Mágoas de Março

Escrito en BLOGS el

Compus essa em Taboão, debaixo d'água como está a cidade.

Se Tom Jobim morasse no Pirajussara, talvez fosse assim sua 'Águas de março'...

(Há urgência de alimentos e roupas, principalmente para crianças. Neste 26/03, doações podem ser deixadas no “Quintasoito”- encontro mensal de artistas, agora com as grafiteiras do Punga Crew. Teatro Clariô - Rua Santa Luzia, 96 –Taboão da Serra/SP)

___________________________

MÁGOAS DE MARÇO

É pau, é treta, é lodo no caminho É no gesto o sufoco, é a gente sem ninho. É a casa arriando, o vexame em janeiro É sirene, é resgate, reza e desespero É o soro, a vacina, a lamparina na mão É na face um bueiro, entupida a razão É enchente de choro, melando o medo É o desconsolo, cachaça, o fogo tão cedo É o deslize previsto, é no chão o mocó É a foice na sorte, na cacunda a dó É o esgoto vazando, é quentar na fogueira É a maldita sirene, a luz na nojeira É defunto é entulho, Me desculpe o Jobim A gaiola atolada e duro o canarin É isopor, é garrafa, é tábua de passar Armário boiando, a viela um mar A parede rachada, o muro esfarela A praia de esgoto, a tifo, a sequela Arco-íris de vala/ Lixaiada brilhante Criança dormindo e o berço na avalanche É a miséria negreira em nova travessia Oceano tumbeiro do chicote à bacia É não ter documento, um barreiro a cozinha Se alojar na vergonha, enterrar a vizinha É perder certidão e brinquedo e fogão É deslize, é desmanche e não ter quem dá mão É o rodo que estoura e não guenta a lameira É o balde rompendo, é friagem, é bicheira São as mágoas de março fechando o verão É a promessa devida da outra eleição Arregaço na cerca, no peito e no mato É a fossa, é o prego, a urina de rato São as mágoas de março, é a merda no pão Sem manta, sem copo, sem teto e sem chão É cabeça abaixada, buscando quietar É marmita ganhada, é a vida na pá É o berro, o pavor, o enfarte, o despejo A criança assustando e correndo pro beijo A mudez do latido, a sobra da ração Flutuando enforcada a nossa criação É a trisca de vento, trazendo o terror É o fedor no tempo, cobrindo o calor É o povo espremido, o guarda-chuva virado De podre o beliche, dormir no estrado É enxada sem cabo, é cinco num colchão E ainda louvar, agradecer na oração É marreta, é olheira, é tosse, palafita A enxurrada é tempero lavando a marmita É sonhar ser alado e vencer temporal É no espelho do medo, estrelar o jornal É a chuva tão bela/ que germina a terra No reino do pneu, o automóvel que impera É a vingança do rio pela manta do asfalto Rasgando avenida e jorrando pro alto É o canal cinco chegando/ o treze, os barão Entrevista, holofote, o lucro na locução É a cifra banqueira levando a nação É mangueira, é lanterna, tombo na alagação Pirituba, Brasilândia Mauá, Diadema, Jabaquara, Cidade Ademar Capão, Taboão, Embu, Tucuruvi, Jaçanã, Guarulhos, Tiradentes, Perus, Taipas Grajaú, Sapopemba Cano, fé, graxa, terço, guia, capa, breja Gorro, quadra, fio, beco, poça, bota, febre São as mágoas de março, é a merda no pão Sem manta, sem copo, sem teto e sem chão São as mágoas de março fechando o verão É a promessa devida da outra eleição

(Foto: Reprodução)