.

Passaram-se três dias sem notícias do professor, não sabia se eu deveria procurá-lo, eu não dormia ou comia direito até que, finalmente, ele me escreveu convidando-me para tomar um café. Marcamos em um shopping, me arrumei muito, parecia que eu estava me aprontando para um casamento. Em geral, não gastava muito comigo, mas naquele dia me permiti, fui para o salão, me arrumei e me senti muito bem.  Minha sensação se refletia em minhas atitudes. Ao entrar no shopping, todos olhavam para mim, era como se eu transmitisse uma segurança plena. Quando cheguei para o café, vi que os olhos dele brilhavam, porque certamente nunca tinha me visto daquela forma. Eu não me maquiava ou me arrumava muito para as aulas.

O café e a conversa se prolongaram. Caminhamos de mãos dadas e ele me levou para jantar num restaurante muito chique, com guardanapo de pano, os garçons bem trajados. Para mim aquilo era um sonho, um homem tão gentil e elegante me levando para um jantar sofisticado. Em certo momento, eu simplesmente parei de pensar e aproveitei a noite. Este encontro se repetiu muitas vezes durante as férias, mas não jantávamos somente, íamos ao motel, por exemplo. Parei de me preocupar com o fato de que ele não falava nada sobre sua intimidade, embora, eu soubesse que havia algo de errado. Por outro lado, sentia que se eu o pressionasse ele podia não gostar e se afastar.

Quando as aulas estavam próximas de retornar, o professor sumiu novamente, não atendia mais o WhatsApp, nem aparecia. Semanas se passaram sem que eu recebesse nenhuma notícia dele, sem resposta por telefone ou email, que consegui na secretaria da faculdade. As aulas começaram e teríamos a continuação das disciplinas com ele, mas outro professor tomou seu lugar. Ninguém tinha notícias suas e eu não tinha como localizá-lo.

Até que em uma bela segunda, o escândalo estourou. Cheguei à universidade e vi todos muito tensos, alunos e funcionários espantados. Perguntei para um colega o que estava acontecendo e ele me relatou que o professor lindo e charmoso havia sido demitido. Perguntei então o motivo e soube que: quinze mulheres haviam se unido e fizeram uma queixa à diretoria contra uma série de abusos sexuais e assédio que haviam sofrido. Três delas eram funcionárias da instituição e, segundo soube, duas delas tinham filhos com ele: uma estava grávida e a outra tinha uma filha de um ano. Todas relatavam que ele as havia violentado. Claro, eu não acreditei em nada daquilo, eu defendia o professor com emoção e muitas colegas me chamaram de machista e anti-solidária. Mas, como nada era segredo naquela faculdade tão pequena, comecei a pesquisar sobre elas, tentei me aproximar de cada uma para compreender o que havia ocorrido. Algumas chegaram a me dizer o nome do restaurante e dos motéis que frequentavam com ele e, para minha surpresa, eram os mesmos lugares que costumávamos ir juntos. Eu acreditei no envolvimento, mas não no assédio.

Apesar de ter sido demitido, não houve mais consequências para o professor, já que essas mulheres não seguiram adiante com queixas à justiça e, assim, minha resistência em acreditar naquelas histórias era ainda maior, sobretudo, porque eu estava magoada com seu sumiço, eu estava apaixonada e não conseguia conceber estar apaixonada por um agressor.

Até que um dia, recebi uma ligação de um número desconhecido. Para minha surpresa era ele: não sabia se explodia de alegria ou raiva, parei para ouví-lo enquanto ele me dizia que tinha muita coisa para me contar e queria me levar para jantar. Embora relutante, concordei, queria compreender os fatos, o sumiço, ouvir sua justificativa, ainda que não tivesse certeza de que queria perdoá-lo. Então, durante o jantar, ele me revelou que aquelas relações tinham sido consensuais, de carinho e de respeito. Eu acreditei porque, de fato, nossa relação era consensual também. Não acreditava nos abusos sexuais.

