O patriarcado e a manutenção da cultura do ódio

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Hoje eu quero falar de dois acontecimentos dessa última semana que me deixaram bem entristecida. Em ambos os episódios, eu senti o amargo sabor da constatação: a misoginia encontra-se tão profundamente arraigada em nossa sociedade que eu sinto, infelizmente, que o nosso ativismo está longe, bem longe de acabar.

O fato é que eu lembrei de um texto que li outro dia, que você pode encontrar aqui (em inglês), cujo título é “5 razões pelas quais a humanidade deseja desesperadamente que monstros existam”. Eu confesso que comecei a ler o texto e achei-o bem bobinho. Não sou muito afeita a fatalismos biológicos e o artigo se baseia neles para dizer que os seres humanos precisam criar monstros para fazer valer a sua própria existência. Em outras palavras, para que você se sinta melhor com as decisões altruístas que fez em sua vida, é preciso opô-las a decisões moralmente condenáveis tomadas por outras pessoas. E é preciso, também, odiar profundamente essas pessoas.

O autor segue adiante dizendo que seres humanos sentem a necessidade de acreditar que as pessoas são deliberadamente más. Que qualquer ação que o senso comum considere ruim é feita com uma risada maligna nos lábios, como quem diz “hoje, por pura maldade, eu vou fazer algo que todos reprovam”. Afinal de contas, se acreditarmos que o outro pode estar agindo de forma “errada” sem saber, estamos abrindo o precedente para o fato de que nós, também, erramos inconscientemente. Precisamos acreditar, por exemplo, que somos exímios cidadãos e cidadãs incorruptíveis, ainda que furemos fila, xinguemos muito no trânsito e bem... tem os produtos oriundos de trabalho escravo que consumimos, né?

E por quê exatamente eu estou falando desse artigo aqui? Ora, para argumentar que, embora eu não acredite que estejamos biologicamente preparados para agir pelo ódio, eu creio sim que a humanidade realmente se deixa levar pelo ódio. E vejo o patriarcado como a grande origem disso.  Afinal de contas, é a cultura patriarcal que ensina, repete e reafirma à exaustão que qualquer desvio de uma suposta conduta moralmente aceitável deve ser achincalhado, apedrejado, tratado como uma abominação e queimado em praça pública. É aí que vemos pessoas “de bem” recorrendo à barbárie total para defender o seu código de honra. É o ódio sendo pago com ódio em um ciclo que acaba por desumanizar não apenas quem agiu “errado”, mas também quem defende, a unhas e dentes, aquilo que é “certo”. A Paula já falou disso aqui .

E sim, um dos episódios é a surra que a Carminha levou do Tufão, na novela da Globo. O fato é que a Carminha é uma vilã. Seguindo a lógica exposta acima, a sociedade simplesmente vibrou com a surra que ela levou do marido. O que me deixa com a pulga atrás da orelha, afinal, o episódio em questão revela o quanto a nossa sociedade valoriza o ódio. E comportamentos de vingança. E ver a violência tomando lugar como um ato de justiça. O Tufão teria sido justo. Milhares e milhares de brasileiros fazem essa mesma “justiça”, esbofeteando esposas, surrando namoradas que traíram, ou fizeram algum “mal”. Os índices estão aí. Indianas são mortas aos montes por conta de uma única palavrinha: honra. É preciso dizer ou vocês já sacaram que a dinâmica do ódio é muito mais cruel para com as mulheres, dado o caráter misógino com que se apresenta? E que as novelas, enquanto moldura e representação da cultura brasileira, acabam por perpetuar essa dinâmica de crueldade?

Mas peraí, Flávia, você está dizendo que a Carminha, tendo enganado meio mundo e traído seu marido, estava certa? Não. O que eu estou dizendo, ou pelo menos tentando dizer, é que a sociedade acha certo o linchamento público de mulheres. A sociedade, por considerar algum comportamento errado, reage com total barbárie, dando espaço a seus instintos mais violentos, no sentido de fazer valer o seu código de honra. É disso que estou falando. É dessa naturalização da violência com altos requintes de misoginia. Afinal, as pessoas não se juntam para linchar moralmente um cara que trai a esposa. Trata-se de dois pesos e duas medidas. E nem adianta argumentar que não é assim, a traição vinda de ambos os lados é ruim e errada. Porque essa é uma visão minoritária. E não são as minorias que aumentam os índices de violência doméstica contra a mulher. Porém, as minorias podem levantar a voz, e tentar mudar um cenário que está muito, muito errado.

