Um bispo porreta!

Vi nos jornais a notícia da morte de Dom Moacyr Grecchi, um sujeito admirável, defensor dos povos da floresta numa época das mais drásticas da história do Acre. No livro “1968, por aí... Memórias burlescas da ditadura”, tem um texto relacionado e acho que vale sua publicação. Então, aí vai ele

Dom Moacyr Grecchi (Foto: Xapuri.info)
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 Vi nos jornais a notícia da morte de Dom Moacyr Grecchi, um sujeito admirável, defensor dos povos da floresta numa época das mais drásticas da história do Acre. Eu o conheci nessa época... E no livro “1968, por aí... Memórias burlescas da ditadura”, publicado pela Publisher Brasil, tem um texto relacionado. O título desse texto é “Quando Chico Mendes começava sua luta”, e acho que vale sua publicação aqui. Então, aí vai ele. Em julho de 1977, cheguei em Rio Branco, no Acre, um dia depois da primeira reação armada dos seringueiros aos jagunços de grileiros que ocupavam suas terras e os expulsavam. O governo militar dava títulos de propriedade a grandes fazendeiros e empresários do Sul e Sudeste do Brasil, pouco ligando para quem morava nessas terras há muito tempo. Muitos moradores eram descendentes da primeira leva de nordestinos, a maioria cearenses, que chegaram ao Acre no ciclo da borracha, no final do século XIX, e outros tantos descendiam dos também nordestinos mandados para lá durante a Segunda Guerra Mundial, integrantes do chamado “Exército da Borracha”, porque os seringais do Sudeste da Ásia estavam tomados pelos japoneses e não podiam abastecer de borracha a Europa e os Estados Unidos, e o governo brasileiro viu aí a grande chance de reavivar os seringais do Norte brasileiro. Durante a ditadura, os militares, com a desculpa de levar o “progresso” para a região, davam terras aos seus colaboradores. Pessoas que financiavam os aparelhos de repressão e tortura ganhavam milhares de hectares de terra em troca. Um paulista, dirigente da Copersucar, chegou a ganhar título de propriedade de uma área de 500 mil hectares de terra que tinha até várias vilas dentro. Como os demais, contratou jagunços para expulsar todo mundo que estava lá dentro. Quem reagia, morria. Muitas vítimas seguiam para a capital do estado, Rio Branco, à procura de justiça. Iam direto à polícia, dar queixa da invasão das suas terras e expulsão da família por homens armados. A polícia, aliada dos grileiros e orientada pelo governador do estado, cúmplice da ditadura, dizia que ia tomar providências e ordenava que as famílias expulsas não tentassem voltar para as terras antes dessas “providências” que nunca vinham. Depois de muita demora, as famílias dormindo nas ruas da cidade e dentro das igrejas, esse povo ingênuo ia ao governador e recebia as mesmas orientações. Assim, iam morrendo aos poucos, de fome, nas ruas da cidade. O único lugar em que encontravam algum abrigo era a igreja. O bispo, Moacir Grecchi, apoiava os seringueiros e ficou conhecido como comunista, sendo ameaçado pelas autoridades policiais e militares. No calorão de Rio Branco, um hotel do centro tinha um bar embaixo, que servia cerveja bem gelada, e tornou-se ponto predileto dos “paulistas”, como eram chamados todos os grileiros que chegavam do Sul e Sudeste. Ficavam hospedados no hotel e passavam o dia bebendo cerveja no bar, que se tornou conhecido como “Bar dos Paulistas”, e contratando jagunços ali mesmo. Era sentar um “paulista” ali, que logo chegava algum agenciador de jagunços, acompanhado de alguns deles, devida e ostensivamente armados, oferecendo seus serviços. E todo dia eram mortos seringueiros e agricultores que tentavam permanecer em suas terras, sem que nada acontecesse aos matadores e seus mandantes. Nessa época, alguns acreanos começavam a tomar consciência da situação e se preparavam para impedir a continuidade desse processo, inclusive Chico Mendes. E cheguei justamente no dia seguinte à resistência à expulsão num seringal, em que morreram dois jagunços, um deles conhecido como líder de um grande grupo de matadores e, aí sim, a polícia e o próprio governador estavam alvoroçados, se organizando para reprimir os autores desse crime terrível, que era matar os homens que foram lá matá-los. Dois dias antes de morrer, o líder dos jagunços havia dado entrevista a um jornalista do O Rio Branco, então único jornal diário da cidade. O jagunço desdenhava do jornalista, dizendo que matava seringueiros e agricultores sim, e que ia continuar matando e nunca iria preso. A direção do jornal impediu a publicação da entrevista, que foi gravada. O jornalista pensou então em publicar a entrevista no Varadouro, jornal alternativo naquela época em que os alternativos proliferavam por todo o Brasil. Mas a equipe da redação avaliou que não dava pra publicar, porque o jornalista podia até ser morto por outros jagunços ou pela própria polícia. Então me ofereceram a entrevista para publicar no Versus em São Paulo, de circulação em todo o Brasil e em alguns lugares da América Latina. Eu era um dos editores e, claro aceitei, com o compromisso de fingir que a entrevista havia sido feita por mim, para não colocar em risco o jornalista acreano. Para fazer uma matéria completa, resolvi ir ao seringal, munido de duas máquinas fotográficas e um gravador. Soube pelos colegas jornalistas de um homem que ia naquele rumo e poderia me deixar perto do seringal. Ele morava num sítio a alguns quilômetros de Rio Branco e sairia no dia seguinte por volta das 6h30 da manhã. Combinei de ir com ele, recebi as informações sobre uma estradinha que levava ao seu sítio e antes das seis já estava na estrada, a pé. A uns dois quilômetros da cidade, escorreguei, caí e quebrei o tornozelo em dois lugares. Já suava com o calor de quase quarenta graus centígrados a essa hora da manhã, passei a suar mais ainda por causa da dor. Só depois de uma hora é que passou uma caminhonete por ali. Eu estava sentado na beira da estrada, não conseguia me levantar, e o motorista parou longe, com receio. Chacoalhei a perna, mostrando pra ele que o pé estava mole, por causa dos ossos quebrados, e finalmente ele aproximou o veículo, me ajudou a levantar e me deu carona até a cidade. Sem a matéria, voltei pra São Paulo no dia seguinte, depois de — bem orientado por um médico — passar a noite com o pé dentro de um saco de gelo. Bem cedinho, o porteiro do hotel entrou contente no meu quarto: “Você está no jornal”, me disse. Olhei, a primeira página de O Rio Branco, a manchete era sobre o Papa, não me lembro o que ele tinha feito. Embaixo, com letras grandes, que só perdiam para a manchete do Papa, a informação: “Jornalista paulista quebra a perna na rua”. Ah, a entrevista não foi publicada. O jornalista acreano esqueceu de me entregar antes da minha volta pra São Paulo. PS.: Algo que não coloquei nesse texto: saí do hotel logo depois de tomar café, fui para o aeroporto e lá o bispo Moacyr Grecchi me viu com a perna estropiada e foi conversar comigo.