Que interesses andam defendendo a Justiça em nosso país?

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Ando preocupada com o rumo da Justiça em nosso país. Dia-a-dia vejo que não apenas ela não consegue impedir em seus quadros a entrada de procuradores e juízes envolvidos com tráfico de drogas, corrupção, pedofilia e até mesmo assassinatos, mas também não consegue fazer com que seus membros mantenham uma mínima isenção nos julgamentos, assegurando que os direitos constitucionais sejam garantidos a todos e não somente a uma pequena parcela da população. Antes de reproduzir dois longos textos que podem exemplificar minha preocupação, gostaria de destacar os embates políticos atuais que vivemos com grande intensidade, especialmente os que envolvem os movimentos sociais cujos interesses em jogo é a posse da terra. Em nosso país de história agroexportadora a terra sempre foi motivo de disputa. Durante três séculos e meio, pós Cabral, os grandes latifundiários apropriaram-se das terras indígenas e escravizaram povos africanos para acumular riquezas obrigando-os a produzir cana de açúcar, tabaco, café, algodão; explorando-os e também as riquezas da terra com o extrativismo e a mineração. Pouquíssimas pessoas protegidas pelas leis impostas pela Coroa portuguesa e depois pelo Estado imperial que garantiram a elas o controle da terra e o direito de escravizar e explorar o trabalho escravizado puderam enriquecer. O estabelecimento da República não foi capaz de agir nesse imenso quadro de desigualdade promovido pela intensa concentração de terras e pela intensa exploração do trabalho de indígenas, cativos e trabalhadores livres e pobres no Brasil. Na atualidade, a soja, a cana para o etanol e outros produtos agrícolas fazem todo médio e grande proprietário rural sonhar em ampliar e modernizar sua produção para ganhar o mercado mundial em expansão e acumular lucros. Entretanto, a modernização raramente atinge as relações de trabalho e o modo como historicamente os camponeses foram vistos e ainda são tratados no país. Não raro vemos notícias da intervenção de fiscais do Ministério do Trabalho (alguns até mesmo assassinados) em latifúndios que mantêm trabalhadores escravizados. Assim, concentração de terra e a exploração dos trabalhadores do campo é história de longa duração em nosso país. Nesse contexto a questão indígena, como chamamos a luta de diferentes nações para a garantir o direito de demarcação das TIs para sua sobrevivência física e cultural e a reforma agrária, luta histórica levada a cabo primeiro pelas Ligas Camponesas e há quase 30 anos pelo MST, ganham o centro do debate. Na outra ponta temos os proprietários rurais, o latifúndio, o agronegócio e uma mistura pouco sadia de prefeitos e governadores que também são proprietários de terra ou que defendem os interesses dos ruralistas (nacionais ou não) em detrimento dos interesses do restante da população. Nesses casos, raramente vemos a Justiça intervir coibindo a ação daqueles que como homens públicos eleitos para exercer a governança do município ou do estado deveriam representar os interesses também dos não proprietários e não apenas os seus próprios interesses. É preciso não perder de vista a estrutura agrária de nosso país, secularmente concentrada nas mãos de poucos. Caso exemplar desta concentração na atualidade é Roraima: seis proprietários de terra dominam alguns milhões de hectares na região Raposa Serra do Sol, área do estado irrigada por importantes rios, estes de fundamental importância para os povos indígenas que lutam para garantir o direito de ficar em suas terras (nunca é demais ressaltar suas no passado e reafirmadas na legislação do presente) . A história e a Constituição neste caso são coisas de pouca monta, pois os rizicultores que desenvolvem plantio em larga escala nos moldes do cultivo de arroz do Vietnã e disputam as águas dos rios para irrigar sua produção tomam as terras e não permitem que seus legítimos donos possam lá permanecerem. Assim, na TI Raposa Serra do Sol os seculares Macuxi e outros seis povos indígenas que somam cerca de 20 mil pessoas lutam contra seis rizicultores que chegaram na área em conflito há menos de duas décadas. Enganam-se aqueles que acham que este é um embate regional, pontual. Não é. Nesta região não bastou a decisão da Justiça a favor dos direitos povos indígenas. Os rizicultores, liderados pelo prefeito latifundiário de Pacaraima, Paulo César Quartiero, passaram por cima da Constituição, ignoraram que a TI Raposa Serra do Sol já foi homologada a favor dos povos indígenas e levaram o embate para o STF. Ao STF restará a importante tarefa de decidir entre dois projetos políticos, a saber: a) Se o nosso país saberá conviver com a diversidade, aprenderá a se desenvolver de modo sustentado, sem fazer uso da intensa exploração dos trabalhadores, se garantirá a sobrevivência dos povos indígenas, garantindo a demarcação de seus territórios identitários, preservando nascentes de rios, fundamentais para esses povos sobreviverem física e culturalmente e fundamentais para a saúde do restante da população e de todo o meio ambiente ou b) Se apostará em um desenvolvimentismo devastador que reedita os processos de expansão colonial dos séculos XVI, XVII, XVIII, e de avanços de fronteiras do XIX e XX que resultaram sempre em terra arrasada: desmatamento da cobertura vegetal nativa, ocupação desenfreada, envenenamento das águas dos rios por agrotóxicos e outros agentes poluidores, aterramento de lagoas ou aberturas de canais, construção de represas e/ou hidrelétricas, aberturas de estradas, agronegócio, industrialização, tudo isso sem qualquer controle sobre o imenso impacto ambiental. No extremo sul do país, onde a população indígena não tem a menor visibilidade (dos Guarani os gaúchos só preservam o hábito do chimarrão e a expressão chê), a posse da terra também é foco de conflitos, só que o alvo dos ruralistas são os sem terra. No Rio Grande do Sul, estado pioneiro de expansão do cultivo de soja, produto que hoje já domina o Paraguai e avança sobre o Piauí e nesse processo foi arrasando os campos nativos gaúchos e vai eliminando as áreas de cerrado, vemos cada dia acirrar ainda mais os conflitos entre o MST, e as grandes corporações do agronegócio sem qualquer mediação do Estado (a não ser para reprimir as manifestações e práticas dos camponeses), mesmo que o governo estadual encontre-se deslegitimado, envolvido em sérias denúncias de corrupção. Diante desta promiscuidade onde os interesses de governos se misturam aos interesses dos grupos latifundiários, financeiros, enfim dos grandes proprietários individuais ou organizados em grandes corporações e se sobrepõem aos interesses dos grupos desempoderados, resta-nos que os homens da Justiça do país cumpram o seu papel de mediadores dos conflitos, assegurando minimamente o estado democrático, a saber: não reproduzindo o discurso de administradores públicos que desconhecem o conceito de coisa pública estabelecido no princípio republicano; o dos militares que confundem interesses