Ao pedir a sobremesa e a conta, ele quis me levar ao motel, mas recusei dizendo que era muito cedo, que ainda estava sensível. No entanto, ele insistiu muito e disse que poderíamos ficar juntos somente, conversar ou assistir à um filme no motel, concordei sem saber que estava prestes a viver os piores dias da minha vida

Logo que chegamos, ele começou a me tocar de uma forma não consensual, de forma agressiva, e trancou a porta. Como o local era distante e com janelas pequenas, era difícil de ser ouvida, no entanto, cheguei a gritar. Não adiantou, pois ele me manteve em cárcere privado durante três dias naquele ambiente, onde fui seguidamente violentada e estuprada. Sofri abusos sexuais e psicológicos e, seguidamente, aquela pessoa que eu tanto gostava anteriormente, me dizia que se eu o denunciasse ninguém acreditaria em mim porque as câmeras do restaurante iam provar que nós estávamos em uma relação consensual. Dizia também que ele era muito influente e que se eu quisesse continuar a viver sem problemas e sem danos para as pessoas que eu amava, eu não devia dizer nada. Eu gritava, mas ninguém escutava. Quando o serviço de quarto levava a comida por uma portinhola, ele me mandava ficar quieta e me ameaçava novamente dizendo que faria mal à minha família.

Quando fui libertada, cheguei em casa e menti para todos, avisando que havia esquecido de carregar o celular, que viajara com amigos e estava impossibilitada de ligar. Levei uma bronca, claro, mas tudo ficou por isso mesmo. Fiquei uma semana muito quieta, não comia, tomava três banhos por dia, até que navegando pelas redes sociais, eu encontrei uma das moças que se dizia vítima daquele homem e que fazia também parte do grupo que o denunciou na universidade. Contei a ela tudo o que eu passei e me uni ao grupo. Senti-me honrada pelo simples fato de fazer parte de um grupo que procurou justiça. Arrependo-me amargamente de não ter me solidarizado a elas antes”.

Infelizmente, muitos adultos como a personagem Luiza são vítimas de abusos em espaços de educação, pois esses ambientes carregam reflexos de todos os problemas sociais que vivemos. Da mesma forma que a violência contra a mulher se manifesta em todos os espaços de convivência social, pois estamos inseridos em uma sociedade de machismo estrutural, não é diferente nas instituições de ensino. O abuso sexual nas universidades, muitas vezes, não ocorre dentro de seus espaços físicos, mas com pessoas ligadas à vida universitária da vítima, como vimos nesta crônica.

Luiza caiu nas mãos de um predador, que era extremamente sedutor, respeitado e que ocupava um cargo privilegiado na instituição. Usou assim desse espaço para abusar da personagem e de outras mulheres. Por isso, é tão importante destacar aqui que em toda instituição de Ensino Superior deve haver um espaço aberto para se falar e se discutir a violência de gênero. É necessário acolher a todos e, especialmente, as mulheres e LGBTS para que consigam compartilhar e relatar suas experiências sem medo de serem julgados e sem represálias. Ao tomar ciência do ocorrido, as instituições devem encaminhar o caso para as autoridades competentes, apoiar a investigação, acompanhando o julgamento do caso, protegendo e apoiando a vítima de seu agressor.

Há ainda uma invisibilidade grande dos casos, especialmente, dos anônimos, e das revelações dos atos de violência porque temos a tendência de considerar este tipo de violência como trivial. Desde a década de 1990 se fala e se estuda o tema, no entanto, muitas vezes, fechamos os olhos para ele. Há mulheres, por exemplo, que não sabem identificar ou diagnosticar algumas violências e que não têm ideia de que sofreram algum tipo de abuso.

As políticas públicas, embora existam, muitas vezes não acolhem 100% ou não são suficientes para mitigar o problema, além de não serem valorizadas. Pesquisas de especialistas da área de saúde da Universidade de São Paulo apontam que 1 a cada 3 mulheres na capital paulista sofrem, ao longo da vida, violência física e sexual por seus parceiros. Nas universidades paulistanas de 15% a 20% das mulheres experimentam abusos nos ambientes das instituições. Já 1 em cada 10 mulheres da capital de São Paulo dizem que já mexeram com elas sexualmente antes dos 15 anos, sem que elas quisessem.

Então, o abuso contra a mulher está embrenhado em nosso cotidiano. Há, certamente, consequências negativas em diversos âmbitos sociais e, inclusive, no mercado de trabalho, já que as mulheres vítimas de violência são mais suscetíveis à depressão, a cometer suicídio e à gravidez precoce ou indesejada.

Confira a primeira crônica da coluna Voz Para Elas aqui.

*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Fórum