"Dr. Jairinho", médico e monstro, e a tragédia do Brasil, ex-país da alegria

Como mergulhamos na decadência moral que nos levou, em menos de 10 anos, de "país mais otimista do mundo" a "Fukushima biológica"

Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil
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CYNARA MENEZES

Em 2012, 4 anos antes do golpe contra Dilma Rousseff e 6 antes da eleição de Jair Bolsonaro, uma pesquisa feita em 160 países mostrava o Brasil como "o mais otimista do mundo" e o 18º mais feliz. Em 2021, 5 anos após o golpe contra Dilma e 2 após a eleição de Bolsonaro, acrescida de uma pandemia mortal, nosso país despencou para o 41º lugar no ranking da felicidade entre 95 países pesquisados; caiu 12 pontos em relação a 2019, quando ocupava a 29ª posição na mesma pesquisa. O que aconteceu com o tal "país da alegria"?

Corruptos que se escondem sob a fachada de baluartes contra a corrupção; cristãos que preferem amar o dinheiro e odiar o próximo; cidadãos de bem capazes de matar e torturar, inclusive crianças. Serve para Jairinho e para muita gente no poder hoje

A primeira questão que se coloca é se realmente um dia fomos este país alegre da fama internacional. O Belchior discordava, dizia que éramos o produto de "três raças tristes". Moro num lugar comum/ junto daqui, chamado Brasil/ feito de três raças tristes/ folhas verdes de tabaco e o guaraná guarani, ele cantava, em Retórica Sentimental. Mas é fato que, desde 2003, quando Lula chegou à presidência, nosso país vinha com otimismo em ascensão. A famosa capa da The Economist de 2009, com o Cristo Redentor decolando como um foguete, é um indicativo disso.

Capa da Economist em 2009, na era Lula

Pela primeira vez na História éramos, mais que o país exótico do samba e do futebol, uma nação conquistando o respeito do mundo, um novo "player" global. A maré começa a mudar em 2013, quando tem início uma conspiração para arrancar o PT do poder, não importa a que custo para a democracia e as instituições. Em junho daquele ano, um movimento legítimo contra o aumento nas passagens de ônibus seria desvirtuado e sequestrado pela mídia comercial e pela extrema direita para desestabilizar o governo Dilma. Os trolls não saíram mais das ruas e das redes até derrubarem a presidenta, reeleita em 2014.

O golpe contra Dilma é peça fundamental para explicar o atoleiro em que entramos –para usar um termo da mesma Economist em 2015, quando se inicia o falso impeachment. O resultado dessa trama político-jurídico-midiática seria a eleição de um extremista de direita, Bolsonaro, em 2018. A pandemia de coronavírus veio como o fator imponderável de toda a nossa debacle, agravada milhares de vezes pelas ações e inações de um presidente inepto, irresponsável, autoritário e francamente repulsivo.

Capa do tabloide The Sun com Nicolelis

Viramos, nas palavras do cientista Miguel Nicolelis que ecoaram esta semana na mídia internacional, a Fukushima biológica do planeta: contagiosos, letais, à imagem e semelhança do nosso presidente. Não somos mais bem-vindos em nenhuma parte: todas as fronteiras se fecharam para o Brasil, literalmente. Ninguém quer se contaminar pelos brasileiros. Cepas malignas do coronavírus se multiplicam diante da incapacidade do governo em proteger a própria população, seja pelo lockdown ou pela vacina. Viramos párias, como se orgulhava de dizer o ex-chanceler de Bolsonaro.

Não bastasse a enorme tristeza pelas mais de 345 mil vidas perdidas para a Covid-19, há um mês os brasileiros acompanham a história do menino Henry, de apenas 4 anos, morto, apontam as investigações da polícia, após ser espancado pelo padrasto vereador, Dr. Jairinho, médico e monstro que coroou nossa tragédia sanitária com pinceladas de mundo-cão. Jairinho surgiu do mesmo habitat onde se criou o bolsonarismo, no caldeirão neopentecostal do Rio de Janeiro, terra do Cristo Redentor e de falsos profetas, vendilhões do templo que usam o nome do filho de Deus para perpetrar barbaridades. O pai de Jairinho, o coronel Jairo, fez campanha para o filho de Bolsonaro, Flávio.

Quanto tempo levaremos para voltar a acreditar que nosso país tem jeito? No momento, tudo que sinto é luto, dor, pena, desesperança. Como foi mesmo que disse Eduardo Cunha após engendrar a trama que derrubou Dilma? "Deus tenha misericórdia dessa Nação"

A infância roubada a uma criança por um político com traços de psicopatia dilacera nossos corações porque, além de cruel, é emblemática da decadência moral em que o Brasil mergulhou nos últimos anos, e o Rio em particular. Políticos corruptos que se escondem sob a fachada de baluartes contra a corrupção; cristãos que se orgulham em exibir sua face mais perversa e intolerante e que preferem amar o dinheiro e odiar o próximo; cidadãos de bem que ocultam uma personalidade sádica, capaz de matar e torturar, inclusive crianças. Serve para Jairinho e para muita gente no poder hoje.

Quanto tempo ainda estaremos afundados nessa desgraça? Quanto tempo levaremos para levantar a cabeça e voltar a acreditar que nosso país tem jeito? Quanto tempo para voltarmos a ter otimismo sobre o futuro? Não sei responder. No momento, tudo que sinto é luto, dor, pena, desesperança. Como foi mesmo que disse Eduardo Cunha após engendrar a trama que derrubou Dilma? "Deus tenha misericórdia dessa Nação."