nacionalistas com interesses do grupo dominante, o discurso único da mídia corporativa a serviço do status quo e o de intelectuais conservadores reprodutores da ideologia dominante. Resta-nos que este discurso e esta prática de longa duração em nosso país que tratam a questão social como caso de polícia não sejam encampados pela Justiça brasileira. As pessoas cujos valores democráticos regem suas vidas esperam que em nosso país estes interesses da classe empoderada política e economicamente (por mais redundante que possa parecer) não se sobreponham aos direitos Constitucionais que garantem livre expressão e manifestação e, especialmente, não se sobreponham aos direitos que afirmam que todo brasileiro independente da cor, sexo, idade, pertencimento religioso, classe social e outras diferenças tem direito à vida, à saúde, à educação, à moradia decente, enfim, tem direito à cidadania e à Justiça. Mas não é isso que apreendemos ao ler os jornais. Neles não faltam exemplos de discursos eivados de preconceito de classe, às vezes de preconceito racial, presentes também na boca de promotores e juízes. Infelizmente, a própria Justiça ganha foco nas manchetes devido ao envolvimento de seus membros com o tráfico de drogas, com a corrupção, a pedofilia e até assassinatos... Um Estado de direito não pode existir sem segurança pública; não pode fazer uso das forças armadas para subir favelas encasteladas e abandonadas nos morros e negociar vidas da juventude negra com traficantes de facções adversárias; não pode existir se gente a serviço de prefeitos explode pontes impedindo o acesso da polícia federal e fabrica bombas para atacar indígenas como em Pacaraima (RO); não pode existir quando prefeitos utilizam mão-de-obra escrava em suas fazendas como em Unaí (MG); não pode existir sem a crença, mesmo que simbólica na Justiça. As pessoas simples, pobres, negras e brancas e abandonadas pelo Estado nos campos e nas periferias dos grandes centros devem acreditar que ao menos na instância da Justiça, os valores constitucionais de igualdade perante a lei prevalecerão acima dos interesses econômicos, dos preconceitos de classe e raça. Empresários de diferentes matizes nunca estiveram tão felizes com os lucros que vêm acumulando (veja aqui), mesmo assim, diante de qualquer pequena tentativa de se realizar algo para combater a extrema desigualdade social que se traduz em desigualdade de direitos constitucionais, rapidamente podemos assistir a articulação de vários extratos sociais privilegiados, que muitas vezes levam a reboque uma classe média bastante ressentida, para refrear as tentativas reformistas do governo Lula. Há inúmeros exemplos recentes deste movimento conservador: a campanha contra as cotas nas universidades públicas (sociais e raciais); contra o Prouni; a favor da criminalização de todo e qualquer movimento social, especialmente o MST e, agora, a criminalização das lideranças indígenas como se elas fossem marionetes e/ou agentes a serviço de interesses internacionais; as campanhas contra o estabelecimento de impostos redistributivos, entre tantos outros. Há um discurso usual e recorrente na boca de uma boa parcela da classe média; de alguns intelectuais; da grande mídia e também de alguns homens da Justiça de que a culpa de toda a 'desordem' (que é sempre imputada àqueles que reagem à extrema desigualdade e aos desmandos de toda ordem, a saber, povos indígenas, ambientalistas, sem terra, movimento negro etc.) é devida ao fato de o Brasil ter eleito por duas vezes um 'presidente analfabeto'. Para as pessoas que repetem em demasia esse preconceito-mor, a eleição de Lula é um descalabro, pois tal 'exemplo danoso' permite que um determinado tipo de 'gente' (leia-se todo pobre e/ou negro e/ou pessoas com pouca escolarização) acredite que possa 'fazer qualquer coisa' (leia-se, reagir contra a exclusão sistemática, não aceitar mais ser um cidadão de segunda categoria). Já para as pessoas que consideram legítimo o fato de que em uma real democracia é legítimo um ex-operário disputar eleições presidenciais e que suas vitórias devem ser reconhecidas e asseguradas e que os preconceitos de classe, tão arraigados em nossa sociedade, não podem se sobrepor aos princípios democráticos, este cenário que vivemos na atualidade é no mínimo grotesco. Este segundo grupo de pessoas, no qual eu faço questão de me incluir, não pode seqer tecer a crítica ao governo Lula naquilo que ele merece ser criticado e questionado, como na aposta em um desenvolvimentismo,  por vezes, agressivo  ao meio ambiente, levado a cabo pelo agronegócio, pelas mineradoras, e outras corporações, sem correr o risco de fazer coro ao primeiro grupo extremamente conservador que o vê como o símbolo máximo de inoperância, incompetência, em última instância, da 'desfaçatez de um nordestino, migrante, ex-torneiro mecânico, sem curso universitário, sem saber falar uma língua estrangeira ousar ser presidente do Brasil'. O preconceito de classe anda cegando as pessoas educadas deste país que teriam chances de serem bons leitores críticos da realidade. Ele está impedindo-as de perceberem que as mínimas reformas realizadas ao longo desses 5 anos do governo Lula não mexeram na grande parte dos privilégios seculares que faz do Brasil um campeão de desigualdades estruturais. O preconceito de classe anda emburrecendo as pessoas educadas, tornando-as ressentidas e as impedindo de exercerem seu papel de cidadãos de fato e de direto. Para finalizar, além do largo número de exemplos disponíveis em nosso cotidiano a todos aqueles que não permitiram que a cegueira dos preconceitos tomassem conta de sua capacidade de fazer críticas, destaco para apreciação dois artigos onde o preconceito de classe e a defesa explícita de interesses do status quo criminalizam 'a gentalha' como diria Dona Florinda do seriado popular mexicano. O primeiro exemplo, abre um precedente perigosíssimo em um país que também tem longa história ditatorial. Espero que todos aqueles realmente comprometidos com a democracia atentem para os riscos ao nosso regime presentes na fala deste procurador. Destaco algumas: *criminalização com todas as letras do movimento social dos sem terra: "Isso se chama organização criminosa"; *o lado escolhido pelo procurador para defender e assegurar os direitos: Em Passo Fundo, entraram numa empresa, que é a Bunge, uma multinacional, propriedade privada que a Constituição brasileira garante respeito e funcionamento"; * os interesses que ele defende: "A causa deles (MST) é uma causa perdida"; *o não reconhecimento pelo procurador do Presidente da República como o legítimo representante de toda a nação brasileira e a criminalização por tabela do presidente Lula: "Se eles querem terra, podem acampar em Brasília, onde o presidente Lula é o representante maior deles". O segundo texto é um testemunho de uma advogada que não cedeu aos preconceitos de classe e raça e ousou testemunhar a favor da 'gentalha' e exatamente por isso está sendo processada pela Justiça! Leiam-nos e tirem suas próprias conclusões.
