Perdoar e esquecer

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PERDAO

É muito perturbador para mim quando vejo uma pessoa contar de violências (de qualquer tipo) que sofre ou sofreu, e quem a está escutando, ao invés de empatizar com ela, aconselhá-la a ser tolerante e compreensiva com a pessoa de quem partiu a agressão. Acontece muito em casos de violência doméstica por parte de pais ou companheires, isto é, casos em que o algoz é alguém a quem a vítima ama e que supostamente ama a vítima. Ressalvo que, para mim, eventualmente empatizar com a parte agressora e tratar a origem da agressão faz parte do processo de reabilitação. Reconstruir a humanidade no monstro e desconstruir o monstro na humanidade é algo necessário para que consigamos inibir a reincidência, seja no indivíduo ou na sociedade. Não estou negando isso. Estou falando de quando a pessoa empatiza com a parte agressora na cara da vítima que acaba de relatar o que passou, ao invés de e antes de empatizar com a vítima. A pessoa está ali, desnudando um trauma seu, completamente vulnerável, e é recebida não com a escuta atenciosa, com apoio, mas com a defesa de quem a traumatizou. Acho que, muitas vezes, a pessoa que faz isso o faz porque de alguma forma se identifica com o agressor – e, portanto, defende a si mesma – ou porque não consegue lidar com o sofrimento da outra e fica tentando convencê-la e a si mesma de que não foi tão ruim assim, ou porque se identifica com a vítima, mas, ao contrário dela, quer continuar negando seu sofrimento. Afinal, para empatizar, ela teria que reconhecer que o ocorrido é violência, uma percepção com que ela não quer ou não é capaz de lidar naquele momento. Nada contra alguém não querer lidar com alguma coisa. Cada um sabe de si e de quando está pronto para enfrentar seus fantasmas. Mas uma coisa é não querer lidar; outra coisa, muito diferente, é impedir outra pessoa de fazê-lo. Não raro, ainda se chama a isso de acolhimento, de “dar uma força”, de “ajudar a enxergar o que aconteceu com objetividade”. É dito que ao entender o agressor a vítima ficará melhor. Que a cura é perdoar. Perdoar e esquecer. É muito enraizada na nossa cultura essa glorificação do perdão como uma dádiva maravilhosa e mágica, como se pronunciar a frase "eu perdoo" produzisse um encantamento que desintegrasse mágoa, rancor, ódio... qualquer sentimento indesejável. Só que esse perdão não é real. É um subterfúgio para evitar voltar a falar a respeito do ocorrido, porque “você já perdoou”. Esse perdão não redime, não absolve, não liberta, nem engrandece. Ele só serve para silenciar a vítima, recalcar seus sentimentos e, de quebra, colocar culpa, vergonha e sensação de inadequação no caldeirão emocional já borbulhante dela. É uma fuga de quem escuta e pode ser também de quem “perdoa”, quando o faz para não se permitir pensar mais sobre aquilo, para não dialogar com a dor que a memória daquilo causa. Daí o “esquecer” que costuma acompanhar esse "perdoar". Enfia-se tudo num quarto escuro, fecha-se a porta e abracadabra. Tudo em ordem - aqui fora. Só que a porta fica lá. E toda vez que você olha para ela você lembra daquela bagunça embolada lá dentro e as suas entranhas se reviram. Quando desconstruímos um trauma, podemos não nos sentir bem a respeito dele (afinal, ele não deixará de ser uma memória ruim), mas não precisaremos nos forçar a esquecê-lo, porque ele não vai mais ter o poder de nos sobressaltar a qualquer momento. Não é que ele será esquecido, mas ele vai naturalmente parar de ser lembrado o tempo todo. Uma das formas de desconstruir traumas é falando a respeito deles e sendo acolhide em sua fala, sendo recebide com empatia no sofrimento que eles causam. E isso não é possível quando se é interrompido pela censuradora imposição do perdão. Não querer sentir não significa não sentir. Fosse assim, nenhum coração jamais se partiria. Sentimos, apenas. Sem motivo, sem razão, sem proporção. Sentimos. Sentir não é crime, não é feio, não é bonito, não é certo, não é errado. Não cabe julgamento do sentir, porque ele não é controlado pela nossa vontade. O que podemos controlar são as atitudes que tomamos a partir do que sentimos, mas não o que sentimos em si. Aliás, ao nos escondermos do que sentimos, corremos o risco de perder o controle inclusive sobre os nossos atos, porque é quando damos as costas para os nossos sentimentos que eles nos atacam de surpresa e tomam conta da gente. Acabamos agindo sem ter consciência do real porquê do nosso agir. Ou seja, a sua raiva, por si só, não vai matar ninguém. Você, por outro lado, pode acabar matando se não se permitir lidar com ela. A analogia que eu gosto de fazer é: quando alguém pisa no seu pé você não espera para entender o motivo antes de se permitir sentir dor. Ou raiva. É só depois que você se foca na pessoa que te pisou e tenta entender o lado dela, avalia o contexto, etc. Ou não. Porque tentar entender o que levou essa pessoa a pisar no seu pé não vai fazer o seu pé doer menos. E fingir que não doeu e ter que engolir seu “ai” só vão fazer doer ainda mais. Sentir primeiro o seu, lidar primeiro com o seu e buscar empatia primeiro pelo seu não é egoísmo. É questão de sobrevivência, de saúde mental. Mesmo porque, antes disso, o que você fizer (inclusive empatizar com outras pessoas) será contaminado pelo que você está evitando em si mesme. Impor à mulher que seja compreensiva, que “perdoe e esqueça” a violência de ume parceire (pouco importa o gênero) é machista; isso me parece óbvio. A imposição ae filhe de que seja compreensive, de que “perdoe e esqueça” a violência de seus pais, familiares ou de quem se responsabiliza ou se responsabilizou por sua criação é adultista. E tóxica. Vem lá da ideia de que a gente não pode sentir raiva de pai e de mãe, mesmo quando apanha ou é injustiçado. Porque honrar pai e mãe e respeitar os mais velhos e repressão e culpa vêm antes da saúde mental da criança. Daí crescemos aprendendo a tolerar agressões de quem a gente ama, como se fizessem parte do amor o gaslighting* e o desrespeito. Muites não conseguem resolver traumas por não se permitirem sentir raiva de quem os causou. Por sentirem culpa quando tentam. E o “perdoar e esquecer”, ao reafirmar isso, só agrava a situação e retraumatiza a pessoa.   *Fazer gaslighting (lê-se gaslaitim)é manipular a vítima para que duvide de sua percepção a ponto de acreditar que a violência que sofre ou sofreu está só na cabeça dela - ou não aconteceu, ou não foi bem assim, ou não foi nada demais, ou acontece com todo mundo, ou a culpa é dela mesma. Não raro, chega uma hora em que a vítima, confusa, começa a acreditar que está doente, ou fica tão consternada que passa a agir de uma forma que, diante de terceiros, confirma a alegação do agressor de que ela seja o problema. É muito comum em situações de violência doméstica, violência sexual, assédio moral, bullying, etc. O termo vem de uma peça de teatro de 1938, chamada Gas Light, escrita por Patrick Hamilton, que gira em torno de uma mulher que é gaslaiteada por seu marido.