O bloqueio e o fluxo: raciocínios singelos sobre a intervenção no Rio de Janeiro

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A intervenção federal-militar no Rio de Janeiro, que já completa quase dois meses, tem como uma das suas principais estratégias o que denomina “bloqueio”. Será que o“bloqueio” das drogas para “secar a fonte”, um dos pilares da intervenção, tem alguma possibilidade de êxito?

Por Paulo Pereira e Priscila Villela, pesquisadores do Observatório de Relações internacionais (ORI) da PUCSP

Apoiada em ações da GLO (Garantia da Lei e da Ordem), em funcionamento no Rio de Janeiro desde meados do ano passado, a proposta do general comandante da intervenção, Braga Netto, é bloquear rotas de entrada de drogas e armas no Rio de Janeiro com o uso das três forças militares.

Como apoio ao trabalho policial, o Exército colocou em funcionamento postos de controle por terra, em estradas que se conectam ao Estado e em ruas que dão acesso à cidade e às comunidades nas quais atuam grupos criminosos armados. Já são 3 mil militares envolvidos no cerco terrestre, que ainda conta com o suporte de veículos blindados e aeronaves. A Marinha se propôs fiscalizar a Baía de Guanabara e o porto, enquanto a Aeronáutica centra esforços no Aeroporto internacional Tom Jobim.

A máquina militar, nesse teatro de operações, pretende instituir a ordem da circulação. Funcionando como um filtro, essas barreiras pretendem autorizar ou proibir a passagem. Reter elementos indesejáveis, os dejetos sociais, e manter em circulação o que é avaliado como socialmente saudável e produtivo.

Exército-no-Rio-de-Janeiro

A título de exemplo, esse mecanismo funciona da seguinte forma: o medicamento Oxicontin, à base de opióides, produzido pela corporação farmacêutica transnacional Purdue Pharma, pode circular até chegar às centenas de farmácias espalhadas pelo Rio de Janeiro. O prensado de maconha produzido por um grupo desconhecido em algum lugar do Parque San Rafael no sul do Paraguai deve ser impedido de chegar às centenas de pontos de venda da cidade. (Vale destacar que medicamentos opióides têm sido responsáveis por milhares de mortes por overdose nos Estados Unidos e Canadá na última década, enquanto não há um único caso registrado na história de morte por overdose por uso de maconha).

A proposta é, nas palavras de Michel Temer, conter a “metástase” do crime ou, nas palavras do responsável do ministério da segurança pública recém-criado, Raul Jungmann, “secar a fonte”. Isso significa que enfraquecer o comércio de drogas ilícitas é enfraquecer o poder do Comando Vermelho, Amigos dos Amigos, Terceiro Comando e etc. Tais grupos criminosos dependeriam em grande medida da renda do mercado ilícito de drogas para a compra de armas, instrumentos que garantiriam o controle das comunidades pobres do Rio de Janeiro. A crítica de Jungmann ao que qualificou de classe média viciada, frouxa em costumes, sem valores ou capacidade de entender os limites entre o que é lícito e ilícito, vai nesse mesmo sentido.

Os resultados iniciais expostos como êxito dessa estratégia são detenções de pessoas, apreensões de armas, munições, veículos, equipamentos de comunicação e, claro, drogas, principalmente maconha e cocaína.

Será que esse objetivo específico de “bloqueio” das drogas para “secar a fonte”, um dos pilares da intervenção, tem alguma possibilidade de êxito?

Como leigos em assuntos militares, não somos capazes de analisar tal estratégia de “bloqueio” nesses termos. Nos falta expertisena matéria, da mesma forma que a praticamente todos os civis que são atualmente alvos direitos e indiretos da intervenção. Mas, se apelarmos para o raciocínio comparativo e histórico, que não demanda intrincados conhecimentos de estratégia militar, talvez a resposta se apresente cristalina.