Promotor compara MST a guerrilha e quer declarar o movimento ilegal
da Redação Folha (24/06/2008 - 20h45)
O Conselho Superior do Ministério Público do Rio Grande do Sul aprovou um relatório que pede a dissolução do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, o MST. Segundo reportagem do jornal Folha de S.Paulo, o documento já serviu de base para oito ações judiciais contra sem-terra, como proibição de marchas e autorização de despejos.

Íntegra da entrevista

Por meio de nota, o MST classificou a decisão como estratégia do MP para criminalizar os movimentos sociais e "desativar" todos os acampamentos do Rio Grande do Sul. Segundo Leandro Scalabrin, advogado do movimento, os promotores ofenderam o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos e a Constituição Federal, que diz que "é plena a liberdade de associação para fins lícitos, vedada a de caráter paramilitar". Ainda segundo nota, o MST rebate que "o Rio Grande do Sul é hoje cenário de uma estratégia dos Poderes executivos e judiciários que ameaça às liberdades conquistadas com o fim da ditadura militar". Em entrevista ao UOL, o promotor Gilberto Thums, integrante do Conselho Superior do Ministério Público do Rio Grande do Sul, explicou a intenção do MP. Leia abaixo trechos da entrevista: "O Conselho Superior do Ministério Público, o qual eu integro, determinou a realização de um levantamento no Rio Grande do Sul sobre a situação do MST e os acampamentos. Foram feitas algumas constatações. Fiz um relatório, aprovado por unanimidade no conselho, e a partir daí foram designados dois promotores com objetivo de implementar as ações judiciais necessárias. Uma delas, foi o deslocamento de dois acampamentos que foram utilizados para promover ataques sistemáticos a propriedades rurais." "Estão adotando técnicas típicas de guerrilha" "O MP não está aqui defendendo propriedades rurais. O MP está tomando essa atitude em defesa do estado de direito, porque o MST vem se caracterizando nos últimos tempos não mais como um movimento social, mas como um movimento político, adotando técnicas que são típicas de guerrilha. Algumas constatações são inafastáveis. Observamos que o MST de uns tempos para cá estava num processo de inquietação. Recentemente, foi mostrado no país inteiro, o MST entrou para a segunda fase das organizações guerrilheiras, que são os atos de sabotagem. Em Porto Alegre, por exemplo, invadiram supermercado, quebraram tudo, levaram um monte de coisa. Em Passo Fundo, entraram numa empresa, que é a Bunge, uma multinacional, propriedade privada, que a Constituição brasileira garante respeito e funcionamento. A gente está observando que o MST está adotando uma técnica que ultrapassa o propósito dos chamados movimentos sociais." "O objetivo não é reforma agrária" "O que inquieta o Ministério Público é: por que se escolhe determinados territórios para ocupação? O objetivo não é reforma agrária, o Rio Grande do Sul não tem terra para reforma agrária. Não existe. Isso já foi concluído pela CPMI da Terra em 2005. O Rio Grande do Sul não possui terra para reforma agrária. Então, o MST escolhe estrategicamente um território para ocupação. No município de Nova Santa Rita, por exemplo, uma granja faz limite com o pólo petroquímico. É 100% produtiva, terra de arroz, e o MST escolheu essa fazenda para que fosse ocupada na marra. E começou a molestar os proprietários com sucessivas invasões, e uma parte do projeto já foi executada. Ao lado da granja, existe um acampamento. Mais ou menos umas 50 casas ou um pouco mais, todas colocadas de forma desordenada e não existe nada de produtivo nelas. E ao lado do assentamento, existe um acampamento. Que é uma coisa curiosa: como conciliar acampados e assentados num mesmo espaço físico. Por que essa terra foi escolhida estrategicamente para a ocupação? Porque ali passa o duto de nafta que abastece o pólo petroquímico. Sobre essa granja, passam quatro redes de alta tensão que abastecem dois terços de energia do Rio Grande do Sul. Junto à granja, passa um rio, e, sobre ela, passa uma ferrovia. Se fomos olhar, em qualquer lugar do mundo seria o ponto mais vital que alguma organização podia escolher para ocupar. O movimento escolheu esse local e já tomou todas as providencias necessárias porque não agüenta mais os atos de sabotagem que estão fazendo." "O MST é uma máscara utilizada para ações ilegais" "O interessante é nós observarmos agora como MST vai dar uma procuração para um advogado defendê-lo em juízo. Todas as ações que são ajuizadas são ajuizadas contra o MST e os integrantes que se encontram em locais determinados. É uma situação nova. Do ponto de vista jurídico, ela é difícil de se dimensionar. O que tem que ficar claro é o seguinte: o MST, na verdade, é o braço da Anca (Associação Nacional de Cooperação Agrícola) e da Concrab (Confederação das Cooperativas de Reforma Agrária do Brasil), que são ONGs que têm existência jurídica, que recebem dinheiro público, que são o braço financeiro do MST. A CPMI da Terra concluiu em 2005 o seguinte: o MST é um grupo econômico. Embora apresente uma estrutura bem formada, a ausência da personalidade jurídica é proposital, para evitar que seu patrimônio seja atingido em ações judiciais. Os recursos financeiros provêm da Anca e da Concrab. Esses são os braços financeiros do MST. O dinheiro é canalizado para eles por meio dessas instituições. O MST na verdade é uma máscara, q é utilizada para ações ilegais." "Isso se chama organização criminosa" "Se fossem os cidadãos comuns, estavam todos presos. Porque isso aí tem um nome: isso se chama organização criminosa. O que eles já fizeram de depredações, de atos ilegais em vários locais, é motivo suficiente para pedir prisão preventiva se fosse um cidadão comum. A hora em que cair essa máscara, de o