America First e a reconfiguração da ajuda externa

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Se o corte no orçamento da USAID se concretizar, a indústria da ajuda externa deverá passar por um processo de reconfiguração dos atores e do atual modelo de financiamento   Nas últimas décadas o sistema de ajuda externa se tornou cada vez mais internacional. ONGs, agências estatais e inúmeras organizações de caráter assistencial se tornaram atores centrais no provimento de ajuda aos países em situação de emergências humanitária. Diferente do período da Guerra-Fria, onde a questão da ajuda era vista dentro da lógica geopolítica e dos objetivos estratégicos estatais, atualmente, o sistema de ajuda externa conta com uma densa rede de atores privados, especialmente ONGs, comprometidas com a reconstrução, com os processos de paz e com a ajuda em situações de crises humanitárias. O volume e o fluxo de recursos financeiros acompanharam esse movimento de expansão. Só no ano de 2014 foram gastos algo em torno de US$ 17 bilhões. Apesar dessa expansão, no ultimo dia 10 de março, o secretário de assuntos humanitários das Nações Unidas, Stephen O’Brien fez o seguinte alerta ao conselho de segurança da ONU; “Estamos num ponto crítico da história. Já no começo do ano estamos enfrentando a maior crise humanitária desde a criação das Nações Unidas. Há mais de 20 milhões de pessoas em quatro países que sofrem de inanição. Sem esforços globais e coordenados, morrerão de fome”. O secretário chama a atenção para os custos da crise e colocou um preço naquilo que seriam os “esforços globais e coordenados”. Para evitar que o problema da fome se intensifique em países como Iêmen, Sudão do Sul, Somália e Nigéria, regiões da África e do Oriente Médio, segundo o secretário, “precisamos de 4,4 bilhões de dólares até julho, e esta cifra é o custo detalhado, não uma cifra negociável”. O interessante é que o alerta de O’Brien surge poucas semanas depois do governo americano anunciar que pretende reduzir o orçamento da USAID (agência dos Estados Unidos para o desenvolvimento internacional) em pelo menos um terço. O Estados Unidos além de ser o pais que mais atua internacionalmente com programas de ajuda externa e desenvolvimento a países pobres, também é o que mais contribui financeiramente com a ONU, algo em torno de 22% do orçamento anual, e das operações de manutenção de paz (peacekeeping), 28,5%. Ou seja, qualquer mudança, mesmo que mínima, no orçamento americano, e da USAID mais especificamente, significa mudanças substantivas nos fluxos de dinheiro e de projetos destinados a ajuda. Jason Hickel, colunista do The Guardian, ao analisar o relatório da organização Global Financial Integrity (GFI) destacou as vantagens e recompensas ao se participar como doador na indústria da ajuda. Hickel explica ainda que só no ano de 2012, os países em desenvolvimento receberam um total de US$ 1,3 trilhões de dólares dos países ricos, incluindo todo tipo de ajuda, contudo, neste mesmo ano, US$ 3,3 trilhões vazaram para fora dos mesmos países. Ou seja, o fluxo de dinheiro mostra que a quantia que vai dos países ricos para os países pobres torna-se pálido, quando comparado ao fluxo que ocorre na direção contraria. Ao estudar o tema da ajuda internacional, David Sogge, pesquisador associado ao Transnational Institute mostra como os doadores participam da indústria da ajuda perseguindo os seus próprios interesses. Para Sogge, as recompensas aos doadores explica o por que do sistema de ajuda continuar a crescer, apesar, da sua falta de sucesso na promoção de objetivos claros, tais como crescimento equitativo e melhora de governança. Diante do cenário que se desenha para a indústria da ajuda externa uma questão deve ser colocada. Se do ponto de vista econômico e político os interesses dos doadores costumam ser alcançados e protegidos na ajuda externa, então por que motivo o governo americano quer diminuir o orçamento da USAID? Será que Donald Trump, um homem de negócios, não percebe a USAID e a ajuda externa como investimento? Estudos como os do Global Financial Integrity podem nos indicar algumas pistas na tentativa de responder a pergunta. A estratégia de seguir o dinheiro vem sendo utilizada como método de investigação e tem revolucionado a maneira de se pensar a ajuda internacional. A articulação e o alinhamento entre as agências financiadoras da ajuda, das instituições financeiras internacionais e grandes corporações é um ponto que merece destaque nesse processo. O sistema de funcionamento é simples. As instituições financeiras internacionais (IFIs) trabalharam incessantemente para facilitar e “consolidar” o acesso das empresas ocidentais aos mercados de serviços financeiros em países em desenvolvimento. Sendo que para agir, as IFIs e as empresas exigem, quase sempre, que os países receptores não coloquem impedimentos a entrada e saída dos fluxos de capital estrangeiro. Como a indústria da ajuda é formada por múltiplos atores, qualquer mudança na atual fonte maior de financiamento, o governo americano, leva a uma reconfiguração dos papeis destes mesmos atores. Se a redução do orçamento da USAID se concretizar, o cenário do sistema de ajuda humanitária deve sofrer mudanças consideráveis. As IFIs, as ONGs, a ONU, as empresas, entre outras, disputam fatias deste orçamento. A proposta do governo Trump de reduzir o orçamento da USAID, mesmo parecendo contraditório do ponto de vista econômico, pode significar que outros grupos ganharão destaque futuramente nessa indústria. Ou seja, no processo de reconfiguração do sistema de ajuda externa, dentro da lógica do America First, o que ainda não está claro, é quais grupos que vão participar dessa estrutura mais em primeiro do que outros.     Diego Araujo Gois é mestrando do Programa de Pós-Graduação San Tiago Dantas (Unesp, Unicamp e PUC-SP) e pesquisador do GECI