Opinião

Lei municipal de São Vicente escancara uso político da fé – Por Danilo Tavares

Prefeitura do município do litoral paulista oficializa o cristianismo como manifestação cultural

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Lei municipal de São Vicente escancara uso político da fé – Por Danilo Tavares
Prefeitura de São Vicente. Divulgação/Prefeitura de SV

No dia 8 de abril de 2025, o prefeito de São Vicente sancionou a Lei Municipal nº 4.639/2025, de autoria do vereador Benevan Souza (Republicanos), que reconhece o cristianismo como manifestação cultural oficial do município. A iniciativa, aparentemente inofensiva, representa um grave precedente jurídico, político e simbólico: usa o sistema de reconhecimento cultural para institucionalizar uma religião hegemônica, sem critério técnico, participação social ou respeito à diversidade.

A lei foi aprovada sem qualquer consulta aos Conselhos Municipais de Política Cultural e de Promoção da Igualdade Racial, instâncias criadas justamente para evitar distorções como essa. O gesto revela não apenas autoritarismo, mas profunda ignorância sobre o que é patrimônio cultural imaterial — e sobre o papel do Estado em uma sociedade democrática e plural.

O que significa reconhecer algo como manifestação cultural oficial?

Quando o poder público transforma algo em manifestação cultural por força de lei está reconhecendo essa prática como parte integrante da identidade da cidade. Isso autoriza, por exemplo:

-Destinação de recursos públicos da Cultura e da Educação;

-Produção de materiais didáticos e curriculares;

-Realização de eventos oficiais com financiamento público.

Ou seja, não é só um ato simbólico — é uma política pública que possibilita impactos diretos sobre o orçamento, sobre o que é ensinado e sobre quem é visibilizado institucionalmente. No caso da Lei nº 4.639/2025, os recursos públicos poderão ser usados para promover a religião cristã — em detrimento de todas as outras.

No litoral de São Paulo, o reconhecimento de manifestações culturais religiosas ocorre de forma legítima quando vinculado a práticas enraizadas em comunidades específicas, como as festas de São Benedito, em Santos e São Vicente; a Procissão Marítima de São Pedro, em Guarujá; e a Festa do Divino, nas cidades caiçaras de Ubatuba e Cananéia. Essas celebrações são exemplos de como expressões religiosas podem ser reconhecidas como patrimônio imaterial, desde que carreguem identidade territorial, sejam transmitidas oralmente por gerações e contem com o envolvimento direto da comunidade local.

Por que a lei é um erro grave

Confunde fé com cultura

Reconhece o cristianismo como cultura oficial sem delimitar práticas específicas locais — contrariando todos os critérios técnicos e conceituais de reconhecimento do patrimônio cultural imaterial.

Fere o Estado laico e a pluralidade religiosa

Ao oficializar uma religião, desrespeita o artigo 19 da Constituição Federal e ignora outras expressões de fé presentes na cidade, como as religiões afro-brasileiras, indígenas, espirituais e a vivência dos não religiosos.

Apaga histórias não cristãs

São Vicente tem raízes indígenas, afrodescendentes e nordestinas. Ao eleger apenas o cristianismo como manifestação cultural oficializada, o município reforça uma narrativa colonial e eurocêntrica, marginalizando tradições historicamente perseguidas.

É institucionalmente autoritária

A proposta foi feita sem ouvir os conselhos culturais e raciais, atropelando a governança participativa. E foi sancionada por um prefeito que demonstrou falta de formação sobre direitos culturais e políticas públicas democráticas.

Cria um precedente perigoso

Ao permitir que qualquer grupo com força política transforme sua doutrina em "manifestação cultural da cidade", abre-se a porta para a captura ideológica das políticas culturais e educacionais por interesses religiosos.

Uma história contada por um lado só

São Vicente foi o primeiro núcleo urbano fundado pelos portugueses no Brasil — um marco da colonização. Reconhecer o cristianismo como herança cultural sem qualquer problematização reforça uma narrativa eurocêntrica e cristã que apaga a resistência dos povos indígenas e das populações afrodescendentes, igualmente presentes na formação histórica da cidade.

Como lembra a antropóloga Lilia Schwarcz, esse tipo de política simbólica produz o que ela chama de “racismo institucional simbólico”: quando o poder público nega visibilidade a tradições historicamente perseguidas. A própria cidade, por exemplo, há anos rejeita iniciativas para instalar símbolos de religiões afro-brasileiras, como uma estátua de Iemanjá, ou da cultura cigana, como a gruta de Santa Sara Kali — ao mesmo tempo em que ergue uma “Praça da Bíblia” com recursos públicos.

Lei Federal 14.969/2024 não justifica esse absurdo

A lei federal reconhece a influência histórica do cristianismo na formação cultural brasileira — não autoriza municípios a reconhecerem a fé como cultura local. O que vale para o plano simbólico da história nacional não pode ser usado como atalho para privilegiar uma religião em nível municipal.

Em outras palavras: a lei federal reconhece uma influência histórica, não legitima a institucionalização religiosa em nível municipal.

A quem serve essa lei?

A autoria do projeto é de um vereador vinculado à igreja evangélica neopentecostal e ao partido Republicanos — ambos com forte atuação na promoção de pautas conservadoras e religiosas, de rigidez moral e controle comportamental. O uso da política cultural para consolidar hegemonia religiosa é uma forma de populismo identitário: em vez de garantir diversidade, promove exclusão institucional.

Como alertou Pierre Bourdieu, a cultura pode ser usada como instrumento de dominação simbólica. E é exatamente isso que esta lei representa: uma tentativa de converter capital religioso em capital político, usando recursos públicos.

A Lei nº 4.639/2025 não apenas erra no conteúdo — ela erra no espírito. Ela confunde fé com cultura, rompe com a neutralidade do Estado, despreza critérios técnicos e reforça uma memória seletiva e excludente. Ao invés de valorizar as múltiplas vozes da história vicentina, ela impõe uma narrativa única, religiosa e politicamente motivada.

Reconhecer manifestações culturais não é um gesto decorativo. É um ato de justiça simbólica, reparação histórica e inclusão democrática. E nenhuma dessas coisas combina com exclusivismo religioso.

Assine pela revogação da lei

Não podemos naturalizar o uso da política cultural como ferramenta de imposição ideológica.

Assine aqui a petição pela revogação da Lei nº 4.639/2025.

Cultura é memória coletiva, não credo institucional.
Cultura é direito — não doutrina.
Cultura é diversidade, não imposição.

*Danilo Tavares (@danilotavaressol) é produtor cultural, funcionário público municipal e secretário de comunicação do PSOL de São Vicente, além de membro do Conselho de Economia Solidária de São Vicente e do Fórum de Economia Solidária da Baixada Santista e diretor da Casa Crescer e Brilhar.

**Este texto não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.

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