sujeito deixar de ser protegido por esse manto chamado MST, as situações tomam outro rumo. Se nós conseguirmos por decisão judicial declarar o MST um movimento ilegal, à margem do sistema jurídico brasileiro, o tratamento que vai ser dado aos seus integrantes em caso de ocupações com violência, de enfrentamento de policiais, e ocupações diárias, depredações, atos de vandalismo, furtos, seqüestros etc, vamos considerar esses integrantes como pertencentes a uma organização criminosa, e vão receber o tratamento como cidadão recebe. Até hoje, houve tolerância do MP no sentido de não fazer nada, porque afinal é o MST. Só que agora vamos tratar as pessoas que compõem esse movimento." "Se eles querem terra, podem acampar em Brasília, onde o presidente Lula é o representante maior deles" "Estamos defendendo a ordem jurídica. O artigo 127 da Constitutição Federal atribui ao Ministério Público o dever de defender a ordem jurídica e o estado democrático de direito. O que o MST está fazendo, nos últimos momentos, é uma agressão ao estado democrático de direito. É um atentado à democracia. Em nenhum lugar do mundo seria tolerado esse tipo de conduta, nem na Rússia seria tolerado. Por que nos omitimos de tamanho absurdo? Qual é a proposta? O que o MST quer? Se eles querem terra, podem acampar em Brasília, onde o presidente Lula é o representante maior deles, e eles podem conseguir através de pressão em cima do poder político da nação. Agora, nada justifica uma invasão de áreas privadas produtivas, de empresas, supermercados, ou coisas semelhantes. É injustificável." "A causa deles é uma causa perdida" "Qualquer cidadão vai ver que é uma situação ilegal. A simpatia que o MST teve no passado hoje se tornou o contrário no país. Poucas pessoas hoje aplaudem essas ações, que são completamente nocivas, inaceitáveis numa democracia. Os movimentos sociais pacíficos têm toda a proteção constitucional. Isso que o MST está fazendo não é um movimento social. A reivindicação, a causa deles, hoje, é uma causa perdida. Estamos defendendo a prevalência da lei. Se um indivíduo entra num supermercado e subtrai qualquer objeto, ele está preso. Agora, qual é a lei do mundo que autoriza uma montanha de gente invadir, quebrar, subtrair objetos e sair impune? Se alguém conseguir explicar isso pra mim, retiro tudo o disse até agora." "Se o movimento é pacífico, não precisa de foice" "O Ministério Público não tem poder de executar direto essas ações. O MP está postulando para o Judiciário. Quem vai decidir é o Judiciário. Se o Poder Judiciário chegar e disser que a visão que o MP tem sobre o movimento é equivocada, vamos acatar a decisão judicial. Temos uma atividade que brota da Constituição como dever de ofício para agir. Se essa nossa ação está baseada em paradigmas equivocados, o Ministério Público vai acolher a decisão do Poder Judiciário. A declaração do presidente do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes, me parece um recado muito claro: que não se tolera mais no país atos que extrapolam os limites da legalidade. O MST está fora da legalidade. Por que foice? Por que invadir um prédio publico com foice, com machado etc? Isso é o que eles têm que responder. Se é movimento pacífico, não precisa de foice. Se querem realmente acesso a terra, eles têm que pressionar o poder político, lá em Braília. E não é invadindo e depredando bens particulares de pessoas que, pela Constituição, têm garantido esse direito. E o MP é o defensor da lei. Essa é a questão central." Leia abaixo nota divulgada pelo MST Documentos revelam: MP gaúcho pretende "dissolver" o Movimento Sem Terra Estratégia do Ministério Público é criminalizar movimentos sociais, impedindo marchar, reuniões e acampamentos O MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) apresentou hoje (23/06) documentos que comprovam uma estratégia do Ministério Público Estadual para "dissolver" o MST. Uma ata do Conselho Superior do Ministério Público, em reunião em 3 de dezembro do ano passado, comprova as denúncias. Na reunião, o MPE decide proibir qualquer deslocamento de trabalhadores Sem Terras, incluindo marchas e caminhadas, intervir em escolas de assentamento, criminalizar lideranças e integrantes e "desativar" todos os acampamentos do Rio Grande do Sul. As decisões do MPE já estão sendo postas em prática desde o ano passado. Mais recentemente, dois acampamentos, em áreas cedidas, foram despejados e o acampamento de Nova Santa Rita, em uma área de assentamento, foi congelado, com as famílias impedidas de entrarem ou saírem do acampamento judicialmente. A posição do Ministério Público coincide com a acentuação do uso de violência pela Brigada Militar em mobilizações de qualquer movimento social, como no dia 11 de junho, quando dezenas de pessoas foram feridas por balas de borracha e cassetetes. Um agricultor teve hemorragia interna em conseqüência das agressões e permaneceu uma semana hospitalizado. Segundo o advogado Leandro Scalabrin, autor da denúncia, a decisão do Ministério Público ofende o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, especialmente o artigo 22, nº 1. Este pacto foi reconhecido pelo Governo brasileiro através do Decreto nº 592, de 6 de julho de 1992. Ofende também a Constituição Federal. O artigo 5º, inciso XVII, diz que "é plena a liberdade de associação para fins lícitos, vedada a de caráter paramilitar." Documentos do próprio relatório contradizem a apuração dos Promotores: um inquérito da Polícia Federal, realizado entre janeiro e agosto do ano passado, verificou que não há "qualquer ligação com a FARC ou até mesmo estrangeiro no local" e conclui que "inexiste crime contra segurança do Estado". Com a revelação do documento, comprova-se que o Rio Grande do Sul é hoje cenário de uma estratégia dos Poderes executivos