Iraque 2.0 ?

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Por Thomas Farran
Dois anos e meio. Mais de 100 mil mortos. Cerca de 1.5 milhão de refugiados. Meias verdades.
São esses os números da guerra civil síria.
E era de se esperar que depois do embuste que foi a invasão do Iraque em 2003, mais do que a imprensa, mas a humanidade havia aprendido algo. Talvez fosse esperar de mais.
O facto é que é impossível abordar o tema de forma realista e justa do que se passa em solo hoje. Muitos ativistas em território estão incontatáveis na maior parte do tempo, e buscar um relato junto às autoridades sírias ou junto às oposições é pedir para ser enganado. Pela minha experiência em acompanhar o assunto, se tem alguém que mente mais que o regime do déspota Bashar al-Assad, esse alguém é a oposição.

Por norma, minha na verdade, gosto de utilizar de certa metodologia para não expor quem lê à informação corrompida, e à mim, porque artigo mal escrito tende a voltar para assombrar depois de um tempo.

Sei que muitos leram, viram, ouviram milhares de teorias, vindas das mais variadas fontes e não é a minha função desmentir, provar, ou rebater, nem dizer o que é verdade ou não. Não tenho autoridade pra isso. Ninguém tem.
O que posso pedir, é para relevar.
Nesse balé da desinformação onde o sugestivo se transforma em conclusivo, e onde todo mundo tem certeza de tudo, existem mais questões do que respostas.
Por exemplo, do que exatamente é formada a oposição?
Julga-se que de ativistas, cidadãos e simpatizantes, e muito embora eles façam parte, são uma (cada vez mais) minoria sufocada, caçada, e massacrada por ambos os lados.
Assim como no caso do Egito, tem-se que as oposições ou “rebeldes” como sendo algo homogêneo  e uníssono, e como no caso do Egito, está errado.
Infelizmente, pouco, ou nada, se ouve falar dos confrontos intraoposição.
Sim, as dezenas de grupos rebeldes que se formaram, e que atraíram mercenários de todo o canto do planeta, estão em uma constante e violenta guerra entre eles mesmos. Nos últimos dias, na imprensa independente árabe mais se tem ouvido falar das agressões entre grupos como a Jabhat an-Nusra e o Exército Livre Sírio, do cerco de vilas e aldeias pela Dawla al-Islamiyya, e a descoberta de valas comuns em Latakia do que propriamente os ganhos de território pelo regime.
Não vi nada de relevante na imprensa internacional, para não falar da portuguesa, sobre o assunto.
É essencial e importante colocar em perspectiva a ingerência externa das potências regionais como a Arábia Saudita, Qatar, Turquia, Egito, Irão e Israel e os interesses de países europeus, dos EUA, da Rússia, e da China.
É uma salada de interesses que é capaz de colocar o mais ávido entusiasta das Relações Internacionais em uma permanente crise existencial, mas que se estudada a fundo se encaixa no padrão da realpolitik que tem sido levada a cabo desde os inícios de período pós-Primeira Guerra na região.
A ideia geral do policy making da região é de que vale o momento, e que cada caso é um caso. Darei exemplos.
Os países do Golfo, liderados pela Arábia Saudita se opõe ao regime de Assad, o Qatar apesar de estar incluso nesse grupo discorda do tipo de oposição que se deve existir, e sendo assim, financia o grupo que acha conveniente. No caso do Egito, os dois países estão em pólos opostos, a Arábia Saudita está a apoiar os militares e o Qatar apoia a Irmandade, com suporte dos EUA.
A Turquia, dá guarita política e facilita a logística de grupos rebeldes na fronteira com a Síria, mas no Egito é feroz oponente dos militares e quem os apoia. O Irão busca a liderança na região, e para isso apoia o regime de Assad, com apoio da Rússia, mas quando o assunto é o Egito, o mesmo Irão é contra o golpe e reforça a posição com apoio do Qatar e na mesma linha de Washington.
Para Israel, a incerteza que se planta será mesma que lhe colhe. Apesar do raciocínio que a imprensa tenta fabricar de que independente do resultado Israel vai se beneficiar, a verdade é que nada poderia ser mais comodo do que a permanência de Assad, ou na pior das hipóteses, o prolongamento do conflito. O presidente sírio não apresenta qualquer ameaça e é uma conveniente ferramenta. A situação no Golan é a prova disso.
Nesse processo, nasce uma guerra por proxies e se criam, restauram e importam os mais variados grupos, dos mais variados antecedentes políticos, na tentativa de dominar o país.
Tentam vender a ideia de que organizações baseadas no Reino Unido, na Turquia, ou na França, como o Conselho Nacional Sírio (CNS), e o Observatório Sírio para os Direito Humanos são instituições credíveis, e prezam pela imparcialidade.
Não são.
