Damasco, diretamente de......Amã

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Por Thomas Farran
Impressiona que até mesmo nas tendências negativas, a mídia portuguesa tenha um certo atraso.
Se na imprensa americana, temos figuras como Anne Barnard que cobre os eventos de Damasco diretamente de Beirute, agora temos o Público na vanguarda portuguesa a cobrir a capital síria diretamente de Amã, com Sofia Lorena.

A ideia de que, de alguma forma, a credibilidade da notícia aumenta de acordo com o raio geográfico é um tanto quanto insultuosa, e não deixa de ser cômica.
Último sábado, dia 21, o jornal Público publicou uma peça da "enviada especial" em Amã, para cobrir eventos em território sírio, de acordo com instituições estrangeiras.
No artigo, a jornalista assume a postura adotada por boa parte da oposição exilada, de que o conflito é uma revolução ao oposto de uma guerra civil, e que a situação é a mais simples e linear possível. Preto-e-branco.
Não existem maus rebeldes, nem sírios a favor do ditador, o que existe é uma revolução onde o povo luta contra o governo estabelecido. A já gasta e falsa dualidade do conflito, parece ainda ter uso.
É sabido que exitem sírios a favor da intervenção americana, como o exemplo dado da vila Kafr Nabl, na província de Idlib, região dominada por rebeldes, citada na matéria. Mas a razão da omissão de protestos contra a intervenção, e contra os grupos rebeldes como em Damasco e Aleppo, vai além de qualquer explicação.
O campo de refugiados de Za'atari na Jordânia, de onde a jornalista faz sua reportagem, é um conhecido campo de recrutamento do Exército Sírio Livre (ESL) que se usa da situação miserável de jovens e de seus pais contratar soldados à troco de benefícios, e no mesmo campo se observam os números de crianças e jovens nas escolas caírem por, segundo relatos, conta dos pedidos do ESL para frequentarem as mesquitas ao invés das aulas.
O que pode passar por alguns como inocência em reportar a situação, e que não existe pretensiosismo, já que ali os sírios estão a falar por eles próprios, não passa na realidade de desonestidade.
O simbolismo de figuras como General Idriss e Ammar Abdulhammid é esclarecedora nesse caso.
General Idriss, comandante do Conselho Supremo Militar do Exército Sírio Livre (baseado na Turquia), representante escolhido para liderar militarmente os rebeldes "moderados", é simbolo da fragilidade e desorganização dessa oposição.
Idriss é um reflexo do que é o ESL, extremamente dependente e desconexo. E esse fato tem sido constantemente varrido para debaixo do tapete pela imprensa "ocidental".
Para ilustrar existem dois casos recentes, o primeiro é o fato da ONU ter pedido ajuda e livre trânsito para as suas missões de investigação em território sírio, sendo que Gen. Idriss concordou com o pedido dizendo que facilitaria o trabalho das missões, segundo o New York Times. O que o jornal emitiu foi que ao mesmo tempo, outro comandante do ESL, Qassim Sa'ad ad-Din, não só negou que iria fornecer qualquer ajuda ou proteção aos enviados da ONU, como afirmou que o recente acordo Lavrov-Kerry poderia "ir para o inferno".
O segundo caso é o de Fahd al-Masri, outro comandante do ESL, que veio a público pedir que todos os combatentes estrangeiros deixem a Síria. Mais tarde, Idriss também vem a público negar que o ESL tenha feito tal pedido.
A seleção de Salim Idriss para liderar e representar o Exército Sírio Livre foi uma escolha obvia por parte dos financiadores, para que a "revolução" se venda mais facilmente se embalada com rótulos "moderados" e "seculares".
O ESL não é moderado, e não está sob controle.
Os relatos de envolvimento do ESL com abusos dos Direitos Humanos e do Direito Internacional vão desde sequestros até canibalismo, e a organização é aliada e trabalha em conjunto direto com a Frente de Liberação Islâmica Síria, sendo que existem combatentes que se declaram ativos em ambas as organizações.
É justo contar a história de Kafr Nabl, e das atrocidades do sanguinário regime de Assad por todo o país, assim como é justo contarmos as histórias de Latakia, Ma'alula, Hula, al-Bab e Aleppo e casos de sequestros como o de Domenico Quirico.
Os combatentes estrangeiros, que de repente são um problema para essa oposição, somam grande parte do contingente do Exército Livre Sírio e boa parte do financiamento do aparato. São combatentes vindos do Líbano, Argélia, Tunísia, Líbia, Jordânia, Arábia Saudita e mercenários da Croácia, Servia, Bósnia e Herzegovina, Kosovo, Kuwait entre outros.
Mas esses não parecem incomodar tanto quanto os libaneses do Hizbollah, que apoiam o regime.
Outro citado é Ammar Abdulhammid, mais um simbolo adorado no Ocidente, que supostamente passa genuína preocupação com o povo sírio, e imparcialidade para a resolução do conflito.
Abdulhammid é um dissidente sírio que em 2007 fundou a Fundação Tharwa, em Washington, e que contava entre os anos de 2007 e 2009 com financiamento do governo americano para as suas atividades.
O mesmo Abdulhammid que foi integrante do «Saban Center for Middle East Policy», um think-tank pró-Israel que leva o nome de Haim Saban, sionista e principal doador para a campanha de Obama nas ultimas eleições. Entre os principais parceiros do Saban Center estão países como Qatar, e Emirados Árabes Unidos, e no quadro de diretores estão figuras como Martin Indyk, ex-embaixador americano para Israel, ex-AIPAC, e escolhido por Kerry para mediar o fiasco das recentes negociações de paz entre as delegações israelense e palestina.
Ammar Abdulhammid é frequente convidado do governo israelense para colaboração e palestras em Israel e também conselheiro do «Syrian Center for Political & Strategic Studies», organização baseada em Washington, e parte do lobby da oposição síria no exterior.
Ao citar Abdulhammid, mais valia ter citado diretamente Kerry. A não ser que também o tenha sido feito.
Se há alguma preocupação, a mínima que seja, em honestamente apresentar uma terceira via que representasse a resistência síria de forma a não cair na falácia da dicotomia Regime x CNS, porque não citar e introduzir quem de fato apresenta uma alternativa, como Hassan Abdul-Azim e Haytham Manna?
Não é como se eles não existissem.
Ao invés disso levamos com a antiga receita de se reciclar velhas notícias e um editorial a se seguir religiosamente.
Do que interessa estar em Amã, se não é apresentado nada alternativo ao que já temos direto de Portugal? Questão de status?
O que poderia ser uma oportunidade de apresentar qualidade em reportagem é na verdade, mais do que já temos.
E o que temos é lixo.