e judiciários que ameaça às liberdades conquistadas com o fim da ditadura militar. O teor dos documentos e a própria prática destas instituições representam uma volta ao autoritarismo, ao desrespeito à Sociedade Civil e a incapacidade em respeitar a pluralidade política e social. Agrava-se esta situação que estes poderes são financiados pelas verdadeiras ameaças à Segurança Nacional: empresas como a sueco-finlandesa Stora Enso, doadora da campanha eleitoral da Governadora, que adquire ilegalmente terras na faixa de fronteira, desprezando a legislação brasileira com o aval dos Poderes Executivo e Judiciário. ***************** Na Cultura dos bem de vida, pobre é inimigo interno Observatório das Violências Policiais-SP junho de 2008 Em editorial de 2 de maio de 2008 – "Guerra ao pobre" – o Correio da Cidadania lembrava que "na cultura dos bem de vida, o pobre é o seu inimigo interno. Inimigo é aquele que quer nos destruir e que, portanto, precisa ser destruído. Nega-se a humanidade do pobre, a fim de justificar moralmente a guerra que se trava contra ele nas favelas e periferias, seja no apoio às medidas que facultam às polícias agir com maior truculência, seja pela audiência enorme dos programas de televisão que enaltecem a violência policial e ridicularizam os que a ela se opõem." A história de Sandro Wellington de Jesus, de 24 anos, e da defensora de direitos humanos Valdênia Paulino, sua testemunha de defesa, contada na narrativa abaixo em minúcias, mostra como se orquestram instituições do Poder Judiciário e do aparelho repressivo do Poder Executivo – a Polícia Militar – para reduzir todos os espaços de vida e do comezinho direito de defesa de um pobre. Há muitos Sandros em São Paulo e no Brasil. Só que neste caso temos a oportunidade de acompanhar passo a passo de que maneira todas as chances de sobrevivência lhe foram retiradas, constituindo uma das mais brutais injustiças, permeada a toda uma série de humilhações a todo o seu grupo social, familiares e vizinhos, moradores da Favela do Jardim Elba, de Sapopemba, cidade de São Paulo. É que ele faz parte da classe dos "inimigos", os pobres. Nesta história vemos um jovem de 20 anos, negro e favelado, que apenas estava atravessando uma viela para alcançar a avenida, na madrugada de 23 de outubro de 2004, e tomar o ônibus de uma excursão que faria, quando foi alvejado por uma bala perdida disparada por policiais militares que naquele momento matavam Paulo Maciel, um adolescente de 17 anos. Ou, como disse o promotor quatro anos depois, "mais um bandido morto". Sandro ferido fugiu para sua casa e, sabendo que se fosse pego ferido seria preso, agüentou a dor do ferimento até o dia amanhecer. Ao ser atendido no hospital foi preso pelos mesmos policiais da madrugada sob a acusação de traficante e homicida. Ficou preso por um mês mas conseguiu a liberdade provisória. No entanto não soube e nem foi avisado de que seu processo corria e que estava sendo acusado de tentativa de homicídio contra os três policiais militares que atuaram na madrugada de 23 de outubro de 2004. Um dia, ao tentar tirar um documento no Poupatempo, foi preso. No dia do seu julgamento, em 16 de janeiro de 2008, depois que toda a comunidade se mobilizou em solidariedade a ele e à sua mãe, depois que o CDHS (Centro de Direitos Humanos de Sapopemba) colaborou ativamente na consecução das provas que demonstravam que ele apenas passava por ali para pegar o ônibus de sua excursão, ele e todo o seu grupo social, os favelados do Jardim Elba, foram ridicularizados e injustiçados. Foi uma clara demonstração de que há, no Brasil, cidadãos de pleno direito e o "outro", a classe dos pobres, aquele inimigo invisível que mora lá do outro lado da cidade e que não tem direito algum. Durante o julgamento, tanto a juíza como o promotor se permitiram frases ofensivas atingindo o adolescente morto, sua mãe (ausente por temer comparecer), toda a comunidade da favela do Jardim Elba presente, qualificada pela juíza de "esse tipo de gente" e as testemunhas de defesa, desqualificadas e humilhadas. Neste cenário hostil e com o clima criado pelas observações preconceituosas, os jurados condenaram Sandro, por quatro votos a três, a 24 anos de reclusão. O documento que apresentamos em seguida é o relato detalhado dessa história, feito pela advogada Valdênia Paulino, do CDHS e testemunha de defesa de Sandro. Feito ainda sob a emoção do que foram as 14 horas do julgamento, apenas quatro dias depois, com esse resultado dramático de uma vida perdida no inferno do sistema prisional brasileiro. Mal sabia ela que a gana de destruição do inimigo invisível que é o pobre - essa "gentinha" - teria prosseguimento. O próprio promotor do caso abriu um processo indiciando Valdênia e a Sra. Olga Regina Erwitz da Silva (a mãe de Paulo Maciel, o adolescente executado em 2004 e que nem sequer compareceu ao julgamento) por "falsidade ideológica" (Inquérito Policial nº 485/08). E anexou como demonstrativo os próprios documentos do julgamento de Sandro. É por tudo isso que Valdênia Paulino conclui seu relato sobre o caso de Sandro afirmando que a causa da condenação é, em essência, a sua condição de pobre. Há, seguramente, muitos milhares de Sandros pelo Brasil afora. Mas é estarrecedor conhecer a narrativa detalhada que mostra que enquanto as forças policiais exercem a truculência, autoridades judiciais impedem o direito de defesa dos pobres e humilham a condição de pobreza, criminalizando-a como tal. No Brasil, os pobres são o "inimigo interno", as "classes perigosas" que é preciso exterminar. Mas elas teimam em lutar por justiça e semear esperança, onde só há injustiça e dor. por Valdênia Aparecida Paulino Sandro é um dos seis filhos de Marisa. Não sei dizer o nome do pai, pois a mãe criou, praticamente