Tipinhos inesquecíveis

Uma das seções da revista “Seleções” chamava-se (ou chama-se) “Meu tipo inesquecível”. Nessa revista, claro que os “tipos inesquecíveis” eram o que os leitores poderiam chamar de “gente boa”. Pro gosto deles, claro.

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Uma das seções da revista “Seleções” chamava-se (ou chama-se) “Meu tipo inesquecível”. Nessa revista, claro que os “tipos inesquecíveis” eram o que os leitores poderiam chamar de “gente boa”. Pro gosto deles, claro. Por Mouzar Benedito* Algumas figurinhas difíceis que tenho visto na mídia e nas mídias sociais me fizeram lembrar de uma revista de direita que se originou nos Estados Unidos, com o nome “Reader’s Digest”, e se espalhou pelo mundo como “leitura para a família”. No Brasil, chegou a ter muitos e muitos leitores. Chama-se “Seleções”. Acho que ainda circula, mas não em bancas. Uma das seções da revista chamava-se (ou chama-se) “Meu tipo inesquecível”. Nessa revista, claro que os “tipos inesquecíveis” eram o que os leitores poderiam chamar de “gente boa”. Pro gosto deles, claro. Mas os “tipos inesquecíveis” que me vêm à cabeça agora não se enquadram nesse adjetivo. Ou talvez se enquadrem, mas para a turma deles. Meus gostos não combinam bem com os deles. Conto um pouco sobre alguns desses “tipos” aqui, sem dar seus nomes, pois isso só serviria para dar mais visibilidade a eles: do jeito que as coisas estão, muitos babões das tais mídias sociais aprovariam seus comportamentos, não é? Tem muita gente igual a eles xingando os outros por aí. Vamos a eles. Coisa de gente rica Aconteceu no Rio de Janeiro há uns bons anos. Dois pintores de parede foram contratados para pintar a área externa da casa (na verdade, um palacete) de um grande empresário, bilionário, casado com uma mulher muito chegada a aparecer nas colunas sociais como uma pessoa culta e até generosa. Ao contrário do que acontece com gente de classe média ou pobre, o senhor e a senhora riquíssimos não se julgavam no dever de fornecer almoço aos pintores. Eles tinham que levar marmita. E não podiam usar a cozinha para esquentar a comida. Levavam um fogareiro a álcool e o usavam no quintal, que servia de “base de operações” para eles. Nesse quintal, ficavam soltos três cachorrões enormes, tipo fila brasileiro. Um dia, depois de aquecerem um pouco a comida, um deles começou a comer e o outro achou por bem lavar as mãos antes de almoçar. Foi a um banheiro (no quintal, claro) e, enquanto isso, um dos cachorros atacou sua marmita. Comeu tudo. Quando ele voltou, viu o cachorrão acabando de comer sua boia. Chamou uma empregada e contou a história, falou que não podia trabalhar com fome, queria comer alguma coisa. A empregada disse que tinha que falar com a patroa. Foi para dentro de casa e voltou acompanhada da patroa, que estava furiosa. A mulher perguntou ao pintor qual o cachorro tinha comido a comida dele. O pintor disse que não sabia diferenciar um do outro, eram muito parecidos. Ela xingou, xingou, não deu comida ao pintor e chamou um veterinário para tentar descobrir qual cachorro tinha feito aquilo e, se necessário, dar algum remédio a ele, que poderia ter algum problema de saúde por ter comido comida de pobre. Quem demite o cara? Uma época eu trabalhava na Secretaria dos Transportes do município de São Paulo, como técnico em contabilidade, e tinha a função de analisar a contabilidade de empresas de ônibus. Visitava regularmente as empresas e fuçava na contabilidade, à toa, pois os relatórios que fazíamos dizendo que estava tudo bem ou que havia mutretas não eram nem lidos. Eram arquivados e morriam no arquivo. Um dia, eu conversava com o contador de uma empresa e apareceu um sujeito com cara de poucos amigos, vestido com o uniforme de motorista, e disse ao contador: “O seu fulano falou que o senhor quer falar comigo”. O contador fez cara de desagrado e disse: “Eu? Eu não! Não tenho nada pra falar com o senhor”. O motorista saiu e o contador me contou: “Esse sujeito estava dirigindo o ônibus, viu um desafeto dele atravessando a rua, acelerou no sinal vermelho, atropelou o cara, que ficou caído no chão. Aí, ele deu marcha-a-ré e passou por cima do corpo de novo”. “Que horror!”, eu falei. “Então”, ele concluiu, “não dá pra ter um motorista desses, né? Tem que ser demitido. Mas quem é que tem coragem de demitir esse sujeito? Ficam empurrando de um pra outro”. Mais um intocável Falando desse motorista, lembrei de um sujeito que trabalhava numa instituição patronal em São Paulo. Era o mais preguiçoso, não fazia nada. Mas nunca era demitido. Numa crise, tinham que demitir dois funcionários da seção e lá se foram dois trabalhadores de verdade. E o cara continuou intocável. Fácil de entender: ele tinha porte de armas, mantinha um revólver carregado na gaveta trancada a chave. Todos os dias, logo que chegava à seção, abria a gaveta, pegava o revólver, limpava, limpava, limpava, na frente de todo mundo, inclusive do chefe... e guardava de novo. O segredo da estabilidade Um outro preguiçoso que nunca era demitido me contou seu segredo. Devia uma grana ao chefe e pagava um pouco por mês. Caráter? Até que tinha. Mas péssimo Falando em preguiçoso, tenho uma lembrança bem ruim, sobre um cara que chegava atrasado ao trabalho todos os dias. Não parava em emprego nenhum, era demitido em pouco tempo. Aí arrumou um emprego num escritório que ficava no edifício Joelma. Poucos dias depois chegou lá com mais de uma hora de atraso. Sorte dele. Um incêndio tomava conta do prédio. Morreram quase duzentas pessoas, foi um horror. E o canalhinha viu uma chance nisso. Passou um pouco de carvão no rosto, sujou a roupa e apareceu sendo entrevistado por uma equipe de TV, ao vivo, dando um recado à família (era casado): “Escapei, graças a Deus”. Depois disso, fingia pânico cada vez que entrava num prédio, ou que tinha que trabalhar. Ficou sendo sustentado pela mulher e pelos pais dele mesmo. Com caráter pior ainda Tive como colega de trabalho um sujeito que dava trambiques em todo mundo, inclusive nos companheiros de trabalho. Soube que ele tinha trabalhado numa instituição onde eu tinha muitos amigos, um dia fui lá e falei:  “O fulano me contou que trabalhou aqui”. Fez-se um silêncio constrangedor. Um deles me chamou para tomar café e disse: “Não fale o nome dele aqui”. Tinha dado trambiques de todo tipo ali. Uma das vítimas foi um cara cuja mulher estava com câncer e precisava fazer uma cirurgia. Naquele tempo não tinha plano de saúde e não dava para esperar que a cirurgia fosse feita pelo então INPS. Precisava de grana, e não tinha. Começou a vender tudo o que tinha. Até a vitrola e os discos colecionados durante anos. Antes da notícia do câncer da mulher, tinha comprado uma enciclopédia bem cara, que chegou na mesma época do diagnóstico. E nem tirou da caixa. Saiu oferecendo aos colegas pela metade do que tinha pago. O fulano disse para ele não fazer isso: podia rifar a enciclopédia e conseguir uma boa grana, bem mais do que ela tinha custado. Os colegas se solidarizariam, comprariam a rifa. O cara disse que não levava jeito para vender rifa, o fulano se ofereceu para fazer isso: “Traga a enciclopédia para cá, na caixa. Eu mostro pra todo mundo e vendo a rifa pra você”. Deu certo. Todo mundo comprou. Só que o rapaz com a mulher doente não viu nem a cor do dinheiro, embolsado pelo trambiqueiro. E o ganhador da rifa também nunca recebeu a enciclopédia. *Mouzar Benedito, mineiro de Nova Resende, é geógrafo, jornalista e também sócio fundador da Sociedade dos Observadores de Saci (Sosaci)  Foto: Reprodução