Imóvel da Conselheiro Nébias não faz jus à memória de presos na ditadura – Por Gines Salas e Lídia Maria de Melo
Casarão teve inúmeras utilizações, mas não há provas de que sindicalistas foram presos e torturados pela repressão
Pesquisar um fato histórico exige rigor, senso crítico, muita leitura e cuidado. Por vezes, o pesquisador passa horas a investigar arquivos, que, no final, agregam pouco, ou quase nada, à sua busca. Quando determinado acontecimento, escolhido como objeto de pesquisa, já está muito distante em termos temporais, o desafio torna-se ainda mais árduo, diante da escassez de fontes, da ampliação de lacunas e de imprecisões históricas.
Partimos dessa premissa, para aprofundar a análise da tese, surgida na cidade há cerca de um ano e meio, sobre o suposto uso do imóvel situado na Avenida Conselheiro Nébias, 584, esquina com a Rua Alexandre Herculano, no bairro do Boqueirão, em Santos (SP), como ambiente de repressão a sindicalistas na ditadura militar, instalada pelo golpe de 1964.
Até admitimos a hipótese de que o local pode ter sido palco de violência contra presos correcionais, porque na atualidade ainda são comuns as denúncias envolvendo esse tipo de ato. Porém, em relação a presos políticos, desconhecemos e não encontramos comprovações nesse sentido. Embora, do ponto de vista pessoal e profissional, tenhamos bastante conhecimento sobre o assunto, decidimos realizar extensa pesquisa documental e testemunhal, envolvendo a nova tese, surgida, talvez, de um mal-entendido e baseada em fontes que carecem de análises mais aprofundadas.
Décadas atrás essa controvérsia seria resolvida com o testemunho de múltiplas vítimas da perseguição política empreendida pela ditadura em Santos. Lamentavelmente, os integrantes dessa geração, em sua maioria, já faleceram. Ressalvamos, porém, que alguns deixaram testemunhos gravados ou escritos. Nenhum menciona o imóvel da Avenida Conselheiro Nébias, 584. Seus descendentes, como um de nós, desconhecem essa versão a respeito do imóvel. Nessa avenida, havia locais utilizados pelos representantes do novo regime político, mas em outros números.
Levantamentos, que realizamos e já expusemos, apontam que o imóvel nº 584 teve diversas funções no decorrer dos anos. Em 24 de outubro de 1959, passou a sediar a 5ª Delegacia de Trânsito, ou 16ª Circunscrição Estadual de Trânsito (Ciretran), que anteriormente funcionava no número 187 da mesma Avenida Conselheiro Nébias. No fim de 1967, a Ciretran foi transferida para o primeiro andar do Palácio da Polícia, na Avenida São Francisco, 136, no Centro.
A partir de 1º de janeiro de 1968, no imóvel nº 584, instalou-se o 3º Distrito Policial, após reestruturação promovida pela Secretaria de Segurança Pública do Estado. Embora fosse uma unidade de caráter correcional, para atender diversos bairros da Zona Leste, inicialmente não dispunha de celas. Os detidos em flagrante delito eram encaminhados à Cadeia Pública que funcionava nos dois andares mais altos do Palácio da Polícia.
Durante uma emergência, noticiada em jornal, como crítica às instalações, o delegado informou que, por falta de cela, precisou manter um suspeito em um banheiro desativado, até que a transferência para a cadeia pública se efetivasse. Nessa ocasião, nem água para beber havia no distrito. Era necessário comprar em um bar em frente. A permanência do 3º DP nesse imóvel alugado durou dez anos.
Em 26 de janeiro de 1978, o então temido coronel Antônio Erasmo Dias, secretário de Estado da Segurança Pública, inaugurou a sede própria do 3º Distrito Policial, na Praça Gago Coutinho, na Ponta da Praia, onde ainda hoje permanece.
Em 17 de julho de 1978, durante o processo da abertura política, classificada como “lenta, gradual e segura”, pelo general Ernesto Geisel e sua eminência parda, Golbery do Couto e Silva, o Setor de Estrangeiros, subordinado à 4ª Delegacia de Ordem Política e Social (Dops-Santos), foi transferido para o imóvel nº 584 da Avenida Conselheiro Nébias.