sozinha, seus filhos na favela do Elba. Muito se orgulha pelo fato dos filhos não terem virado "bandidos". Sandro cresceu dentro da favela cercado por jovens envolvidos com tráfico de drogas e outros tipos de práticas ilícitas. Contudo, afirma que seu envolvimento foi experimentar baseado (cigarro de maconha) por duas vezes. A única vez que esteve na Febem, não foi porque estava traficando, mas porque foi levado junto com outros jovens apreendidos. Na ocasião, a autoridade judiciária da infância aplicou a medida socioeducativa de liberdade assistida a fim de possibilitar que Sandro tivesse o atendimento da assistência social. Tanto é que seu acompanhamento foi muito tranqüilo e ele nunca mais teve qualquer passagem pela Vara da Infância ou Delegacia de Polícia. Ademais, a exemplo de outras pessoas que moram na favela, Sandro foi abordado várias vezes por policiais e em seguida liberado. Quando criança, sempre participou das atividades dos projetos sociais em horários extra-escolares. Quando adolescente, tomou parte em atividades culturais promovidas pelo Centro de Defesa da Criança e do Adolescente Mônica Paião Trevisan. Era também ativo na Comunidade Católica São José Operário. Sandro sempre gostou de trabalhar. Fazia bico aqui e ali. Ajudava a família e "curtia" as meninas. Quantas vezes, entre educadores e lideranças da comunidade, comentamos a história de Marisa, mãe de Sandro: morar num barraco tão pequeno com tantos filhos, zelar por todos eles em situação social tão adversa à dignidade humana e estar sempre bem-humorada e solidária. Todos os seus filhos trabalham e se ajudam. Quanto ao Sandro, este sentia-se muito satisfeito porque estava obtendo bons rendimentos no lava-rápido na cidade de Santo André e, finalmente, podia ir para excursão à Aparecida do Norte no dia 23 de outubro de 2004, organizada por dona Celeste, uma moradora da favela. Não sabia Sandro que tentar participar da excursão iria lhe custar a liberdade. Para entender melhor o que vem depois, precisamos descrever a região onde mora e a relação com o Poder Público. Jardim Elba é uma das 32 favelas da região de Sapopemba, zona leste de São Paulo. Esta favela faz divisa com a cidade de Santo André. Muitas pessoas desta favela trabalham, estudam e fazem uso dos serviços na cidade de Santo André devido à proximidade. Por estar na divisa entre a cidade de São Paulo e a cidade de Santo André, e também próxima às cidades de São Caetano e Mauá, a favela se tornou um ponto estratégico para práticas delituosas. Durante muitos anos, a presença do Poder Público se deu apenas através da polícia, que, na maioria das vezes, aparece para fazer acertos com traficantes e maltratar os moradores. Para os moradores o desafio é sobreviver entre a violência dos jovens envolvidos na criminalidade, a violência policial e o descaso do Poder Público. Naquela região há uma creche e um centro de saúde que ficam em um espaço cedido pela Igreja Católica. Não existem atendimentos diretos da Prefeitura ou do Estado. Qualquer outro recurso, como a escola, deve ser buscado fora do bairro. A violência policial na região já foi objeto de várias denúncias. Para ilustrar, segue abaixo uma lista de práticas cometidas pelos agentes do Estado que deveriam promover a segurança: - violência sexual contra adolescentes usuárias de drogas; - tortura contra moradores; - extorsão contra jovens que cumprem livramento condicional; - abuso de autoridade e tratamento vexatório (tal como abrir marmita de trabalhador e jogar a comida fora dizendo que "se é para levar aquilo como comida era melhor não comer"; rasgar documentos porque, dizem, bandido também tem documento; etc.); - invasão nas casas sem ordem judicial; - prisões com flagrante forjado; - roubo de objetos nas casas invadidas; - calúnia e injúria (ofendem as pessoas, chamam as mães de vagabundas, entre outras palavras de baixo calão); - execução sumária. Além das práticas acima relatadas, é muito comum ter incursões da polícia acompanhada pela mídia sensacionalista. Todas as vezes que a região aparece na televisão através de uma situação de violência, dias depois cresce o número de pessoas que, sem saber o porquê, perdem o posto de trabalho. Outro aspecto preocupante para a população se dá na prática dos registros das pessoas abordadas. Os agentes policiais, 99% homens, abordam as pessoas com critérios aleatórios, revistam as pessoas, anotam seus nomes na lista dos averiguados e as dispensam. Nunca nos foi dito para onde vão esses nomes. Contudo, estas listas já foram utilizadas por policiais em processos criminais para justificar as arbitrariedades cometidas pelos mesmos nas favelas. A apresentação das listas dos averiguados servem de álibi para dizer que naquela região há muita violência. Essa prática já foi mais intensa. No ano de 2004 conseguimos realizar várias audiências públicas com a presença de representantes do Ministério Publico, Poder Legislativo Estadual e Municipal, professores universitários, representantes de entidades de Direitos Humanos, entre outras autoridades. Nestas audiências os moradores fizeram as denúncias e buscaram providências junto às autoridades competentes. No ano de 2005 começamos a sentir algumas mudanças positivas com relação à atuação da polícia, seja civil, seja militar. É neste contexto social que Sandro heroicamente chega vivo aos 24 anos de idade. Não obstante as dificuldades do cotidiano, a vida seguia e, finalmente, chegara o dia 23 de outubro, dia em que Sandro iria participar da excursão para a cidade de Aparecida do Norte. Na noite do dia 22, Sandro vai com a namorada - ou "ficante", como denominam os jovens - para o forró até chegar o horário de partida da excursão. O forró ficava próximo precisamente da Avenida Marginal do Oratório, paralela à rua da qual sairia