ACOLHIMENTO

Aborto após estupro de crianças: especialistas dizem quais são as consequências

É importante entender os traumas que podem afetar as vítimas, como a menina de 11 anos de Santa Catarina, e o que pode ser feito do ponto de vista psicológico

Aborto e estupro: como seguir em frente.Créditos: Agência Brasil
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A trágica história da menina de 11 anos, grávida após ser estuprada em Santa Catarina, chocou o Brasil. O caso ganhou contornos mais dramáticos ainda depois que a juíza Joana Ribeiro Zimmer deu parecer proibindo a realização do aborto, que é legal no país nessas circunstâncias.

Além disso, a vítima foi afastada da família e internada em uma clínica, com o objetivo de evitar o procedimento de interrupção da gestação. Após intervenção do Ministério Público Federal (MPF), a menina, enfim, obteve permissão para fazer o aborto.

A criança, sem dúvida, foi exposta a inúmeros traumas, difíceis de lidar, ainda mais para uma menina de apenas 11 anos. Por isso, é importante entender quais as consequências psicológicas para ela e tantas outras vítimas do mesmo crime.

A psicanalista Maria Angélica Capozzi, que atua com educação e saúde mental, avalia que os efeitos que podem ocorrer nesses casos, do ponto de vista psíquico, são significativos.

“São prejuízos cognitivos e afetivos. No aspecto cognitivo, as crianças que são abusadas podem desenvolver problemas de atenção, ruptura no desenvolvimento da comunicação, de se corresponder afetivamente com pessoas da sua própria idade, de idades diferentes, podem ter sintomas de agressividade, déficit de atenção”, explica.

Maria Angélica lista consequências afetivas: “Elas também terão prejuízos de grande porte. Serão muito suscetíveis a medos, vão se isolar muito mais, a culpa pode ser cada vez maior ao longo dos anos. Podem, também, desenvolver muita raiva, desprezo pelo humano, solidão, podem ter pesadelos pela vida toda, tristeza, melancolia, baixa autoestima, embotamentos afetivos de todas as ordens, podem se tornar pessoas mentirosas, indiferentes a tudo e a todos, com comportamentos sexuais inadequados para suas idades”.

A partir disso, a psicanalista levanta questionamentos específicos no caso da menina de Santa Catarina: “Como essa criança foi escutada? Como foi abordado todo esse acontecimento? Então, é quase certeza que essa criança vai ter muita dificuldade de se relacionar, seja com os próprios pensamentos, os próprios desejos, seja com os dos outros”.

A psicóloga sanitarista Lumena Almeida Castro Furtado, docente do Departamento de Medicina Preventiva da Unifesp, afirma: “Essa menina sofreu, do ponto de vista emocional e psicológico, um trauma absolutamente grande. O estupro já é uma violência em si suficiente para que a pessoa possa ter um sofrimento emocional importante”, destaca.

“Com certeza, esse sofrimento emocional tem que ser cuidado. A gente não trabalha colocando uma previsão do que vai acontecer com ela por causa disso, porque o sofrimento mental, mesmo aquele muito intenso, a forma como vai ser elaborado, como vai ser tratado, como vai repercutir na vida da pessoa, depende também do apoio, do processo de cuidado que ela pode ter agora”, avalia Lumena.

Afastamento da família aprofunda o trauma

A psicóloga destaca que, além de todos esses problemas, a menina sofreu outras violências causadas pelo Estado, pois ela ficou, não só afastada da família, mas longe do convívio social, após a internação na clínica.

“Ela teve essa segunda violência enorme do Estado, tendo que passar de um lugar para outro, sendo tratada dessa forma, sendo negado a ela um direito que ela tinha, legal, de resolver isso de uma forma menos traumática. Portanto, essa vivência do trauma foi se aprofundando e se alargando no tempo”, diz Lumena.

Maria Angélica também alerta sobre o perigo que representa o afastamento da família e, novamente, propõe perguntas importantes: “Como foi tratado esse afastamento? Como ela passou por esse momento de ser internada, qual foi o preparo para isso? Ela sabia por que estava sendo levada para uma clínica? Alguém da família pôde estar junto com essa criança? Quem cuidou dessa transferência? Todas essas questões têm resposta?”.