Tratava-se de um departamento burocrático, que emitia documentos para imigrantes com pretensão de fixar moradia no Brasil, fiscalizava navios que chegavam ao porto e concedia visto temporário em passaportes. Funcionou no 2º andar do Palácio da Polícia, junto com os demais setores da 4ª Dops, até abril de 1974, quando foi transferido para o nº 397 da Conselheiro Nébias, até mudar em 1978.
No Palácio da Polícia, permaneceram os demais setores da 4ª Dops: o de Investigação; o de Expedição de Atestados de Antecedentes Políticos e Sociais; de Armas, Explosivos e Munições; de Segurança Bancária; de Registro de Zeladores, Porteiros e Moradores em Prédios de Apartamentos, além do Cartório e do Protocolo.
Em março de 1983, quando tomou posse o governador eleito André Franco Montoro, a Dops foi extinta e teve suas atividades transferidas para a Polícia Federal, assim como o Departamento Estadual de Ordem Política e Social (Deops), que utilizou, por longo período, sigla idêntica à da delegacia.
Em 1985, o imóvel nº 584 da Avenida Conselheiro Nébias voltou a ser sede da Ciretran, que funcionava na Rua Bahia, no Gonzaga, desde 1970, quando deixou as instalações do Palácio da Polícia. Em 2015, a Ciretran trocou de endereço. Até a atualidade, o imóvel nº 584 encontra-se vazio e em estado de deterioração.
Em março de 2024, às vésperas dos 60 anos do golpe de 1964, surgiu a versão de que o referido imóvel da Avenida Conselheiro Nébias, nº 584, teria sediado a antiga Dops de Santos, onde, clandestinamente, sindicalistas opositores da ditadura militar teriam sido presos, interrogados e torturados. Essa versão chegou a ser afirmada, categoricamente, em determinadas oportunidades.
A primeira vez foi em um cartaz divulgado em redes sociais na internet e na imprensa, como um convite para o ato marcado para 1º de abril, em frente ao imóvel. Durante o evento, essas informações foram reafirmadas, embora tenham, antes, sido contestadas por um de nós, que entrou em contato com organizadores. A partir de então, esse endereço da ex-Ciretran passou a ser mencionado como local de memória da repressão política em Santos. Até mesmo em um projeto que tramita na Câmara Municipal.
Como já afirmamos, em publicações, entrevistas e palestras, o auge da repressão da ditadura militar em Santos ocorreu a partir do golpe, em 1º de abril de 1964, até o final da década. Nos dias iniciais, centenas de sindicalistas portuários, metalúrgicos, petroleiros, bancários, do serviço de transporte municipal, advogados trabalhistas, políticos, jornalistas, gráficos, engenheiros, médicos, dentistas, lavradores, panificadores foram, por questões políticas, mantidos na Cadeia Pública, no Palácio da Polícia. Estavam à disposição da 4ª Dops, então chefiada pelo delegado Benedito Lellis, e da Capitania dos Portos, comandada pelo capitão de mar e guerra Júlio de Sá Bierrenbach.
Para liberar lugares nas celas, presos correcionais foram libertados, conforme jornais noticiaram e, posteriormente, ex-presos afirmaram em entrevistas e depoimentos. Para driblar a superlotação, os sindicalistas revezavam-se para sentar, deitar e dormir. Além disso, eram submetidos a interrogatórios sem a presença de advogados. Também não recebiam visitas de familiares.
No período compreendido entre abril e outubro de 1964, muitos foram transferidos para o navio-presídio Raul Soares, fundeado no meio do canal do porto, a partir de 24 de abril. Ali, também sofreram torturas físicas e psicológicas, sob a mira de metralhadoras, apontadas por membros da Polícia Marítima e por ordem de oficiais da Marinha. Não há qualquer registro, em reportagem, documento ou depoimento, da presença de presos políticos no endereço da Avenida Conselheiro Nébias, 584.
Até o dia do golpe militar de 1964, o movimento sindical de Santos era organizado, combativo e respeitado, nacional e internacionalmente. Essa característica agregou ao nome da cidade epítetos, como Cidade Vermelha, Barcelona Brasileira e Moscouzinha Brasileira, fato que contrariava o poder econômico, representado por empresários e uma parte dos políticos.
Durante os dez anos em que o imóvel 584 da Avenida Conselheiro Nébias abrigou o 3º DP, a tão admirada organização sindical santista já havia sido desarticulada. Sua liderança, depois de presa, respondeu a inquéritos militares, foi demitida sumariamente dos empregos, vigiada, processada, teve os direitos políticos cassados por dez anos e não causava mais “incômodos” aos agentes da ditadura. Antes do fim das décadas de 1960 e 1970, importantes líderes sindicais de Santos adoeceram e morreram precocemente.