O investimento no “bloqueio” da circulação de bens ilícitos não é exatamente novo no Brasil, mas já é feito nas fronteiras nacionais brasileiras desde os anos 1990, pelo menos (Lei do Abate nº 9.614/98 e Lei Complementar nº 136, que conferiu poder de polícia ao exército em regiões de fronteira, o ENAFRON, o Plano Estratégico de Fronteiras ou o Programa de Proteção Integrada de Fronteiras – PPIF) [caption id="attachment_1516" align="alignleft" width="406"]Operação Ágata das Forças Armadas brasileiras. Operação Conjunta das Forças Armadas Brasileiras em coordenação com outros órgãos federais e estaduais na faixa de fronteira Plano Estratégico de Fronteiras[/caption]

Esse tipo de atuação não tem demostrado resultados minimamente significativos no combate à disponibilidade e tráfico de drogas. O uso de cocaína, por exemplo, teve aumentos regulares ao longo dos anos, tornando o Brasil o segundo maior consumidor do mundo, bem como um dos mais importantes escoadouros de drogas ilícitas para países na África e na Europa. De fato, o Brasil é hoje uma das principais rotas de tráfico internacional do mundo, sendo os portos e aeroportos da cidade do Rio de Janeiro, de São Paulo e de Santos importantes pontos de transporte da droga.

A explicação militar e de alguns analistas para essa incapacidade de “bloqueio” das drogas se baseia no que consideram ser falta de recursos adequados para lidar com as fronteiras do país, apesar das muitas centenas de milhões de reais gastos para estas atividades.

Mas é difícil aceitar a explicação da falta de recursos quando o país mais poderoso do mundo em termos militares e policiais, os Estados Unidos, não consegue “bloquear” a entrada de drogas pelas suas próprias fronteiras. Lá, a previsão de gastos em 2018 para ações antidrogas é de US$ 27,57 bilhões e em 2017 o país gastou com ações de interdição de drogas US$ 3, 96 bilhões (13,3% do orçamento antidrogas). O país é ainda o que mais encarcera pelo crime de drogas. Um quarto de todos os presos do mundo estão em prisões norte-americanas, sendo que metade daqueles em prisões federais estão presos por crimes relacionados a droga (dados de 2015). A maioria absoluta são negros e pobres, como no Brasil. Ainda assim, os Estados Unidos se mantêm como o maior consumidor de cocaína do mundo e concentram ¼ das mortes relacionadas a drogas.

O raciocínio comparativo e histórico sugere a qualquer leigo em assuntos estratégicos militares que o “bloqueio” das drogas é uma missão impossível. Isso se deve ao fato do fluxo ilícito que se estrutura em torno dessa mercadoria responder a uma demanda social, não redutível ao desejo individual ou de uma classe, como pretende Jungmann. É constante e universal. Um fato social.

O fluxo das drogas atualmente consideradas proibidas tem dimensões locais, nacionais e muitas vezes transnacionais, movimentando dinheiro, pessoas e as próprias drogas entre as fronteiras nacionais. Esse fluxo conecta um conjunto vasto e heterogêneo de atores com funções diferentes nessa cadeia de circulação, localizados em diferentes esferas sociais. São milhares, talvez milhões de indivíduos de diferentes classes sociais, muitos representantes do Estado e do governo, como policiais, militares, juízes e políticos, outras inseridas em empresas capitalistas, como bancos e companhias privadas de segurança, além dos indivíduos mais ou menos parte de grupos que praticam sistematicamente atividades ilícitas. Movidos por diversos interesses, no mais das vezes vinculados ao enorme ganho financeiro propiciado por esse comércio considerado ilegal, essa multidão é parte estrutural do fluxo das drogas.

Se assumirmos que esse raciocínio é correto, seria factível imaginar que a estratégia do “bloqueio” desse fluxo, posta em ação pelo general Braga Netto, funcionará para “secar a fonte” do crime? Não. Não seria. Mas também não seria factível pressupor que nós somos os únicos dotados de raciocínio comparativo e histórico. Certamente, essa capacidade está presente no Ministério Extraordinário de Segurança Pública e no Gabinete da Intervenção.

Assim, se nos resta reconhecer que a intervenção não diz respeito ao estrangulamento da “metástase” do crime no Rio de Janeiro. Diz respeito a que, então?