A psicanalista entende que a falta de entendimento pode ser alimentada por muito medo e solidão. “Então, como foi dito a ela o que seria feito quando se decidiu pelo aborto? Ela sabia o que era? A menina tinha passado por uma situação de uso do seu corpo por outra pessoa, que foi o abusador. E, agora, com anuência, com os pais, os médicos, iriam novamente mexer com o corpo dela. Alguém explicou o que estava acontecendo?”, volta a questionar.

Maria Angélica ressalta que a situação de aborto, muitas vezes, é um grande problema para o adulto. “Imaginem para uma menina dessa idade. Pode se desenvolver aí, não só um aspecto de muito isolamento, de solidão, de falta de compreensão sobre o que está acontecendo, como também uma falta de se sentir protegida. A falta de respostas pode fazer com que os efeitos sejam absolutamente negativos”.

Intervenções da psiquiatria e da psicologia são fundamentais

Diante desse cenário, é importante entender qual a melhor maneira de tratar a criança, em relação ao aspecto emocional, para minimizar os traumas causados por esse tipo de violência.

“Com certeza, uma pessoa que passa por esse tipo de situação, seja na infância, na adolescência e até na vida adulta, vai precisar recorrer a todos os tipos de trabalhos que podem, efetivamente, ajudar essa pessoa. Isso pode ser feito pela psiquiatria, pela psicologia e, também, por outras equipes que estejam ligadas ao bem viver de todos nós”, relata Maria Angélica.

Ela ressalta, ainda, outro fator que não pode ser esquecido. “Essa família também deverá ser cuidada por assistência social, por médicos e psicólogos. Existem diferentes serviços sociais que podem ajudar nesses processos de acolhimento e tratamento”.

A psicanalista reafirma a necessidade que a criança, a menina nesse caso, e a família sejam apoiadas e tratadas por meio da psicologia e da psiquiatria. “A psiquiatria é quem vai determinar a necessidade ou não de medicamentos, enquanto a psicologia vai atuar com suas terapias”, resume Maria Angélica.

Lumena aponta que um fator muito importante, a partir de agora, é pensar qual processo de cuidado será oferecido à menina, qual ela terá acesso para poder processar a violência sofrida, para entender tudo que para ela foi significativo nessa vivência.

“Não só um cuidado imediato. Esse tipo de sofrimento psíquico tem que ter um cuidado continuado. Nesse momento, mais importante até do que a gente imaginar o que pode acontecer com ela, por causa dessa violência, é pensar como ajudá-la agora, como construir um processo de cuidado que se conecte com ela de forma mais longitudinal, que ela possa ter o tempo necessário de cuidado que precisa”, explica.

“Esse cuidado não é uma psicoterapia individual. Necessariamente, terá que ser um cuidado psicológico, em saúde mental, que possa agregar, além do cuidado terapêutico mais singular, outros apoios que ela possa precisar”, destaca Lumena.

“É uma criança, tem 11 anos de idade. Ela pode precisar de apoio na escola, porque isso pode ter repercussão nesse ambiente. Eu não conheço o núcleo familiar dela, não sei que recurso esse núcleo tem para poder lidar com isso. Porém, é fundamental o acolhimento da família em um processo de saúde mental para ela. Também os vínculos sociais e afetivos que ela tem precisam ser cuidados”, indica a psicóloga.

Lumena diz que “é preciso pensar em todos esses cuidados que possam dar conta de apoiá-la nos espaços sociais onde ela circula. Além dela ter vivido esse trauma, a violência se tornou pública. Então, pode ser que isso também afete de outra forma, tanto a vivência dela como da família, como nas redes sociais que ela tem, escola, vizinhos, amigos”, acrescenta a psicóloga.

“Nesse momento é fundamental articular um processo de cuidado em saúde mental para ela, que garanta um cuidado singularizado. Isso é o mais importante, porque o que vai acontecer com ela, do ponto de vista psicológico, a partir dessas várias violências que viveu, vai depender do processo de cuidado oferecido agora para que possa ser apoiada e ter, ao longo da vida dela, o menor impacto negativo possível”, relata Lumena.

Ela finaliza com um alerta: “Esse tipo de cuidado tem que fazer parte de uma política pública para todas as crianças, mulheres que passam por situações de violência”.