São organizações que faltam em transparência, e que mais estão preocupadas em questões internas do que com a situação atual da população no país e fora dele. No CNS, imperam as disputas entre Abdulbaset Seyda (líder do conselho) e a Irmandade Muçulmana. Seyda, de origem curda vê dificuldade em chegar a um consenso quanto à condição dos curdos dentro do país, com o maior e mais organizado grupo dentro do CNS: a Irmandade Muçulmana Síria.
Os activistas em território veem seu trabalho constantemente descartado em prol da troca de informações o Exército Livre Sírio, e sem apoio esses ativistas continuam sem alternativa a não ser trabalhar de forma independente.
O Observatório Sírio, na pessoa de Rami Abdulrahman, enfrenta sucessivas acusações fraude e de falta de transparência, em um caso que lembra muito o de Rafid al-Janabi no Iraque em 2003, e de Sliman Boushuiguir na Líbia em 2011. Não é coincidência, é um padrão.
Ainda sobre a oposição, o ocidente criou a lenda do “islamita moderado” a fim de criar simpatia na comunidade internacional, e legitimar o apoio. Não existem islamitas moderados, tanto quanto não existem sionistas moderados, fascistas moderados ou anarquistas moderados. É um grupo de ideologias, e não uma ideologia per se; Ou se é, ou não é.
A luta armada é o cenário definitivo dos jogos de interesse.
Essa oposição armada é financiada não só por países terceiros, mas como também por empresários sírios abastados, que viram no conflito a oportunidade para a participação na Síria pós-guerra. São as proxies.
O Exército Livre Sírio, baseado na Turquia, foi o primeiro grupo organizado à reivindicar a luta armada e é formada por um relativamente pequeno número de desertores das Forças Armadas, e de milícias locais. Não por acaso, o mais em pauta, já que apesar do fato de ser extremamente desorganizada, e com sérios problemas de controle interno, é o único grupo que não faz alusão à guerra religiosa.
O mesmo não se pode dizer de grupos como a Jabhat an-Nusra, ramo da al-Qaeda, e da al-Dawla al-Islamiyya, grupo salafista importado do Iraque. Ambos são projetos em conjunto dos países do Golfo, Europa e EUA.
Não por acaso, após 2 anos, minorias como cristãos e curdos foram procurar proteção junto ao regime.
O que não se contava é que, ao contrário do que aconteceu no Iraque em 2003, o igualmente sanguinário regime de Assad não sofreu baixas significativas no corpo governamental. Para todos os efeitos, o regime continua funcional e coeso, e o exército continua a ganhar terreno como em Aleppo quando lutou ao lado das forças curdas contra “rebeldes”. O resultado, claro, foi uma cidade devastada.
As Forças Armadas deve muito da sua sobrevivência às milícias leais ao regime, e ao recente papel do Hizbollah ao sul do país. Esse último, que passou por algum distanciamento do Irão na história recente, está mais interessado em manter o conflito fora de solo de libanês do que em apoiar interinamente Assad.
A Rússia, tem a Síria como um dos seus últimos bastiões na região, e está disposta à defender esses interesses de forma agressiva.
Os interesses russos são estratégicos e comerciais. Estratégicos porque Tartus abriga o que é a ultima base militar russa no Médio Oriente, em local centralizado e estratégico, com acesso ao Mediterrâneo; Comerciais porque a Rússia tem acordos dessa natureza com o regime de Assad, mais especificamente o fornecimento de armamento no valor de 5 bilhões de dólares. E após perder US$ 13 bilhões com as sanções do Irão, e mais de US$ 4 bilhões com o cancelamento dos contratos na Líbia, a indústria armamentista russa está com dificuldades. Para além das armas, existe um grande volume de capital russo investido em infraestrutura, energias e turismo na Síria, com valores perto dos US$ 20 bilhões.
Em última analise, os interesses americanos são os interesses de Israel.
Não existe no consenso de Washington, uma genuína preocupação com a situação na Síria, e esse é um motivos que se discute intervenção militar ao oposto de pressão político-diplomática, e um dos motivos para a situação se arrastar a mais de dois anos. Não se ouve falar, no discurso bipartidário norte-americano, em pressão para resolução politica, cessar-fogo ou ajuda humanitária. Ouve-se falar de intervenção militar, armamento de rebeldes, no fly zones e drones.
Independente do que se descubra sobre o uso de armamento químico em Ghouta, a decisão já estava tomada.  Não existe uma linha vermelha.
A decisão de intervir militarmente é desastrosa, e servirá apenas um propósito: prolongar a guerra.
O resultado mais provável dessa intervenção é o alastramento da guerra para os países vizinhos, e o envolvimento oficial de forças militares estrangeiras.
No meio de tudo isso, as verdadeiras vítimas, o povo sírio.
Um país em ruínas, sectarismo a saldo, e violência epidêmica.
Mais de 100 mil mortos. 1.5 Milhão de refugiados.
Qualquer semelhança com o passado, não é mera coincidência.



Agradecimento ao grande Carlos Latuff pela cedência do cartoon.