Americanos sentem que algo se perdeu. Algo se quebrou, está se quebrando

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Caetano Veloso compôs esta música no inicio dos anos 90, quando no Brasil vivíamos o governo Collor e os EUA tinham Bush pai como presidente. São 25 anos desde então, com os norte-americanos passando por Clinton, Bush filho e Obama. Neste período, consolidou-se nos EUA uma narrativa política pautada primordialmente pela direita. Nesta narrativa, os valores tradicionais (anti-gay, anti-aborto, anti-imigração, anti-diferença) foram usados como ferramenta para mobilizar a população pelo lado da direita. Pelo centro, os democratas se agarravam à memória do New Deal de Roosevelt (como a aposentadoria pública – Social Security – que Bush filho queria privatizar) e usavam os sindicatos para mobilizar a população pelo lado do trabalhismo. Mas ambos fizeram o jogo de Wall Street: desregulamentação do sistema financeiro, taxas baixíssimas sobre investimentos em bolsa (capital gains) e transações financeiras, e tratados internacionais para facilitar a contratação de mão de obra em qualquer lugar em que esta seja mais barata. O resultado é que hoje os EUA têm um nível de desigualdade igual ao do Brasil, com índice Gini em torno de 0.5. Quando Caetano compôs Americanos, o Gini dos EUA era 0.38, e o do Brasil 0.62.  Os números em dólar enganam muito. A renda média por domicílio nos EUA é hoje perto de 50 mil dólares. Uma família com 200 mil reais por ano no Brasil está numa posição muito confortável. Nos EUA, esta família com renda média está muito perto da linha de pobreza. A privatização do sistema educacional e do sistema da saúde nos EUA faz com que uma escola privada custe pelo menos 20 mil dólares por ano. Uma boa universidade custa pelo menos 35 mil dólares por ano. Mas a educação pública não é de boa qualidade? Sim, mas apenas nas escolas das áreas ricas onde o aluguel/prestação não sai por menos de 30 mil por ano e o imposto territorial outros 10 mil. Acabou o dinheiro da família de renda média? Mas ainda tem a saúde. Um plano básico (obrigatório pela lei do afordable care aprovada pelo Obama) custa no mínimo 5 mil dólares por ano por família e cobre apenas uma parte dos atendimentos. Se uma família com um plano de saúde básico sofre uma emergência (acidente automobilístico, enfarto, apendicite, AVC...) a conta chega fácil aos 40 mil dólares. Em resumo, apesar de toda a exuberância da economia norte-americana uma família com o rendimento mediano de 50 mil dólares – lembrem-se que metade dos 300 milhões de norte-americanos ganham menos que isto – não tem condições de custear a educação de um único filho e está a um acidente de distância da falência. Desde os anos 80, quando Reagan começou a desmontar as poucas políticas de bem estar social e Wall Street consolidou o poder do capital especulativo em detrimento do capital produtivo, até bem pouco tempo a maioria da classe média norte-americana acreditava que o sistema funcionava a favor da maioria. Agora não mais. A grande maioria dos norte-americanos, sejam os raivosos religiosos das cidades pequenas ou os conectados jovens das grandes cidades percebe hoje que o sistema não funciona para a maioria e sim para uma pequena minoria de bilionários. E de certa maneira isto move tanto os que apoiam Donald Trump quanto os que apoiam Bernie Sanders. Do lado de Trump estão os brancos, mais velhos, sem educação superior, moradores de pequenas cidades. Para cativar estes eleitores, Trump usa fórmulas extremamente simplificadas e comumente racistas do tipo: vamos expulsar todos os mexicanos (que competem com os americanos sem curso superior pelos piores empregos disponíveis) ou vamos trazer de volta os bons empregos (que esta geração perdeu quando comparado com os empregos que seus pais tiveram entre 1950 e 1980).  Noam Chomsky, sempre certeiro em suas colocações, liga o apoio a Trump à piora na expectativa de vida que tem sido medida entre os brancos norte-americanos de baixa-escolaridade, revertendo dois séculos de progresso contínuo na saúde geral. Exceto pelo simplismo de suas propostas xenófobas e racistas Donald Trump não está fazendo uma campanha conservadora como fizeram os republicanos nos últimos 40 anos. Não está dando atenção para a questão do aborto nem para o casamento gay. Trump sabe que existem milhões de norte-americanos enfurecidos com a estratégia republicana de usar os valores conservadores para empurrar políticas econômicas em favor do grande capital. E, heresia das heresias para os republicanos, Trump promete aumentar impostos de dividendos (capital gains)! Do lado de Sanders estão os jovens, com mais escolaridade, moradores das grandes cidades.  Nas primárias de Iowa, os jovens democratas votaram por Sanders contra Hillary Clinton numa proporção de 6 x 1. E Hillary ganhou entre os mais velhos na proporção de 4 x 1. Importante lembrar que o voto não é obrigatório nos EUA e que os jovens estão entre os que menos comparecem as urnas. No caso de Sanders versus Clinton, consistentemente as mulheres seguem a mesma clivagem por idade, as jovens preferindo Sanders, as mais velhas do lado de Hillary Clinton.  Bernie Sanders cativou a geração Occupy/Snowden/Assange que tem como bandeira fundamental o entendimento de que o jogo democrático está viciado em favor das grandes corporações. Uma geração que também sofre com a falta de boas perspectivas de trabalho e que carrega, desde muito jovem, dívidas significativas para pagar a universidade, por exemplo. Em comum, tanto os eleitores de Trump quanto os de Sanders percebem que a democracia norte-americana foi sequestrada pelos interesses especiais das grandes corporações e do capital especulativo, e que nem Bush nem Clinton nem Obama fizeram muita coisa para mudar isto, muito antes pelo contrario. A questão que assombra o establishment norte-americano é se esta revolta é suficiente para eleger o maluco egocêntrico que fala promete e bobagens, ou o velhinho socialista que promete elevar o imposto sobre dividendos para 65% para pagar a universidade de todos os jovens. A vitória de Hillary na Carolina do Sul na semana passada colocou a senadora e ex-secretária de estado bem na frende de Sanders que, apesar de ter poucas chances de conseguir ser nomeado candidato, já conseguiu a proeza de mover a discussão para o lado da esquerda. Americanos sentem que algo se perdeu. Algo se quebrou, está se quebrando. Ilustração de capa: Nick Solari