Chico, sempre Chico e uma crônica de memórias de infância

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É um amor muito antigo, começado na infância, como narro aqui: Entre príncipes, dádivas e tristezas

—De novo escrevendo menina! Essas cartas não levam a nada, este príncipe é fajuto! Dizia Rita em tom de galhofa para mim....

Rita era jovem, linda. Falava engraçado, cantava com esses que me soavam xis e uns erres que não acabavam nunca.

Colocava os is onde a professora tinha ensinado que não existiam e, tirava-os dos seus devidos lugares: "naiscimento" "Madurera". Usava os cabelos bem curtinhos, hoje se diria que era toda pop, naquela época se falava "moderninha".

- Mas claro que dá certo. Rita! - Dá não, Consu, esquece disso. - Dá sim, você vai ver, vou ser sorteada! - Vai não, minha linda, aquilo é armação.

- Armação? Sei disso não. Só sei que você vai me assistir, bem aí em frente à televisão. Eu vou ganhar todos aqueles brinquedos e você vai morrer de inveja, quando o príncipe me colocar a coroa, tocar aquela música liiiiiiiiiinda e depois do beijo eu ir desfilar com ele, com a capa brilhante e aquela muleta cheia de pedras preciosas...

- Êiiiiita guria sonhadora! Não é muleta não, o certo é cetro!

- As rainhas e princesas usam cetro! Rita falava enquanto me corrigia, sem ser rude. Acho que deve ter lido algumas histórias de príncipes e princesas, mas gostava mesmo era de sonhar com seus ídolos.

- Aposto que ainda vai me fazer ir até o correio, né?

- Você leva, Rita, bota no correio pra mim, bota?

- Olha Consu, um dia você ainda vai entender, mas deixa... sonhar é bom. E acaba logo com isso, porque quero ver se já chegou o long play do Chico.

Me esmerei nas letras, arredondei a caligrafia. O príncipe certamente me escolheria, faltava tão pouco, bastava que eu caminhasse da minha casa até o centro da cidade e colocasse a minha missiva na caixa amarela. - Tá pronta, guria? Vamos? - Terminei, você tem dinheiro prô selo? - Tenho sim, mas não explora. Se tem selo, não tem sorvete!

Não gostei muito, mas sabia que era verdade, ela nunca tinha dinheiro e levando em conta as condições da minha casa, acho que seu salário só dava para comprar seus long plays, dos quais nunca abriu mão.

Sorri conformada para aquela cara marota. Eu gostava de Rita, ainda não sei como foi parar em minha casa, mas certamente foi uma dádiva.

Caminhávamos rapidamente, porque minha mãe pediu para que não demorássemos. Tentávamos nos livrar da poeira vermelha, levantada pelos caminhões quando perguntei:

- Rita o que será que meu irmãozinho tem? Ontem ele se debatia e eu vi ele babar, minha mãe chorou, eu não gosto quando minha mãe chora. - Não sei Consu, mas a gente precisa ajudar a Terê.

Ninguém chamava minha mãe de Terê, só a Rita que tinha mania de diminuir todos os nomes: Francisco era Chico, Conceição se transformava em Consu, Caetano em Caê, Teresa virava Terê. Tudo em sua boca soava intimidade.

- Mas, Rita... Eu insistia, puxando suas saias curtas, enquanto via o turco do táxi piscando pra ela:

- Por que ele cai tanto, se machuca tanto? Ontem eu não lhe contei, mas esse arranhão aqui foi porque a Jane tirou sarro dele.

- Consu, não brigue com seus amigos, eles não entendem. Pense que o Coca vai ficar bom e sua mãe, contente. O que os outros dizem não importa. Só devemos levar em conta o que vai no coração da gente. Rita rimava as palavras. Sua conversa soava-me como música naquele sotaque cantado, adquirido num Rio de Janeiro que não conhecia.

Colocamos a carta no correio. Eu já havia esquecido do meu empenho em ser a princesa do programa do Sílvio Santos, agora pensava no meu irmão.

O casaquinho que fizera para ele não servira. Clodoaldo tinha nascido lindo, tão forte, com aquelas mãos tão gordinhas. Ele gostava de mim, me sorria sempre.

Talvez Rita soubesse, eu só descobriria mais tarde, mas daquele dia em diante, iria acumular e distribuir muitos arranhões ao longo da vida...

- Olha Consu, chegou, chegou! Quando chegarrrrrrrmos em casa, você vai verrrrrr o que é um príncipe de verrrrrrdade e vamos embora que já está tarrrrrrrde!

Eu olhava aquele moço da capa do long play de olhos bem verdes. Não era tão lindo aos meus olhos como o Ronnie Von, vestido de príncipe, mas era muito bonito.

O sol já se punha no céu empoeirado de Juquiá. O pôr-do-sol era ainda mais vermelho e, surpreendentemente, mais belo naquele fim de tarde.

Chegamos e ouvimos os gritos desesperados de minha mãe. Ela não gostava de ficar só, mas sempre esteve só. Meu pai devia estar em algum canto do Brasil, fazendo estradas.

- Rita me ajuda aqui!!!!!!! É outra convulsão, meu Deus! Oh! Meu Deus! Porque não olha meu filho, meu Deus!

Nas primeiras convulsões do Coca, eu corria para o quarto de minha mãe, o único quarto da casa. Ajoelhava-me em frente a uma velha cômoda e rezava, rezava, rezava. Pedia, implorava mesmo, para a santinha preta da cômoda curar meu irmão, para que minha mãe parasse de chorar e nos desse mais atenção...

Quando eu era ainda menor recorrer a santinha, que tinha no meu pescoço, sempre funcionava. Funcionou quando meu irmão Carlos estava roxo, não conseguia respirar. Lembro-me que apertava a santa até minhas mãos doerem como se daquela forma meu pedido se transformasse em algo mais eficiente.

Naquela época meu pai estava na cidade. Carlinhos teve uma crise de asma e minha mãe ligou desesperada para que meu pai viajante viesse em socorro. Quando ele chegou, meu pequeno irmão estava brincando comigo. O velho e sisudo Carlos quase bateu na minha mãe por tê-lo chamado à toa. Nunca mais o Carlinhos ficou roxo, por isso acreditava tanto no poder da santa.

Mas na tarde de sol vermelho e carta no correio eu não fui como de costume até à cômoda, talvez porque achasse que a santinha da cômoda não era tão poderosa como a que antes habitava meu pescoço. Essa não existia mais, eu a perdi quando brigava na rua com os amigos que riam do meu irmão mais novo, que riam da maneira estranha que andava, que riam de seus tombos fenomenais que lhe enchiam de galos a testa.

Naquela tarde onde faltava muito pouco para usar cetro, coroa e manto no domingo de sonhos de todas as meninas da minha idade, fiquei ali, olhando para o moço da capa que me olhava, profundamente.

Fui dormir, tinha fome. Mas minha mãe e a Rita estavam muito angustiadas para fazer o jantar. Da cama improvisada da sala, vi quando Rita ligou, bem baixinho, sua pequena vitrola, a única da casa. E o moço dos olhos verdes da capa começou a cantar: "Dorme minha pequena, não vale a pena despertar... Dorme minha pequena, não vale a pena despertar... Eu vou sair por aí afora, atrás da aurora mais serena, Dorme, minha pequena, não vale a pena despertar...." Um dia Rita sumiu da mesma forma que surgiu. Por onde andará a minha Rita? Frô, 2000. Acalanto para Helena, 1971.