Diário do isolamento social, Lauriña acorda

Leia na nova crônica de Lelê Teles, no blog Fala Que Eu Discuto: "Têm sido agradáveis os dias de quarentena na casa dos Benga"

Escrito en OPINIÃO el
é a segunda segunda-feira que lauriña não vai à escola, nem por isso ela deixou de acordar cedo. sentou na cama, esfregou os olhinhos, e se pôs a ouvir o ruído de casa, adivinhando os passos de cada um. o cheio de café denunciava que a mãe estava na cozinha, preparando omeletes como prometido na noite anterior. o pai também prometera consertar a torneira do tanque que gotejava irritantemente; por isso o barulho da caixa de ferramentas. biloca latia com alegria, a chave gira na porta. ok, é dandara que leva o cãozinho pro quintal pra brincar e fazer xixi. vovô benga deveria estar lendo seu jornal na cadeira de espaldar e vovó benguela estaria, com certeza, de frente para o altarzinho conversando, em silêncio, com suas estatuetas de orixás. lauriña, então, a par de tudo, abriu a janela pra tomar um banho de luminosidade e ser beijada pelo ar matinal. chovera a noite toda, mas agora um lindo sol amarelo sorria com as árvores e com as aves. ela colocou djorolen (da oumou sangaré) pra tocar no spotify e saiu a cumprimentar a família. jogou-se nos braços do avô: “bença vô, bença vó”. “deus te abençoe”. na cozinha, ganhou um beijo da mãe e o pai lhe deu um cheiro e um abraço sem mãos, porque havia uma ferramenta em cada uma. lauriña encheu o regador e saiu pela casa dando banho nas plantinhas. no seu quarto, regou os vasos do parapeito da janela: “bom dia, dona begônia, hora do banho.” fez o mesmo com as pimentinhas e os tomates-cerejas, finalizou com o manjericão que ela arrancou umas folhinhas, macerou com os dedos e saiu inalando o rélvico e fragrante frescor. buzina no portão, é o seo orácio do hortifruti. daí a pouco, a irmã grita do quintal: “laurinhaaaa”. a pequena aparece na janela: “vai querer pitaya?”, pergunta a irmã; lauriña responde com outra pergunta: “tem da vermelha, seo orácio?” ele meneia a cabeça afirmativamente e deposita uma pitaya na sacola de dandara; recebe, devolve o troco e parte. dandara entra e põe ração pro biloca, o pai leva pratos, xícaras, copos e talheres para a mesa. vovó põe o lixo pra fora. à mesa, todos dão as mãos em silêncio e agradecem pelo alimento, pela saúde e pelo amor e paz na família. começam a se servir e a conversar: “o bozo tava na feira, cuspindo na cara dos pobres, criatura abominável”, disse vovó benguela. “o twitter jogou as fotos dele no lixo, não permitiram que ele fizesse propaganda daquela patifaria”, obtemperou mamãe dolores. vovô inquiriu: “sabiam que o avô do trump morreu da gripe espanhola? pois foi... porque os estadunidenses, já naquela época, se recusaram a seguir o protocolo dos sanitaristas, essa gente num aprende com os erros.” “dandara, terminou a crônica que tava escrevendo sobre a carreata dos patrões?, tem fato novo, jogaram esterco nos carrões dos bacanas”. todos sorriram. “terminei não, pai, me passei, tava entretida com o livro da michele obama, mas termino hoje”. “e você, minha flor, o que vai fazer depois do café?”. lauriña responde: “ontem a noite eu terminei 'o diário de anne frank', uma versão linda toda em quadrinhos, recebi por indicação da lili, agora vou começar 'meio sol amarelo', da chimamanda.” “ok”, concluiu papai olavo, “as louças do café hoje são minhas, as do almoço são de dandara e o quintal é com lauriña. mamãe prometeu tocar rabeca às cinco da tarde, na hora do chá, e às seis temos ginástica e alongamento com todo mundo. eu e mamãe vamos trabalhar e, por favor, não nos incomodem.” retira-se da mesa, retiram-se todos, e cada um vai procurar o que fazer em casa. têm sido agradáveis os dias de quarentena na casa dos benga. vovô olha a todos por cima dos óculos. a família se dispersando e sorri cheio de orgulho. tudo flui como na velha aldeia em cabinda, o amor é a amálgama. palavra da salvação. #ficaemcasa, mas fica de boa. *Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Fórum.