o ônibus da excursão. Ali cada bar tem um aparelho de som e um forró tocando. Alcançadas as 4h00 da manhã, Sandro sai do forró em direção ao ônibus. Quando passava na altura do nº 900 foi atingido por um tiro disparado por policiais que alvejavam outro jovem de nome Paulo Maciel. Paulo foi executado ali mesmo. Sem saber o que estava acontecendo, Sandro correu em direção à sua casa e ali ficou até às 6h30, quando se dirigiu ao Hospital Santa Casa, de Santo André, para ser socorrido. Teve que agoniar na dor da ferida até ter certeza que os policiais já haviam saído da favela. Pois quem mora ali sabe que a polícia primeiro mata e depois pergunta quem é, como se estivessem em uma infindável guerra civil. Sandro foi socorrido, mas foi retirado do hospital pelos mesmos policiais que atiraram nele. Foi levado para o 70° DP e lá acusado de ser traficante e homicida. Depois de ficar preso por um mês, foi beneficiado pela liberdade provisória, pois não havia provas que sustentassem sua prisão. Na ocasião, Sandro pediu para que não fosse dada continuidade às denúncias que tínhamos feito contra os policiais, pois tinha medo da ameaça de matar seus irmãos e sua mãe, feita pelos policiais, caso a denúncia contra estes se concretizasse. Concedida a liberdade provisória, Sandro continuou a trabalhar. Com o passar do tempo conseguiu trabalho registrado, construiu ele mesmo um cômodo para morar com sua companheira com a qual tem um filho e seguia sua vida. Este cômodo fica ao lado da casa de sua mãe, local onde nasceu e se criou sem nunca ter mudado dali. Um dia foi ao Poupatempo tirar um documento e ficou detido. A partir daí Sandro iria descobrir que sua situação de pobreza seria sua pior sentença. Assim como o foi para tantos outros jovens da favela. A partir deste momento vamos acompanhar a trajetória de Sandro até o dia 16 de janeiro de 2008, dia do seu julgamento. Sandro é preso porque não havia comparecido a uma audiência da qual ele nunca recebeu intimação. Segundo o oficial de justiça, o seu endereço não fora localizado. Por ironia a casa de Sandro é uma das mais fáceis a ser localizada na favela porque fica próxima à rua de asfalto. Desde então a mãe de Sandro procurou o CDHS e passamos a orientá-la. A primeira atitude foi telefonar a uma defensora de confiança para que nos indicasse um bom defensor público. Afinal tratava-se de uma pessoa inocente presa injustamente. Esta orientou a mãe de Sandro a levar documentos que fossem importantes para a defesa até o Fórum Criminal da Barra Funda. Ajudamos Marisa, mãe de Sandro, a preparar o material: cópia da denúncia na Ouvidoria de Polícia; cópia da lista das pessoas que iriam viajar para a cidade de Aparecida do Norte no dia 23 de outubro de 2004; cópia de comprovante de trabalho e endereço; cópia da certidão de nascimento do filho; nomes de testemunhas, inclusive o meu. Ao chegar ao Fórum, Marisa entregou os documentos a uma moça da sala da Defensoria. A cada ida ao Fórum Marisa falava com um defensor diferente. Sempre diziam que o anterior estava de férias ou em outra atividade. Em um ano Sandro teve cinco defensores diferentes. Dada a mudança contínua de defensor, a Dra. Renata, advogada do CDHS, chegou a ligar várias vezes e falar com uma defensora. Olhando o processo se observa que os defensores que passaram pelo caso se manifestaram nos autos, mas o caso nunca teve titular. Preocupada com a situação de Sandro, procurei um promotor em quem confiava e pedi orientação, pois Sandro era inocente. O mesmo disse que eu o procurasse com os dados do processo, que iria ver o que se poderia fazer. Ironia do destino, era ele o promotor do caso. Por conta de trabalhos profissionais acabei procurando o promotor apenas dias antes do júri. Este me disse que iria dar trabalho no julgamento do Tribunal de Júri, pois não acreditava na inocência de Sandro. Tentei argumentar, demonstrando através de recortes de jornais, o quanto a polícia era truculenta na região. Mostrei a cópia da denúncia que fizemos à época, na Ouvidoria de Polícia, e relatei que conhecia o jovem, que havia ouvido muitas pessoas e que Sandro era inocente. Procurei, dois dias antes do júri, o defensor que iria fazer a defesa. O defensor estava de férias e quem iria fazer a defesa era o Defensor Dr. Ricardo. Faltando dois dias para o Júri, o caso ainda não havia sido estudado. Contudo, Dr. Ricardo nos acolheu, ouviu o que tínhamos a dizer e se comprometeu a estudar com mais carinho o caso. Sandro nunca soube quem fora seu defensor, pois cada vez que ia ao Fórum havia um rosto diferente. Somente com o nosso auxílio soube antecipadamente que no Júri iriam defendê-lo os defensores Dr. Ricardo e Dr. Mário. Saliente-se que os jurados eram todas pessoas que habitam em ruas asfaltadas, ou seja, desconhecem como a vida se realiza em uma favela. A maioria deles tinha nível universitário. A Juíza: como se não bastasse a expressão de desprezo em seu rosto ao olhar para os familiares de Sandro e para as pessoas da comunidade que atravessaram a cidade para acompanhar o julgamento, ainda disse para um funcionário, referindo-se às pessoas ali presentes: "Olha o tipo desta gente." Determinou que a qualquer conversa ou manifestação, ainda que no horário de intervalo, os policiais retirassem "aquelas pessoas" da sala da audiência. Como fui testemunha de defesa, fiquei sem assistir boa parte das oitivas das testemunhas. Depois soube que os policiais caíram várias vezes em contradição, mas foram tratados com respeito. As testemunhas de Sandro, pelo contrário, foram ali inquiridas como se tivessem cometido os piores crimes contra a humanidade. O pior estava por vir nos debates. A testemunha que organizou a excursão, uma senhora, foi ofendida todo o tempo como criminosa perigosa somente pelo fato de ter duas