Divagações sobre Aécio e as onças

Os militares gostaram do poder. Adhemar e Lacerda foram cassados e tiveram seus direitos políticos suspensos. Magalhães Pinto foi poupado, mas também ficou chupando o dedo. Os três morreram durante a ditadura, que durou 21 anos.

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Os militares gostaram do poder. Adhemar e Lacerda foram cassados e tiveram seus direitos políticos suspensos. Magalhães Pinto foi poupado, mas também ficou chupando o dedo. Os três morreram durante a ditadura, que durou 21 anos. Por Mouzar Benedito* Político fantástico! Tem senso ético Pra lá de elástico. Um ditado popular ensina: não se deve cutucar a onça com vara curta. Tudo bem. Quase todo mundo entende isso. Mas entender é uma coisa, comportar como quem entende é outra. Estou pensando nisso por causa de umas figurinhas difíceis que se acha(va)m acima do bem e do mal, das onças brabas... E cutucaram a onça. Outra coisa que vale para essas mesmas pessoas: quando precisam de alguém que lhes faça um trabalho sujo, pensam que os atiçados para isso vão fazer o que pedem e depois lhes entregar o resultado numa boa. São só divagações o que vou fazer aqui, como já disse no título deste texto. Paro de “teorizar” e lembro um exemplo real. Em 1964, três governadores de estado queriam ser presidentes da República, e se preparavam para concorrer nas eleições do ano seguinte. Magalhães Pinto, da UDN de Minas Gerais, Carlos Lacerda, da UDN que governava o então estado da Guanabara, e Adhemar de Barros, do PSP de São Paulo. Mas dificilmente um deles seria eleito: Juscelino Kubitschek (com todos os seus defeitos), do PSD de Minas Gerais, tinha uma legião de adeptos, seria eleito com folga contra os três pretendentes. Tinha governado o Brasil de 1956 a janeiro de 1961 e, com o lema “50 anos em 5”, iniciou um intenso processo de “modernização”. Construiu Brasília, a usina de Furnas, o açude de Orós, implantou a indústria automobilística no Brasil e abriu um monte de estradas. Aliás, um grande problema que herdamos do governo dele é consequência disso: para atrair a indústria automobilística, começou o desmonte das ferrovias, que os militares prosseguiram e o governo FHC deu o remate final. Bom... Os três governadores com pretensões presidenciais ainda tinham outro problema: Leonel Brizola pretendia entrar na briga, concorrendo pelo PTB. Tinha carisma e era temido pela direita. Alegaram que sendo cunhado de João Goulart, então presidente, ele estava legalmente impedido de concorrer. Mas seus seguidores começaram a campanha “cunhado não é parente – Brizola presidente”, e não se sabia que bicho ia dar, se seria ou não impedido de concorrer. A lei proibia que parentes próximos concorressem à sucessão presidencial. Cunhado é ou não é parente? De qualquer forma, Magalhães, Lacerda e Adhemar sonhavam com um atalho para chegar à presidência. Articularam o golpe de 1964, com os militares, uma ala direitista poderosa da igreja, a CIA e quase toda a grande imprensa. Os militares fariam o trabalho sujo, que era cassar Juscelino, Brizola e outros desafetos dos golpistas, e entregariam o poder a eles. Imagino até que cada um desses três governadores sonhasse que os outros dois, seus aliados no golpe, poderiam ser tirados de circulação e o poder lhe seria entregue de bandeja em 1965. E deu-se o 31 de março concluído em 1º de abril. Magalhães Pinto, Lacerda e Adhemar se esbaldaram. Festejaram muito. Adhemar era chamado pela imprensa paulista de “O paladino da revolução”, pois o golpe era chamado de revolução. Lacerda viajou pela Europa propagandeando o novo regime e Magalhães se autopropagandeava como um grande gestor, com uma campanha nos meios de comunicação em que dizia que “Minas trabalha em silêncio”. Minas, no caso, era ele mesmo e seu governo. Cada um deles esperava que o marechal Castello Branco cumpriria o compromisso de realizar a eleição presidencial em 1965, normalmente, e lhe passaria a faixa presidencial. Castello tinha prometido que faria isso. Mas os militares gostaram do poder. Adhemar e Lacerda foram cassados e tiveram seus direitos políticos suspensos. Magalhães Pinto foi poupado, mas também ficou chupando o dedo. Os três morreram durante a ditadura, que durou 21 anos. E daí? Por que estou me lembrando disso? Aécio Neves não aprendeu algumas coisas com seu avô, Tancredo. Nunca gostei do Tancredo, mas uma coisa não se pode dizer dele: que era golpista. Não era! Esbravejou contra o golpe, chamou, aos gritos, o presidente do Congresso de canalha, quando ele declarou vago o cargo de presidente da República, afastando João Goulart do poder alegando que ele estava fora do país, quando Jango ainda estava em território brasileiro (no Rio Grande do Sul). Aécio, herdeiro político de Tancredo, não soube cuidar da herança. Adquiriu hábitos dos adversários do avô. Carlos Lacerda vivia tentando dar golpes. Foi personagem chave nos fatos que culminaram com o suicídio de Getúlio Vargas (se mandou do Brasil por uns dias quando isso aconteceu), e tentou impedir a posse de Juscelino, eleito em 1955 e empossado no início de 1956. Juarez Távora, candidato da UDN, perdeu e Lacerda não reconhecia a vitória do ganhador da eleição, já queria um golpe. Aécio, em 2014, imitou Lacerda. Perdeu por mais de dois milhões de votos, mas não reconheceu a derrota, quis