No período de maior repressão em 1964, foram denunciadas torturas aplicadas aos presos políticos, tanto nas celas do Palácio da Polícia, quanto no navio Raul Soares. No entanto, não há notícias de que os métodos tenham sido os mesmos que se tornaram conhecidos a partir da vigência do Ato Institucional nº 5, principalmente, nas grandes cidades do país. Entre eles, o pau de arara, cadeira do dragão, afogamento, falso atropelamento seguido de morte, execução sumária, entre outras aberrações, ensinadas por agentes norte-americanos enviados ao Brasil.
Nesse contexto, tal qual afirmamos anteriormente, é improvável que tenha havido um centro clandestino de prisões e torturas em uma importante avenida da cidade, como a Conselheiro Nébias, e em frente à então tradicional e única Faculdade de Direito de Santos.
Se a Dops-Santos estava no Palácio da Polícia e os presos políticos, que se tornaram conhecidos, ficaram na Cadeia Pública, localizada no mesmo endereço, por qual razão uma delegacia comum seria usada com essa finalidade, quando o auge da repressão em Santos já havia passado?
E mais: onde teriam ido parar esses presos políticos supostamente detidos no imóvel da Avenida Conselheiro Nébias? Por que não denunciaram a suposta prisão com tortura, se em 1978 já ocorriam reuniões em Santos, para formar uma rede de redemocratização, reivindicar a anistia para ex-presos políticos, reconquistar direitos trabalhistas, além da autonomia política da cidade?
Em junho deste ano de 2025, durante ato realizado no imóvel da Avenida Conselheiro Nébias, 584, foram citados dois nomes de supostos perseguidos políticos, que ali teriam sido detidos e torturados: Geraldo de Moura e Manoel Gomes Campos. Em nossas pesquisas, constatamos que, para nenhum deles, foi elaborado um prontuário individual no acervo digital da Dops-Santos, disponibilizado pelo Arquivo Público do Estado de São Paulo (Apesp).
Além disso, verificamos, no site da Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional, a existência de várias menções a esses nomes em dois dos jornais regionais de maior circulação, na época. A pesquisa apontou que Geraldo de Moura e Manoel Gomes Campos tinham vários homônimos. Alguns com outro sobrenome acrescido. Em outros casos, os endereços residenciais eram diferentes e as atividades profissionais, totalmente distintas, iam de nobres a ilegais.
Em relação a Geraldo de Moura, ao que tudo indica, encontramos uma das fontes que fundamentam a tese contestada por nós. Em página policial de 1972, o jornal Cidade de Santos informou que um preso de 19 anos, com esse mesmo nome e que exercia a profissão de servente, acidentou-se, “no xadrez correcional do 3º Distrito”, com cacos de vidro das lentes de seus óculos, e havia sido socorrido. A nomenclatura do cárcere, utilizada pelo jornal, indicava que a cela era destinada a quem praticava crime comum.
Antes de prosseguirmos na análise do caso, fazemos questão de frisar que, por razões humanísticas, morais, civis e constitucionais, condenamos toda forma de violência contra pessoas, livres ou detidas. Garantir a integridade física de qualquer cidadão é dever do Estado. Somos membros de famílias atingidas pela ditadura militar e sabemos muito bem o que a violência contra presos representa em termos de perseguição e sofrimento.
Isto posto, consideramos que, embora não existam provas, não é impossível que Geraldo de Moura tenha sofrido agressão física nas dependências daquele 3º Distrito Policial. Naquela época, o Brasil vivia uma ditadura e não eram incomuns, assim como ainda nos dias de hoje, as denúncias de aplicação de violência no trato de detentos em delegacias correcionais espalhadas pelo país. No entanto, mesmo que tivesse sido agredido, esse detento não se tornaria, única e exclusivamente por esse motivo, um preso político, tampouco um sindicalista.
Dessa forma, rechaçamos a afirmação, sem provas, de que Geraldo de Moura tenha sido torturado por motivação política naquela delegacia policial em 1972. Principalmente, porque os que defendem essa tese têm por objetivo transformar aquele imóvel em um local de memória da ditadura em Santos. Se acatássemos essa ideia, seríamos obrigados a admitir que qualquer unidade policial de caráter correcional, em todo o país, poderia ser transformada em local de memória. O que, então, precisa ser definido é o tipo de memória que se pretende preservar: a de presos correcionais, ou a de presos políticos?