filhas que respondem processo-crime e um filho doente. Ao final do Júri esta senhora disse: "Hoje eu fui julgada com o Sandro e condenada com ele." Depois de mais de 23 anos de trabalho com reconhecimento nacional e internacional, eu sou apontada pelo promotor como quem passa a mão na cabeça de "bandido". Um senhor de 72 anos, que foi uma das testemunhas dos fatos antecedentes, foi completamente ignorado. Como se o seu parecer sobre sua comunidade e conhecimento da pessoa de Sandro não fizesse nenhuma diferença para a humanidade. Para sustentar a acusação, o Promotor santificou os policiais e antecipou aos defensores públicos que se eles dissessem qualquer coisa contra os policiais seriam processados. Não parou ai. Ofendeu pessoas públicas de nível nacional e internacional, como o Presidente da República e um médico legista citado ocasionalmente, entre outras pessoas que nada tinham com o caso e sequer tinham seus nomes citados nos autos. Dentre os questionamentos do Promotor, estavam os seguintes argumentos: - Por que alguém iria a um forró para depois ir a Aparecida do Norte? - Por que uma pessoa do Jardim Elba é socorrida na cidade de Santo André e não na cidade de São Paulo? - Ao se referir à morte de Paulo Maciel, executado pelos policiais militares na madrugada do dia 23 de outubro de 2004, ressaltou que se tratava apenas de mais um bandido morto. - Ressaltou ainda que é um absurdo a família do Sandro estar recebendo auxílio reclusão, que tal benefício é "bolsa-bandido"; e ainda que, neste caso. seria melhor que Sandro continuasse preso, pois assim a família continuaria recebendo às custas dos trabalhadores a "bolsa-bandido". A Defesa foi muito respeitosa e procurou o tempo todo trabalhar em cima de fatos e da lei. Sala secreta: ouvimos o grito da juíza e depois soubemos também que o corpo de jurados teve dúvidas em alguns quesitos, mas que não lhes foi permitido uma nova apreciação dos mesmos. Segundo os Defensores, se a Juíza houvesse permitido o esclarecimento Sandro teria sido absolvido. Afinal Sandro foi condenado por quatro votos contra três, sendo prolatada a sentença de 24 anos de reclusão. Sandro continua preso. A comunidade está ofendida e desacreditada da Justiça. Os policiais militares estão autorizados a matar. Passaram quatro dias para que eu tivesse forças para relatar aquela tarde, noite e madrugada, pois chegamos ao Fórum Criminal da Barra Funda às 12h30 e saímos as 2h30 da madrugada. Meus sentimentos ficaram muito misturados, confusos. O Sandro é inocente e um excelente rapaz. Paulo Maciel foi executado por aqueles policiais. O Promotor é conhecido por sua seriedade, e eu mesma já fui testemunha arrolada por ele em um caso. Dessa vez atuou com ética, técnica e emoção. Mas nada que aproximasse ao que aconteceu no dia 16 de janeiro no Júri do Sandro. Mesmo no caso do Sandro, conversou comigo e deu orientações. Difícil de entender a manifestação de tanta raiva e agressividade quando ele sequer conhece Sandro, sua família e sua comunidade. Foram dois os Defensores que atuaram na defesa no Júri: Dr. Ricardo e Dr. Mário. Dois jovens recém ingressados na carreira. Apesar de pegar o caso dias antes da audiência fizeram o que foi possível dentro daquele tempo. Mas isto não exime a responsabilidade da Defensoria no curso de todo o processo. A equipe do CDHS, consciente do desconhecimento da realidade por parte da Defensoria Pública e da Promotoria de Justiça, fez um acompanhamento in loco, ou seja, seguimos o processo no balcão do cartório. A Ouvidoria de Polícia, quando procurada um dia antes do julgamento, nos informou que iria enviar um ofício para saber como estava o caso. O Promotor havia pedido o arquivamento do inquérito contra os policiais vários meses antes. As pessoas do corpo de Jurados eram boas, muito boas, mas não conhecem favela, não moram em favela, muito provavelmente nem moram em bairro de periferia. Não conhecem de perto a prática cotidiana da polícia nas favelas. Os jurados ouviram do Promotor que os policiais representam o Estado e que trabalham para proteger a população, que na favela só tem bandido e tráfico de drogas. Assim, uma condenação de quatro votos contra três aponta que os jurados não são estúpidos. Todo este processo me tocou no mais íntimo e no mais profundo do que alcanço do conceito de Justiça. Assim, se queremos o mínimo de justiça, será preciso repensar o corpo de jurados. Por exemplo: os operadores da lei (juízes e promotores, salvo raríssimas exceções) vêm das classes média e alta. Não conhecem o que é pobreza e muito menos a dinâmica dos bolsões de miséria. A proteção é sempre em desfavor do negro e do pobre. Há juízes e promotores que pisam no barro, mas esses são raros e perseguidos dentro do próprio Sistema Judiciário. Entretanto, ainda nos resta uma alternativa: os jurados. Segundo a normativa legal, os jurados devem ser pessoas do povo, pessoas que representem a sociedade. Se a pessoa que esta sendo julgada é da favela, se o fato ocorreu na favela, seria oportuno e legal ter pessoas que representem esta parte da sociedade, que até hoje sequer é considerado parte da chamada "sociedade". Afinal, a presidente daquele Tribunal do Júri, Meritíssima Juíza, se referiu às pessoas desta parte da sociedade como: "Que tipo de gente!" Se é certo que para julgar é preciso conhecer, então vamos realizar uma campanha para inscrever pessoas das favelas, a fim de inclui-las no corpo de jurados do Tribunal do Júri. Desta forma, os jurados saberão o que é sair para ser socorrido só depois que a polícia não estiver mais na rua. Sandro é um preso político. Está preso por conta da condição de pobreza em que foi criado e em que vivia quando alvejado por um policial. Ainda dá tempo.
"Olha, que tipo de gente!" Sandro Wellington de Jesus, 24 anos