Como descreve um estudo publicado no periódico Nature Reviews Neurology, coordenado por pesquisadores do Departamento de Neurologia do Hospital Universitário de Liège, na Bélgica, "experiências de quase-morte (EQM) são episódios de consciência desconectada ocorridos em situações que envolvem ameaça física concreta ou potencial, ou eventos percebidos como tal".
Essas experiências são caracterizadas por "um conteúdo rico" de misticismo, e as teorias que buscam explicá-las cientificamente partem de modelos psicológicos, neuropsicológicos ou evolucionários.
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"Estudos têm tentado identificar as causas mais comuns associadas à ocorrências de EQMs", diz a pesquisa. Pelo menos 3% das experiências de quase-morte são associadas à ocorrência de lesões cerebrais traumáticas; 15%, a internações prolongadas em Unidades de Tratamento Intensivo (UTIs); e entre 10% e 23% ocorreram após paradas cardíacas.
As experiências são retraçadas a uma série de mecanismos psicológicos e neuropsicológicos, e podem ser divididas em até duas categorias, afirmam os autores: podem tanto estar relacionadas à percepção sensorial, como ouvir vozes e experimentar sensações físicas incomuns, quanto a experiências interpretativas — por exemplo, ter a impressão de "atingir uma fronteira ou ponto sem retorno".
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Ciência ou misticismo?
Como evidenciam os pesquisadores, há uma série de modificações físicas e cerebrais desencadeadas pelas EQMs. Algumas das mais notáveis são causadas pela interrupção parcial do fluxo sanguíneo no cérebro, quando há a elevação dos gases presentes na corrente sanguínea, que costuma ocorrer "em vários níveis de hipóxia [a falta de oxigênio nos tecidos corporais] ou isquemia [quando os tecidos deixam de receber oxigênio e nutrientes suficientes, levando à sua morte ou provocando danos significativos]".
Não à toa as formas mais avançadas de experiências de quase-morte foram relatadas entre vítimas de paradas cardíacas, em que há a forma mais grave de alteração no fluxo sanguíneo, evidenciam os pesquisadores.
"Pouco antes e durante a parada cardiopulmonar, o fluxo sanguíneo do cérebro é comprometido", o que resulta num rápido declínio do oxigênio e da glicose, além de um acúmulo de C02 no organismo.
Como a glicose é o "substrato primário" para a produção de ATP, a energia necessária para o funcionamento das células do cérebro, a interrupção da glicose torna difícil o controle dos sinais elétricos entre os neurônios, o que causa sua "despolarização" — quando há uma entrada de mais cálcio nas células e, consequentemente, uma excitação excessiva dos neurônios.
Segundo os autores, é esse desequilíbrio o responsável pela liberação descontrolada dos neutrotransmissores que geram as "experiências vívidas" e "místicas" mais comuns em EQMs.
Uma função adaptativa?
Uma outra proposição feita pelos pesquisadores relaciona, a partir de uma hipótese evolucionária, a ocorrência das experiências de quase-morte à tanatose, ou "imobilidade tônica", o processo de "morte aparente" que ocorre como reação passiva a uma situação de estresse ou ameaça.
A tanatose, uma reação genética avistada em alguns animais — como insetos, répteis, aves e mamíferos —, pela qual o organismo entra em um estado de paralisia temporária diante de uma ameaça como estratégia de sobrevivência, compartilharia uma origem evolutiva comum com as EQMs, diz o estudo. Ambas surgiriam como forma de responder a uma situação de estresse físico e psicológico intenso, e acredita-se que tenham como motivador comum as diferentes formas de atuação da serotonina no organismo.
A serotonina 5-HT1A, responsável pela produção de efeitos calmantes no organismo, ocorre tanto na tanatose como nas EQMs, assim como a serotonina 5-HT2A, que produz efeitos alucinógenos e modificações perceptivas, sensoriais e visuais, mais intensas, e que pode ser responsável, no caso das EQMs, pela impressão de "ouvir vozes" ou "sair do próprio corpo".
Quando a ativação do segundo tipo de serotonina é exagerada, ocorrem as EQMs, algo que se acredita "uma função adaptativa" dos organismos à medida que seu cérebro experimenta estresse extremo.
Agora, concluem os pesquisadores, resta saber quais seriam exatamente aquelas combinações de processos físicos e bioquímicos, dentre todos aqueles experimentados em EQMs, capazes de desencadear suas experiências "místicas".