dar o golpe e criar um atalho para virar presidente. E cutucou a onça. Como o próprio Lacerda, Magalhães Pinto e Adhemar, achou que – não pela via dos militares, mas o Judiciário, um vice-presidente que antes de compor a chapa vencedora mal se elegia deputado mas era sequioso pelo poder, deputados venais e senadores idem – conseguiria tirar de circulação os seus adversários... Atiçou as feras contra o PT e até mesmo contra alguém bem semelhante a ele, o vice-presidente Temer, que, inicialmente contestado por Aécio como membro da chapa vitoriosa, acabou sendo assimilado e também entrou na dança para chegar ao poder. Parece que Aécio via Temer como os três governadores golpistas de 1964 viram Castello Branco: um governante com um mandato tampão que lhes entregaria o poder no prazo acertado. Os golpistas se uniram, se multiplicaram, eufóricos com a ideia de tirar de circulação os seus opositores. Festejaram, como festejaram as “marchadeiras”, mulheres que fizeram marchas “com Deus pela democracia” pedindo o golpe em 1964 e comemoraram bastante quando ele aconteceu. Mas pouco tempo depois elas murcharam como estão murchos os paneleiros de 2015 e 16. Zé Ketti fez para elas um samba que foi proibido pela censura. O samba dizia: “Marchou com Deus pela democracia / agora chia, agora chia”. Temer não tem canhões ou cacife, mas parece confiar que sua turma continuará no poder, impedindo que aconteça algo como ele sair do Palácio direto para o xilindró. Não é de se duvidar que consiga, pois no Brasil atual não duvido de mais nada. Porém, acho que de certa forma a história se repete, com nuances. Chamaram o Judiciário, que se tornou a fera do momento, tendo o Congresso como uma “fera” auxiliar, sem moral mas rugindo como se tivesse. A Justiça sentiu o gosto do sangue, e gostou, embora selecione o sangue a ser consumido. Não parou certinho onde queriam os golpistas, mas ficou meio assanhada. E o Congresso, onça domesticada, virou gatinho manso obedecendo o domador, dando apoio aos ex-cutucadores, para salvar sua própria pele e continuar merecendo seus pires de leitinho em forma de malas cheias de dinheiro. Assim, a cutucada de Aécio não foi com vara tão curta: ele não foi cassado como Lacerda e Adhemar. Mas se Magalhães Pinto, adversário histórico de Tancredo Neves, ficou mais ou menos na foto, Aécio não ficou nem isso, ficou mal mesmo.. Magalhães, de certa forma, se safou, mas não conseguiu realizar o sonho de se tornar presidente. Aécio, acredito, ficou pior. No papel de Lacerda, vê seus sonhos presidenciais extintos e corre riscos que Magalhães não correu: se não for eleito para qualquer cargo federal nas próximas eleições (o que é possível), não poderá mais ser salvo pelos seus amigos e assemelhados do Congresso Nacional. Se a fera cutucada, a Justiça, fosse fera mesmo, os golpistas, num futuro não muito distante, podiam se autoavaliar: “Cutucamos a onça com vara curta”. Mas parece que confiam que a “onça” agora representada pelo Judiciário e não pelos militares, está meio sob controle, sem apetite por carne de alguns potentados. Confiam na Justiça. Nessa Justiça que não é tão cega assim. Uma justiça que tem um braço no Congresso para salvar políticos... certos políticos, claro. Não todos. Só aéticos e temerários escolhidos. E confiam também num eleitorado com amnésia e uma boa carga de sem-vergonhice. Mas de qualquer forma, como em 1964 os golpistas detonaram inclusive o sistema partidário, de certa forma, agora detonaram de novo. Não colocando os partidos na ilegalidade, mas desmoralizando quase todos eles. Aliás, Aécio é no seu partido um elemento desagregador (promove a “cizânia”, como diziam os militares sobre seus adversários). Não me lembro quem falou algo sobre o perigo de começar um processo de violência: ninguém sabe onde vai parar. Os golpistas começaram. Confiaram (e confiam) que a trolha não chegará neles. Mas e se chegar? Se estudassem história, poderiam também se lembrar da Revolução Francesa. Quando começou a matança de opositores, Joseph Guilhotin propôs o uso de uma ferramenta que acabou ganhando seu nome para facilitar o trabalho dos carrascos. E a guilhotina começou a ser usada em 25 de abril de 1792. Só que não parou onde desejavam os que deram início ao seu uso. Vitimou muitos deles mesmos. Diz a lenda que o próprio Guilhotin foi guilhotinado. Ah, os golpistas não devem ser fãs de Noel Rosa, se fossem, se lembrariam do samba “Positivismo”, que diz: “Também morreu por ter pescoço / o inventor da guilhotina de Paris”. No clima de guerra que vive o Brasil atual, termino com o que disse Karl Kraus: “A guerra, a princípio, é a esperança de que a gente vai se dar bem; em seguida, é a expectativa de que o outro vai se ferrar; depois, a satisfação de ver que o outro não se deu bem; e finalmente, a surpresa de ver que todo mundo se ferrou”. Ofensa ao corrupto: Foi investigado De modo abrupto. PS.: Uma coisa que me causa grande estranheza é que alguns com um passado respeitável se sentem confortáveis sendo chamados de políticos de “centro-direita”. Isso quando são aliados que falam deles. Os não aliados os colocam na direita mesmo, quando não de extrema-direita. *Mouzar Benedito, mineiro de Nova Resende, é geógrafo, jornalista e também sócio fundador da Sociedade dos Observadores de Saci (Sosaci) Foto: Lula Marques/Agência PT