Perdi

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perdi Quando eu era criança, eu costumava fantasiar com enterros; que pessoas queridas haviam morrido e eu estava lá, presenciando seus funerais. Eu chorava e chorava. Esse choro me trazia alívio e eu me sentia culpada por isso. Mas não conseguia parar. O que eu não tinha condições de saber, naquela época, era que isso não era algo que eu fazia por masoquismo ou morbidez. Era um mecanismo catártico, digamos assim, uma forma de eu colocar para fora tristezas que eu não conseguia acessar de outro jeito. Quando a gente cresce ouvindo que "não precisa chorar" toda vez que chora, acaba internalizando a ideia de que nossas lágrimas nunca são legítimas, nunca são válidas. E daí paramos de nos permitir sentir, paramos de nos permitir chorar. Eu sempre tive dificuldade de chorar em público. Chega a ser um bloqueio mesmo, às vezes. De eu querer muito, sentir muita vontade, e não conseguir. Talvez parte disso seja medo de que apareça alguém para "me dar motivo de verdade para chorar", ou para me desmascarar, como se eu não tivesse o direito de estar triste. Ao inventar para mim essas mortes absurdamente tristes, ainda que sabendo que eram falsas, ainda que apenas temporariamente, eu me dava licença para soltar os soluços presos no meu peito. Era como assistir a um drama, só que feito por mim para mim, com os elementos específicos de que eu precisava para chorar. Claro que, como era um choro indireto, chorado por subterfúgios, o alívio, apesar de imediato, era efêmero. Acho que a gente não tem como realmente esvaziar um conteúdo emocional sem tocar nele de fato. Para que eu conseguisse liberar as minhas mágoas contidas, eu teria que, antes, reconhecê-las, me permitir senti-las e daí chorar por elas de verdade, e não apenas derramar o excesso de tensão acumulada em mim por conta delas. De qualquer forma, ironicamente, em funerais reais, eu não chorava. Desde cedo a lição para mim foi a de que era falta de educação chorar pela morte de alguém. Era falta de respeito com quem estava sofrendo "de verdade". Era querer chamar a atenção. Era falso e grosseiro. Era piorar as coisas para as pessoas que estavam "precisando de força". Como se o simples sofrer junto e chorar junto, ao invés de acolher, fosse aumentar a dor de alguém. Eu enterrei dois avôs sem luto. Sacrifiquei uma gata de dez anos, depois de um tratamento excruciante e fracassado, sem luto. Chorei um pouquinho aqui e ali, até fiquei triste, mas não passei pelo luto. Foi tudo um grande "bola para frente" e "levanta e sacode a poeira" e "a vida continua". Afinal, que utilidade tem o luto, né? Para que isso? Uma psiquiatra, Elisabeth Kubler-Ross, estudando as reações de pacientes que descobriam estarem em estado terminal, elaborou essa coisa que é bastante conhecida hoje em dia, das cinco fases do luto. Já ouviu falar? Negação, raiva, barganha, depressão e aceitação. Ou seja, fingir que não está acontecendo, sentir revolta porque está acontecendo, querer negociar de alguma forma para aquilo não acontecer, ou para compensar o que está acontecendo, ficar deprimide com o que está acontecendo e, finalmente, simplesmente aceitar que o que está acontecendo está acontecendo. Algo assim. Nem todo mundo passa por todos os estágios sempre, e algumas pessoas ficam, às vezes, entrevadas em algum. E eu acho que eu parei no da negação. Um amigo meu morreu ano passado. Não é que eu não tenha ficado triste. Eu inclusive fui, com outres amiges, prestar minhas homenagens a ele no cemitério. É que o tipo de tristeza que eu senti foi, hoje vejo, incompatível com a situação. E, quando eu digo "incompatível com a situação", não estou me referindo ao seria esperado socialmente de mim, mas àquilo que eu conheço de mim, ao tanto que eu gostava dele, etc. Mas eu não me dei conta disso na época. Na época, eu disse para