Em jornais da década de 1980, localizamos informações sobre outro cidadão, cujo nome era Geraldo de Moura Franco. Em junho de 1983, ele é citado como funcionário da Companhia Docas do Estado de São Paulo (Codesp), em duas publicações sobre uma olimpíada realizada pela empresa entre jogadores de dama.
Em novembro de 1985, o mesmo nome surge em editais de eleição do Sindicato dos Operários nos Serviços Portuários de Santos, São Vicente, Guarujá e Cubatão, concorrendo a suplente de diretoria na chapa nº 1, que foi derrotada nas urnas. Em novembro de 1988, ele volta a ser candidatar ao mesmo cargo na chapa nº 2, que também não venceu.
Desse modo, conclui-se que o doqueiro Geraldo de Moura Franco era sindicalizado, mas nunca se tornou um dirigente sindical, muito menos perseguido pela Dops. Até porque em 1983, como já mencionado, as atividades da delegacia de repressão, assim como a do órgão estadual de iguais atribuições, foram transferidas para a Polícia Federal. Além disso, em 15 de março de 1985, a ditadura militar chegou ao fim. E mais: não há evidências ou provas de que Geraldo de Moura, preso em 1972, era o mesmo Geraldo de Moura Franco, do Sindicato dos Operários Portuários.
Quanto a Manoel Gomes Campos, na versão apresentada durante o ato em frente ao imóvel 584 de Avenida Conselheiro Nébias, e também em artigo publicado em meio digital, tratava-se de um homem de 63 anos, que foi socorrido na Avenida Afonso Pena em 1969 e conduzido à Santa Casa, após tentativa de suicídio, por cortes no pulso. Conforme os expositores, os dados constavam em ocorrência do plantão do 3º Distrito Policial.
Por essas razões, concluíram que o homem fora submetido a tortura, e os policiais teriam forjado a tentativa de suicídio, para justificar os ferimentos. Esse homem seria o mesmo que ocupou o cargo de suplente do Conselho Fiscal do Sindicato dos Carregadores e Transportadores de Bagagens do Porto de Santos.
Diante da fragilidade dos dados apresentados como provas, decidimos pesquisar na imprensa e no acervo da Dops-Santos. Então, verificamos que havia na cidade alguns cidadãos registrados como Manoel Gomes Campos. Um deles, nascido em 20 de abril de 1924 e filho do casal Joaquim e Lauriana, era, de fato, associado a duas entidades de direitos de trabalhadores e decidimos pesquisar mais. Em 1950, vimos que ele era funcionário da Companhia Metropolitana de Armazéns Gerais e que, no ano seguinte, se casou.
Em fevereiro de 1958, esse mesmo cidadão assumiu a função de diretor gerente da Cooperativa de Trabalho dos Carregadores de Bagagens do Porto de Santos, para o exercício de 1958-1959.
Em 1962, por eleição, assumiu como membro do Conselho Fiscal do Sindicato dos Carregadores e Transportadores de Bagagens do Porto de Santos. Em 1966, edital atesta sua atuação como tesoureiro do mesmo sindicato.
Em 1971, foi eleito suplente do Conselho Fiscal da mesma entidade sindical. Em 1972, representou a diretoria na recepção, organizada por sindicalistas, ao superintendente do Instituto Nacional de Previdência Social, então identificado com a sigla INPS. Em 1974, ele voltou a ser citado como diretor tesoureiro da Cooperativa de Trabalho dos Carregadores de Bagagens do Porto de Santos, cargo que exerceu até 1977. Em 11 de agosto de 1979, o setor de necrologia de jornal local anunciou sua morte, ocorrida no dia anterior, aos 55 anos.
Como então sabemos que todos esses dados se referem a Manoel Gomes Campos, o sindicalista? Os dados que coletamos, como data de nascimento e nome dos pais, são idênticos aos que constam em sua ficha da Dops. No mesmo órgão, não há prontuário em seu nome. Como integrante de chapas que concorreram às eleições sindicais, seu nome e dados são mencionados em informes incluídos no prontuário do Sindicato dos Carregadores e Transportadores de Bagagens do Porto de Santos. Em nenhum, aparecem acusações de cunho político ou social com referência a ele.
