Hierarquia de opressões

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Pyramid with Colors

Se você vê um homem negro sendo machista com uma mulher branca, você vai se omitir porque ele é negro e ela é branca?

Se você vê uma pessoa com deficiência sendo adultista com uma criança sem deficiência, você vai se omitir porque ela é uma pessoa com deficiência e a criança não?

Se você vê um homem gay sendo misógino, você vai se omitir porque ele é gay?

Se você vê uma mulher rica sendo elitista com um homem pobre, você vai se omitir porque ela é mulher e ele é homem?

Se você vê uma pessoa trans branca sendo racista com uma pessoa cis negra, você vai se omitir porque ela é trans e a outra é cis?

Muitas pessoas oprimidas também são, de certa forma, opressoras, assim como muitas pessoas opressoras também são, de certa forma, oprimidas. E muitas pessoas agem como se sofrer opressão fosse carta branca para oprimir.

Sim, há momentos em que quem sofre uma opressão irá, muito compreensivelmente, na minha opinião, reagir de forma violenta e agressiva e não é a isso que me refiro, a não ser que essa pessoa, a pretexto de reagir, passe ela própria a oprimir (por exemplo, uma mulher que foi atacada por um homem negro adotar um discurso racista, como se a agressão dele justificasse a dela). Estou falando de quando uma pessoa que é oprimida em um ou mais níveis pratica uma agressão contra alguém que ela está em posição de oprimir em um ou mais níveis.

E aí? Quem tem o trunfo? Quem tem “mais razão”? Qual é a pior opressão? Existe pior opressão, assim, em termos absolutos?

Para mim, mais importante que determinar “a pior opressão” é enxergar a opressão que eu estou em posição de exercer e cuidar para não fazê-lo. Até porque é esta a que eu posso desconstruir de forma mais imediata e eficaz e é esta que, a meu ver, eu tenho o maior dever de combater.

Seria, claro, muito confortável para mim me entrincheirar nos meus privilégios e me opor apenas aos que não me beneficiam, racionalizando e justificando aquilo que me é pessoalmente vantajoso ou indiferente. Minimizar a opressão praticada por algum grupo do qual eu faço parte (por exemplo, uma mulher branca de esquerda defender seu direito de dizer que quer “matar a mulher negra burguesa”) ou mesmo relativizar meu pertencimento a um grupo opressor (por exemplo, quando um homem fala que sofre tanto quanto as mulheres com o machismo, por não ser o “homem ideal).

A partir do momento em que fazemos um recorte absoluto – “estou sempre com todes es operáries contra todes es patrões” ou “estou sempre com todas as mulheres contra todos os homens”, nós restringimos a nossa capacidade de empatizar. Nós alimentamos a noção maniqueísta e absurda de que só é realmente possível acolher alguém se concordamos com todos os seus atos e posicionamentos (o que, além de indesejável, é impossível) e continuamos agindo como se a solução para todos os problemas fosse dividir o mundo ao meio.

A tentação é grande, porque fazer isso facilita as coisas. Não temos que pensar, que refletir, que olhar para os nossos próprios rabos. Nem temos que, muitas vezes, nos indispor com nosses companheires de luta, e/ou com pessoas que amamos e admiramos.

Vem sendo comum, por exemplo, que críticas a eventuais atitudes problemáticas e opressoras dentro feminismo (como racismo, elitismo, transfobia, homofobia, etc.) sejam consideradas “falta de sororidade” por algumas militantes. É muito triste para mim ver a sororidade ser usada como ferramenta para amordaçar outras mulheres, já que me parece, como eu disse antes, que deveria ser o contrário. Que, quando uma irmã me diz que minhas palavras ou atos a ferem, é justamente por sororidade que me cabe ouvi-la e ampará-la e tentar entender essa crítica e seus fundamentos.

É fácil apontar e lutar contra a opressão cometida por “eles”. Me parece, no entanto, que o mundo só começa a mudar de verdade quando nos lembramos também da opressão cometida por nós.