O outro exemplo que eu quero apresentar a vocês também me embrulha o estômago. Tava lá eu no facebook quando me deparo com uma página comemorando a atitude da Skol em retirar o patrocínio do festival em que o New Hit participaria. Como eu achei o post engajado, fui lá e curti a página. Minutos depois, para o meu horror, a página posta um slut-shaming aberto e declarado contra a mulher Pêra, que você pode conferir aqui.  A página em questão possui 314 mil seguidores. Trata-se, claramente, de um meio formador de opiniões. Eu fico apreensiva com essa onda de backlash e barbárie que recai sobre as mulheres. Sim, as mulheres-frutas, as piriguetes, as prostitutas, as trans e todas as outras mulheres que habitam esse mundo e que ousam agir diferente daquilo que se considera “correto”, não são uma categoria à parte. São mulheres. Porém, a sociedade insiste em alçá-las à categoria de monstros, abominações. Só para resguardar seu direito de apedrejar quem pensa e age diferente.

Em uma sociedade que divide as mulheres em boas x ruins, unicamente de acordo com aquilo que elas fazem com o próprio corpo, não é de se assustar que comentários como os que vos apresento abaixo tenham surgido, em consequência do simples fato de que ela se atreveu a se candidatar a alguma coisa. Como que uma vadia dessas ousa adentrar o imaculado cenário político brasileiro? Eu dividi os comentários em 3 categorias:

1. Slut-shaming:

“É só mais uma cadela querendo se eleger, mas enfim pra combinar com ladrões em brasilia agora teremos uma vadia.”

“Nossa! depois dessa eu abandonaria a política, mulherzinhas iguais a esta aí só servem pra ficar num puteiro servindo os porcos...que nojo!”

“"VOTEM NAS PUTAS , POIS VOTAR NOS FILHOS DELAS NÃO DEU CERTO...." Parece que ela levou essa frase bem a sério”

“mesmo se ela me desse o rabbo dia 6 no dia 7 eu nao votava nela kkk”

“VIROU É PUTARIA ISSO SIM. CÂMARA DE VEREADORES NÃO TEM ND A VER COM CAMERA DE TV OU D FILME PORNÔ OU DA PLAYBOY. SUA IMBECIL. VÁ VESTIR UMA ROUPA E PROCURAR UM JEITO DE ESTUDAR PRA SER ÚTIL À SOCIEDADE.”

2. Recalque misógino:

“Por favor nao votem no partido que aceitou esse tipo de pessoa. Imagina o nível dessa gente que aceita - servem pra representar quem?”

“Mulheres q não se valorizam e só lhes resta apelar para serxo a fim de conseguir algo na vida. Totalmente sem conteudo de trabalho e de v ida.”

"Uma vergonha ver que minhas avos lutaram pelo voto da mulher, e meus pais pela democracia para uma politica mais justa, e pensar que existem pessoas que sao capazes de jogar essa historia e seu voto em uma bunda! tem que ser um bando de bundao mesmo, pírcing intimo chove no brasil soque quando vierem reclamar que nada muda, que precisam de hospitais, creches, etc... diremos temos vaginas com pírcing!"

3. Manutenção da cultura do estupro:

“Ela sabe bem o que é democracia, ali naquela rabeta todo mundo tem direito de botar, ops, votar kkkkkkkkkk”

“VOU DEPOSITAR UM VOTO DE 25CM NA BUNDA DELA!!!”

Por fim, eu deixo aqui as perguntas: por que a sociedade insiste em agir assim? Por que as pessoas lançam mão de uma selvageria maior que os alvos de suas críticas, só para fazer valer a manutenção de seus valores? Por que uma mulher que resolve exercer a sua sexualidade abertamente tem que ter a sua humanidade extirpada por pessoas que se acham acima do bem e do mal? Por que as pessoas insistem em não entender que porrada não resolve nada, apenas colabora para a manutenção de um estado bruto de incivilidade? Até quando teremos que viver nessa cultura do ódio, que encontra todo apoio e respaldo no patriarcado?