A ministra e o fiscal de fio

Leia no Blog do Mouzar: "Damares Alves tem um currículo invejável. Além do diploma em uma faculdade de Direito, é mestre em Educação, Direito Constitucional e Direito da Família. Esses títulos de mestrado foram conquistados em que universidade?"

Ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves - Foto: Wilson Dias/Agência Brasil
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Damares Alves tem um currículo invejável. Além do diploma em uma faculdade de Direito, é mestre em Educação, Direito Constitucional e Direito da Família. Esses títulos de mestrado foram conquistados em que universidade? Bom... Millôr Fernandes, grande intelectual brasileiro, humorista, escritor e teatrólogo, dizia que era formado pela Universidade do Meyer. Quer dizer, formou-se nas ruas do Meyer, subúrbio carioca distante do centro. Dona Damares deu a ela mesma seus títulos de mestrados. Citando a Bíblia (Efésios 4.11), disse que “Nós, como pastores, recebemos o ministério de mestres dentro da perspectiva cristã”. Mas ela pode ser comparada ao Millôr? A ministra da Família, Direitos Humanos e Mulheres — considerando que certos direitos tidos como avanços tendem a ser revertidos, pois são considerados como “antidireitos” por poderosos atuais e apoiadores deles — tem o mesmo cacife de Millôr? Não consigo comparar. Ela me fez lembrar de um outro formado pelas ruas, pela “universidade da vida”, o Leite. Mas mesmo esta lembrança pode ser considerada errônea. Eu gostava muito do Leite. Perdoe-me, Leite, se por causa da ministra lembrei-me de você. Conto um pouco da história dele que já publiquei em outros locais por aí. A primeira vez que vi o Leite foi numa bodega de uma pequena cidade do Cariri cearense. Ele se aproximou, com uma pose que não combinava com seu jeitão de desocupado pobre, e falou solene, misturando inglês e francês com sotaque nordestino: — Give me one cigarrette, messieur. Ganhou o cigarro, puxou uma tragada e falou: — Esses latim eu não aprendi na escola, não. Aprendi na vida! Gostei. Convidei-o para tomar uma cerveja, ele aceitou. Enchemos os copos e ele brindou: — Tilintemos nossos copos para que permaneçamos coesos. Toda vez que o via, convidava para tomar cerveja, por gostar da companhia dele e por causa desse jeito de brindar. Passei a brindar assim também. Passados uns dois anos, voltei à mesma cidade com um grupo de amigos. Tomávamos cerveja em um bar e entrou o Leite, mais solene que das outras vezes. Depois dos cumprimentos e apresentações, convidamos: — Toma uma cerveja com a gente, Leite. — Não posso. Não bebo em trabalho — ele respondeu. — Você está trabalhando?! — perguntamos, surpresos, os que já o conhecíamos da viagem anterior. — Sou um servidor público. E não bebo em serviço — repetiu. Saiu, deixando a gente com cara de espanto. Só o dono do bar sorria. Ficamos ainda mais curiosos vendo o Leite parado no meio da rua, matreiro, olhando para o alto, virando para um lado e para outro, com ar compenetrado. Quando íamos perguntar ao rapaz que nos servia que diabo de emprego o Leite tinha arrumado, o próprio Leite entrou no bar: — Pronto. Já trabalhei. Agora aceito um copo de cerveja. Brindou com sua frase tradicional e, depois de muitos e muitos copos, soubemos afinal qual era o seu trabalho, que exigia tanta sisudez. Ele tinha trabalhado na campanha de um candidato a prefeito, que lhe prometeu emprego na prefeitura. Como não existia nenhum emprego adequado ao seu perfil, criaram para ele o cargo de fiscal de fio. Função: andar pela cidade e periodicamente olhar se os fios da rede elétrica continuavam estendidos entre os postes. — Nunca desapareceu nenhum fio na minha gestão — concluiu orgulhoso. O Leite já tinha uma certa idade na época, quando eu era moço. Não sei se ainda está vivo. Mas se estiver, deve estar refletindo sobre isso de que aprender “esses latim” na vida dava direito a um mero empreguinho de salário mínimo sem grande responsabilidade. Não dá para comparar com mestrados autoconcedidos, que dão cacife para cargos muito altos e bem pagos. Mas concluiria também que não basta isso. Ele não era fanático. Acredito que tinha uma noção de convivência humana que não é bem aceita no nível federal de hoje em dia. E o cargo que ele ocupava era inofensivo.

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