"Zé Pequeno é o car*… Meu nome agora é Irmão Dadinho!", por Zé Barbosa Jr.

Que diferença há entre o que vende uma droga que promete paz e alegria para quem a consome, daquele que comercializa uma Bíblia a R$ 900,00, prometendo a mesma coisa?

Álvaro Malaquias, o Peixão, e o símbolo no Complexo de Israel (Reprodução/TV Globo)
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Esqueçam a clássica cena de “Cidade de Deus” onde o então Dadinho tem o corpo fechado por uma entidade no cemitério e muda seu nome para Zé Pequeno. Os tempos mudaram. Quem manda no morro agora tem nome e “sobrenome”: “Jesus Cristo é o dono do lugar”, dizem as pichações, confirmadas pelos muitos salmos escritos nas paredes, as referências bíblicas e, mais recentemente, a bandeira semita a tremular nos territórios conquistados. Eis que surge o “Complexo de Israel”.

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No final de semana, várias matérias em muitos veículos de informação trouxeram essa informação: o traficante Álvaro Malaquias Santa Rosa, conhecido como Peixão, de 34 anos, também autodenominado Arão (em homenagem ao irmão de Moisés, o líder libertador dos hebreus), chefe do tráfico nas comunidades de Cidade Alta, Vigário Geral, Parada de Lucas, Cinco Bocas e Pica-pau, fechou o cerco e domina tudo com os seus aliados, denominados de “Tropa do Arão”.

A muitos causa espanto a associação do tráfico às igrejas em muitas comunidades. E é de se espantar mesmo. Quem, como eu, viveu os anos 80 (pouco antes da explosão neopentecostal nas favelas e mídias) em igrejas evangélicas deve lembrar-se dos constantes testemunhos de “ex-bandidos” e “ex-traficantes”. Só que outro fenômeno começava a surgir, já anunciado por Mano Brown, em uma entrevista ao Jornal da Tarde, em 1997: “Tem gente que sai do crime e se entrega à religião. Mas tem também aquele cara que é religioso, vai à Igreja e - ao mesmo tempo – é o bandidão do pedaço. É a contradição que rola no mundo.”

A partir daí nada mais me espanta: o que colhemos ou o que se percebe hoje é apenas uma consequência natural de uma percepção religiosa que, com o tempo, se impôs de forma avassaladora: o evangelho de resultados, a teologia da prosperidade, onde os “eleitos por Deus” ficam ricos e têm o domínio do pedaço. E tudo isso sem preocupação nenhuma de parecer coerente com nada. “É Deus quem aponta a estrela que tem que brilhar.”

Tento traçar uma linha cronológica, um ensaio fotográfico mental: Peixão era adolescente na década de 90. O “Malaquias” no nome parece indicar alguma influência bíblica na história familiar. O pentecostalismo, braço evangélico mais predominante nas favelas e comunidades, é essencialmente feminino e negro (e esse pentecostalismo clássico não tem nada a ver com o neopentecostalismo. O pentecostalismo, acreditem, ainda é espaço de resistência). As décadas de 80 e 90 são as décadas do boom evangélico no Brasil, principalmente nas regiões de menor poder aquisitivo, com suas promessas de bençãos, riquezas e curas.

Só que o que prevalece na década de 90 é uma invasão do neopentecostalismo como projeto de poder e o evangelho de “batalha espiritual”, cujo objetivo maior era libertar pessoas, famílias e localidades de “maldições” às quais estavam submetidas, e muitas delas tinham origem nas… acertou quem disse “religiões de matrizes africanas”. Além disso a ética era militarista (é dessa época canções/hits como “O Nosso General é Cristo”, “O Exército de Deus marchando vai”, “Persegui os inimigos e os alcancei, os consumi, os atravessei”, “todos os seus inimigos cairão diante de ti”, etc) e a lógica de destruição do inimigo imperava e era necessária a conquista dos territórios para “Cristo”.

É essa a formação da “Tropa de Arão”. É essa a sua percepção de mundo. É a defesa dessa “fé”, que abençoa com riqueza (que ele vê chegar pelo tráfico), que destrói inimigos e põe pra correr os adversários (destruição e terreiros e conquista territorial), que impõe sua vontade, afinal serve a um Deus Todo-Poderoso e único, que reina absoluto no Universo.

Peixão (ou Arão, como quiserem) é produto disso tudo, ainda mais quando olha pro lado e percebe que entre o tráfico de drogas e o tráfico da fé a distância é mínima, pois que diferença há entre o que vende uma droga que promete paz e alegria para quem a consome, daquele que comercializa uma Bíblia a R$ 900,00, prometendo a mesma coisa?

O “Complexo de Israel” é mais complexo do que imaginamos…


*Esse artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Fórum.