SOCIALISTA MORENA

Para uma parte dos sulistas, nordestino só serve se for para trabalhar como escravo

O escândalo das vinícolas e seus capitães-do-mato é emblemático de uma gente tosca que bebe Sangue de Boi e arrota Romanée-Conti

Trabalhadores resgatados na colheita da uva em Bento Gonçalves-RS. Foto: divulgação
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CYNARA MENEZES

O capitão-do-mato não é uma questão de raça, mas de classe. É racismo pintá-lo apenas como o negro que capturava seus irmãos negros fugidos, quando historicamente ele foi muitas vezes branco ou mestiço. Tido como o mais temido capitão-do-mato do século 18, o paulista Bartolomeu Bueno do Prado, neto do Anhanguera, era branco. Hoje em dia, pode-se aplicar o termo "capitão-do-mato" a todo cidadão ou cidadã que, sendo trabalhador, explora seus semelhantes em nome do patrão, não importa se negro, loiro de olhos azuis ou oriental.

Pedro Augusto de Oliveira Santana, o homem que aliciou 200 pessoas de sua própria terra, Valente, na Bahia, para trabalhar nas vinícolas Aurora, Salton e Garibaldi, no Rio Grande do Sul, em condições análogas à escravidão, pode ser considerado no máximo pardo. Outro ser abjeto dessa história, o vereador de Caxias do Sul Sandro Fantinel, é branco de olhos claros. Como legítimos capitães-do-mato, ambos atuaram em defesa da escravidão de seres humanos, da exploração do próximo, como se fossem eles mesmos os senhores da Casa Grande.

O atravessador Pedro, tal e qual um feitor de fazenda colonial, mantinha os trabalhadores literalmente sob chicote, vigiados por seguranças armados na pousada/senzala e sujeitos a choques elétricos e spray de pimenta nos olhos se reclamassem das condições insalubres, presos ao cativeiro, sem poder escapar, em virtude das dívidas que eram obrigados a contrair. Em plena tribuna da Câmara, o vereador Fantinel, ardoroso bolsonarista, espumou de ódio contra os nordestinos em geral ao defender com fidelidade canina os donos das vinícolas.

"Não contratem mais aquela gente lá de cima. Conversem comigo e vamos contratar os argentino (sic). Todos os agricultores que têm argentinos trabalhando hoje só batem palma. São limpos, trabalhadores, corretos, cumprem o horário, mantêm a casa limpa e no dia de ir embora ainda agradecem o patrão", disse. "Agora, com os baiano (sic) que a única cultura que eles têm é viver na praia tocando tambor era normal que se fosse ter este tipo de problema."

A associação dos capitães-do-mato, perdão, o Centro da Indústria, Comércio e Serviços de Bento Gonçalves, atribuiu, pasmem, ao Bolsa Família a importação de baianos para trabalhar em condições análogas à escravidão em terras gaúchas. "Há uma larga parcela da população com plenas condições produtivas e que, mesmo assim, encontra-se inativa, sobrevivendo através de um sistema assistencialista que nada tem de salutar para a sociedade", disse a entidade, ecoando o discurso de Bolsonaro antes de chegar ao poder e tentar enganar os beneficiários do programa para se reeleger.

O que causa ainda mais indignação nessa história toda é constatar que, para parte dos sulistas identificados com o bolsonarismo (e não é pouca gente: quase 76% da população de Bento Gonçalves), os nordestinos são todos preguiçosos. Só servem se for para trabalhar como escravos

O que causa ainda mais indignação nessa história toda é constatar que, para parte dos sulistas identificados com o bolsonarismo (e não é pouca gente: quase 76% da população de Bento Gonçalves votou no ex-presidente derrotado), os nordestinos são todos preguiçosos, não gostam de trabalhar, como bem exemplificou o vereador de Caxias. Muitos deles até defendem a separação do Sul do restante do Brasil e não fazem questão alguma de esconder isso. O Sul "carrega o Brasil nas costas", dizem, enquanto o Nordeste "só pula Carnaval". Para essa gente, o nordestino só serve se for para trabalhar como escravo.

Mas sabem o que é engraçado? Os escravistas do vinho e seus capatazes se sentem superiores ao resto do país, e no entanto o produto deles é muito inferior ao argentino, ao chileno e ao uruguaio. Um espelho dessa gente tosca que se acha elite e nem é, que se enxerga branca sendo parda, que se enxerga europeia e estadunidense sendo latino-americana, que bebe Sangue de Boi e arrota Romanée-Conti.