Em outras publicações em jornais, sobre casamento de filho e óbitos de pais ou irmãos, é possível confirmar dados, como endereço residencial e nome de sua esposa, que são idênticos aos que constam na ficha da Dops. Desse modo, bastou uma conta aritmética para concluirmos que Manoel Gomes Campos, o sindicalista, tinha 45 anos em 1969, quando seu homônimo, socorrido por tentativa de suicídio, estava com 63 anos, segundo o documento policial.
A confrontação de dados, que se apresentaram iguais ou diferentes, levou-nos a concluir, portanto, que se tratava de duas pessoas distintas, registradas com nomes iguais. Ou seja, o Manoel Gomes Campos, sindicalista, não era o mesmo citado na ocorrência registrada como tentativa de suicídio. Em relação a ambos, não existem evidências, nem provas de que sofreram torturas no imóvel número 584 da Avenida Conselheiro Nébias.
Com base no que foi apresentado até aqui, consideramos equivocado classificar o imóvel da Avenida Conselheiro Nébias, 584, como um local de memória da repressão política da ditadura militar, pois as referências apresentadas, por quem defende essa ideia, não são consistentes. Temos plena consciência de que a construção de um memorial é algo nobre, legítimo e necessário. Está em sintonia com a criação do Memorial da Resistência em São Paulo, que funciona na antiga sede do Departamento Estadual de Ordem Política e Social de São Paulo (Deops-SP). Também se iguala a ações desenvolvidas no Rio de Janeiro e em Belo Horizonte.
Contudo, tal movimento precisa ser construído com o cuidado, rigor e o respeito que as vítimas e seus familiares merecem. Uma ação que busca preservar a memória dos que foram perseguidos pela repressão não pode ser desenvolvida com base em pesquisas pouco aprofundadas, ou em frases de efeito que colocam aqueles que discordam de suas posições como inimigos da luta por memória e justiça.
Existem diversos endereços que poderiam ser reivindicados como local de memória da repressão política na Baixada Santista. Para ficar apenas em alguns exemplos, citamos: a sede da Artilharia Divisionária/2, também conhecida como Quartel General, responsável por coordenar a Comunidade de Informações de Santos (Avenida Conselheiro Nébias, 210); a antiga sede da Capitania dos Portos de São Paulo, responsável por articular a repressão aos portuários (Avenida Conselheiro Nébias, 488); a Base Aérea de Santos, localizada no Distrito de Vicente de Carvalho, em Guarujá (Avenida Presidente Castelo Branco, s/nº); o 2º Batalhão de Infantaria Leve, conhecido na época como 2º Batalhão dos Caçadores, onde estiveram presos os desafetos do regime após a promulgação do AI-5 (Avenida Antônio Emerich, 203, em São Vicente); a sede da Guarda Noturna, na Avenida Conselheiro Nébias, 676; e o próprio Palácio da Polícia, que abrigava a Dops-Santos e a Cadeia Pública (Avenida São Francisco, 136), que esteve lotada de presos políticos já nos primeiros dias que sucederam o golpe de 1964, período erroneamente chamado de “brando” por determinados pesquisadores.
Por fim, resta a pergunta: o que é um lugar de memória? Sabemos que se trata de algo além de um espaço geográfico. É um local que liga o presente a gerações passadas e soma histórias de lutas, derrotas, conquistas, tristezas e alegrias, tragédias e superação. Envolve uma gama de sentimentos dignos de serem perpetuados e retransmitidos no futuro, com o objetivo de evitar a repetição de erros históricos e de atos que violem a dignidade humana.
O imóvel da Avenida Conselheiro Nébias, 584, definitivamente não reúne essas características. Não representa a história dos trabalhadores sindicalizados de Santos, que, a partir de 1º de abril de 1964, perderam a liberdade, o emprego, a saúde e ainda foram privados do convívio com a família, por defenderem direitos trabalhistas e humanitários, a democracia e a soberania nacional. Tampouco integra a memória de dor, luta e resistência dos familiares.
*Gines Salas Neto é professor da Educação Básica, mestre em História pela Unifesp e neto de Gines Sallas, servidor do DER que foi preso e torturado nos porões do DOI-Codi em 1975.
**Lídia Maria de Melo é jornalista, professora, pesquisadora, advogada, mestre em Ciências da Comunicação pela USP, autora do livro “Raul Soares, Um Navio Tatuado em Nós” e filha de ex-sindicalista Iradil Santos Mello, preso na 4ª Dops e no navio Raul Soares.
***Este texto não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.