Voltei para um país onde o chefe de Estado vai caçar elefantes enquanto cinco milhões de pessoas estão sem emprego

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Carta de um cientista espanhol ao rei Juan Carlos

Principia Marsupia, Tradução Victor Farinelli 16/04

Querido Juan Carlos,

Me chamo Alberto Sicilia e sou investigador de física teórica na Universidade Complutense de Madrid. Até o ano passado, eu dava aulas na Universidade de Cambridge, na Inglaterra. Decidi regressar à Espanha porque queria contribuir com o avanço científico do nosso país.

Poucas semanas após a minha chegada, minha primeira alegria: Francisco Camps (político de ultradireita, ex-governador da Comunidade Valenciana que renunciou ao cargo após ser acusado em um escândalo de corrupção, por, entre outras coisas aceitar um suborno na forma de roupas de grife no valor de 12 mil euros)  obtinha um doutorado cum laude apenas seis meses depois de sua renúncia. Escrevi duas cartas para parabenizá-lo, as quais ele nunca me respondeu. Paco Camps deve estar muito ocupado. Talvez tenha sido contratado por Amancio Ortega (mega empresário têxtil espanhol) para desenhar sua coleção de ternos primavera-verão.

Abri a segunda garrafa de champagne ao conhecer as verbas gerais recém apresentadas ao Congresso. O investimento na ciência sofrerá um recorte de 600 milhões de euros. Imagine você se numa dessas apostamos na investigação científica e ganhamos um Nobel: quebraríamos a ordem geopolítica mundial. Até agora, os Nobel científicos são para britânicos, alemães, franceses ou norte-americanos. Nós ficamos com os Tour de France, os Roland Garros e as Champions League. Se ganhássemos também nas ciências, que consolo restaria para David, Angela, Nicolas e Barack?

Contudo, sofri minha terceia e definitiva comoção ao saber do teu safari. Dizem os jornais que custou 37 mil euros, doi anos do meu salário. Nós, que nos dedicamos à ciência, não fazemos isso por dinheiro. Ao terminar nossas teses de doutorado em física teórica, alguns companheiros meus foram trabalhar para Goldman Sachs, JP Morgan ou Google. Aqueles, como eu, que continuaram investigando, o fizeram por paixão. A ciência é uma das aventuras mais bonitas nas quais a espécie humana já embarcou. Ao voltar à Espanha, entendi que atravessávamos uma situação econômica complicada. Por isso aceitei trabalhar com muito menos recursos dos que me ofereciam em Cambridge, e um salário inferior ao que ganhava quando era estudante do primeiro ano de doutorado, em Paris.

Juancar, tenho que te agradecer. Tua aventura em Botswana me fez compreender definitivamente como é este país para o qual eu voltei.

Voltei para um país onde o chefe de Estado vai caçar elefantes enquanto cinco milhões de pessoas estão sem emprego. Voltei para um país onde o chefe de Estado ganha uma prótese de quadril numa clínica privada, enquanto milhares de compatriotas esperam meses para a mesma intervenção. Voltei para um país onde o chefe de Estado sai de férias em jet privado enquanto os políticos diminuem as verbas de ajuda às pessoas vulneráveis.

Se eu novamente for trabalhar em outro país, para poder salvar minhas investigações, não será uma grande perda para a Espanha. Não sou o Einstein da minha geração. Mas me desespero ao pensar em alguns físicos da minha idade que já são referentes mundiais nas melhores universidades. Muitos deles sonhavam com regressar um dia à Espanha, como eu fiz. Teríamos a oportunidade de reverter, finalmente, a irrisória tradição científica do nosso país. Nunca voltarão!!

Talvez tenhamos transformado a Espanha num grande terreno de caça. Mas aqui não se perseguem elefantes nem perdizes, mas sim investigadores. Quem sabe, no futuro, poderemos solicitar uma verba da WWF, por sermos espécie em extinção.

Mas permita-me terminar com outra questão que me perturba.  Na África estão centenas de espanhóis trabalhando em cooperação com ONGs. São garotos e garotas que vivem longe de suas famílias porque querem aliviar o sofrimento humano e construir um mundo mais decente. Se você tinha tanta vontade de viajar à África, por que não foi lá para abraçar esses jovens e mostrar a eles o quanto estamos orgulhosos do trabalho que estão fazendo?

Juancar, em teu último discurso de Natal, você afirmou que “todos, sobretudo as pessoas com responsabilidades públicas, tinham o dever de demonstrar um comportamento adequado, um comportamento exemplar”. E penso eu: se há meses atrás você disse isso e já tinha planejado fugir para caçar elefantes, ¿por qué no te callas?

Dr. Alberto Sicilia

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