mim para eu largar de besteira porque já era de se esperar (ele tinha uma tendência autodestrutiva fortíssima que era pública e notória). Eu disse para mim que, de certa forma, era o que ele queria e que não fazia sentido sofrer por alguém que escolheu ir embora (como se eu não soubesse que sentir não precisa fazer sentido). Eu disse para mim que estava brigada com ele. Eu recontei para mim cuidadosamente todas as histórias das vezes em que ele fez algo que me desagradou e irritou. E daí senti raiva dele. E essa raiva abafou a minha dor. Sucesso. Luto evitado. Engraçado que, agora, olhando, isso parece tão óbvio. Tão evidente. Crianças fazem isso. Aliás, todo mundo faz isso, adultes também. Ficar com raiva de quem está distante para minimizar o sofrimento da distância. É um clássico da negação. Mas eu não via. De dentro, a gente dificilmente vê. E eu assim me fiz de besta. Por um ano. Acontece que, outro dia, morreu uma amiga minha. E, desde o momento em que eu recebi a notícia, eu chorei. E chorei. E chorei. E continuo chorando. Indo para o velório, em outra cidade, aos prantos, perguntei para o meu marido, que dirigia ao meu lado: "por quê? Por que estou tão triste? Não era como se a gente se visse todos os dias..." E ele me respondeu apenas: "ela era sua amiga. Claro que você está triste." Aquilo fez um "clic" na minha cabeça. Ela era minha amiga. Claro que eu estou triste. Foi como se, de repente, eu tivesse obtido permissão para chorar. Eu não precisava mais me esconder, ou sentir que eu deveria estar me escondendo, para isso. Mesmo se eu não a tivesse visto há anos, mesmo que eu nunca mais fosse vê-la, como eu não ficaria triste com o fato de que eu nunca mais poderia vê-la, de que ninguém nunca mais iria vê-la? Uma pessoa maravilhosa, que eu adorava, deixou de existir. Como não ficar triste com isso? Mas foi só quando eu falei com minha outra amiga, ela falando de sua própria negação, que eu entendi que não era só uma deslegitimação dos meus próprios sentimentos o que eu estava fazendo. Era negação. Eu estava deslegitimando aqueles sentimentos para não senti-los. Ou melhor, para não tomar conhecimento deles, para não lidar com eles, já que não temos como deixar de sentir o que sentimos. E foi só ainda mais tarde, quando eu comecei a traçar paralelos com a morte do meu amigo no ano passado e, para minha surpresa, comecei a chorar por ele também, que me dei conta de que o que se passou, naquela ocasião, também foi uma negação. E então me lembrei do meu avô. E do meu outro avô. E da minha gata. E da tia que morreu há algum tempo. E do tio que se foi mais há pouco. A represa havia se partido e um mar de lágrimas irrompeu de mim, num dilúvio que ainda agora me mantém flutuando, confusa, entristecida, mas aliviada. Houve um momento em que eu tentei fazer dessa epifania uma compensação, um motivo, um sentido para a morte prematura de uma pessoa tão querida, mas compreendi logo que era besteira querer encontrar um sentido em algo que não tem sentido. Algo que, infelizmente, simplesmente é. E eu finalmente entendi a importância do velório, do serviço funeral, enquanto explicava para minha filha pequena o que estávamos fazendo ali. Estávamos nos despedindo. Não por quem morreu, porque essa pessoa já não estava mais aqui; por nós. Para registrarmos, para nós e outres que amavam aquela pessoa tão querida o quanto ela ia deixar saudade. O quanto sentíamos que ela não estivesse mais conosco. No caminho de volta para casa, fortuitamente cruzamos com uma queima de fogos, em cima do Conjunto Nacional, no meio da Paulista. Foi um espetáculo lindo e inesperado, um presente, uma dádiva de luzes e cores e pessoas desconhecidas assistindo e aplaudindo juntas, unidas por aquela alegria jovial, descomplicada, franca. E eu sorri, mesmo triste, pensando em como aquilo era perfeito para dizer adeus à minha amiga.