"JORNALISMO PROFISSIONAL"

Estadão acusou juiz de execuções penais de ser ligado ao crime organizado

Luis Carlos Valois, do AM, referência em sua área, passou a ser ameaçado de morte por facção após ser rotulado como criminoso pelo tabloide paulista de linha reacionária

Juiz Luiz Carlos Valois, acusado pelo Estadão.Créditos: TV Fórum
Escrito en BRASIL el

O caso envolvendo a esposa de um preso ligado ao Comando Vermelho que cumpre pena no Amazonas, batizada de “dama do tráfico” pelo tabloide paulista dado a posições reacionárias O Estado de S. Paulo, apelidado de Estadão nos idos dos anos em que refletia relevância na imprensa brasileira, não é o primeiro em que a publicação rotulou alguém como “criminoso” de forma deliberada e arbitrária.

Neste episódio atual, o Estadão tentou imputar por meio de um malabarismo “investigativo” uma relação entre o crime organizado naquele estado da Região Norte e o ministro Flávio Dino, da Justiça e Segurança Pública, até então franco favorito para ocupar a cadeira vaga existente por ora no STF. A Fórum, assim como outros veículos e jornalistas independentes, vem mostrando nos últimos dias os buracos e erros crassos cometidos pela redação do tabloide em relação à “notícia”.

No entanto, algo com relativa semelhança já ocorreu num passado não muito distante. Em 1° de janeiro de 2017, em Manaus, capital do Amazonas, ocorria a mais sangrenta rebelião em penitenciária já registrada até então na história do Brasil, que deixou 56 detentos mortos, todos eles com os corpos esfacelados e mutilados. A tomada de poder foi no Complexo Penitenciário Anísio Jobim (Compaj) e chocou o país por sua barbaridade, logo no primeiro dia do ano.

Naquela situação de violência e tensão extremas, o juiz responsável pela Vara de Execuções Penais de Manaus, Luis Carlos Valois, foi chamado imediatamente para tomar pé da chacina desmedida que ocorrida dentro do Compaj. Valois é reconhecido em todo o Brasil, sobretudo na área do direito, por ser uma referência no exercício desta atividade relacionada aos direitos humanos das pessoas encarceradas. Um homem de fala tranquila, com mestrado e doutorado na Universidade de São Paulo (USP) e pós-doutorado na Universidade de Hamburgo, na Alemanha.

O juiz ficou mais de 12 horas no local, tentou de tudo, com orientação das autoridades policiais que resguardavam o mínimo da segurança na unidade, e por fim conseguiu pôr fim à rebelião, fazendo com que todos os reféns, que eram funcionários do Estado, fossem liberados. Exausto e com a missão cumprida, diante dos olhos de todos as autoridades que acompanhavam o morticínio, ele voltou para casa.

Sem pregar os olhos nem sequer por um minuto, Valois recebe uma ligação. Era um repórter do tabloide O Estado de S. Paulo. Ele concede entrevista normalmente, mesmo arruinado de cansaço. Horas depois, a publicação de linha reacionária estampa seu site com a manchete “Juiz chamado para negociar rebelião é suspeito de ligação com facção no Amazonas”.

Incrédulo, uma vez que jamais ouvira tamanho ultraje absurdo, Valois foi às redes sociais e se manifestou indignado contra o tabloide ultraconservador paulista. Como a “reportagem” do tabloide que se jacta de fazer “jornalismo profissional” o vinculava a uma determinada quadrilha do crime organizado, os rivais do bando passaram a ameaçá-lo diretamente de morte.

“Sobre a covardia do Estadão. Ontem, depois de passar doze horas na rebelião mais sangrenta da história do Brasil, um repórter, dito correspondente desse jornal me liga. Eu digo que estou cansado, sem dormir a noite toda, mas paro para atendê-lo por vinte minutos. Algumas horas depois sai a matéria: ‘Juiz chamado para negociar rebelião é suspeito de ligação com facção no Amazonas’. O Estadão é grande, eu sou pequeno, um simples funcionário público do norte do país. Eles não publicaram nada do que falei, nem, primeiramente, o fato de que eu não era o único a negociar a rebelião. Desenterraram uma investigação contra mim da Polícia Federal em que esta escuta advogados falando o meu nome para presos, sem qualquer prova de conduta minha. Detalhe, todos os presos das escutas estão presos, nunca soltei ninguém. Mas insinuaram que isso tinha algo a ver com o fato de eu ter ido falar com os presos na rebelião, que sequer eram os mesmos da escuta. Fui porque tinha reféns. Estamos no recesso, eu não estou no plantão, fui porque havia reféns, dez reféns, mas isso eles não falaram também. Fui chamado pelo próprio Secretário de Segurança do Amazonas que, não por coincidência, é um dos delegados da Polícia Federal mais respeitados do Estado. Ele, o delegado, veio me buscar em casa, me cedeu um colete a prova de balas, e fomos para a penitenciária. O secretário de administração penitenciária, egresso igualmente da PF também estava lá aguardando. Tudo que fiz, negociei e ajudei a salvar dez funcionários do Estado, reféns dos presos, fiz sob orientação dos policiais. Tudo isso falei para o tal Estadão, mas foi indiferente para eles. Agora recebo ameaças de morte da suposta outra facção, por causa da matéria covardemente escrita, sem sequer citar o que falei. Covardes. Estadão covarde, para quem não basta “bandido morto”, juiz morto também é indiferente”, desabafou o juiz.

Desabafo indignado do juiz Luiz Carlos Valois à época em que foi acusado pelo Estadão

A “apuração rigorosa” do tabloide paulista reacionário baseou-se exclusivamente numa investigação aberta pela Polícia Federal tempos antes da rebelião, em que advogados de presos falavam de maneira fortuita o nome de Valois em ligações para seus clientes. As conversas eram de que os presos queriam um abaixo-assinado para que o juiz não deixasse a Vara de Execuções Penais, uma vez que o magistrado respeitava e exigia que os direitos dos detentos fossem garantidos. Ele jamais foi condenado por tal episódio e sequer tornou-se réu.

Até a pomposa e protocolar Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), furiosa com a postura do tabloide, soltou uma nota ressaltando os valores de Valois e sua postura naquele momento grave, afirmando que o juiz “atuou com verdadeiro espírito de servidor público zeloso e compromissado, já que não estava de plantão ou no exercício da atividade, pois o fato se deu em recesso forense, mas ao ser acionado pela cúpula da segurança pública do Amazonas, prontamente atendeu ao chamado e se dirigiu ao local dos acontecimentos para contribuir com a solução do problema”.

Luis Carlos Valois concedeu entrevista no programa Fórum Onze e Meia nesta segunda (20) e relembrou indignado o ocorrido há quase seis anos. Ele processa judicialmente o Estadão pela “reportagem” que quase o levou à morte e que manchou seu nome de forma inapagável.

“Eu mesmo já estive em manchete do Estadão, sendo acusado de ser “juiz suspeito de participar de facção” porque eu estava visitando penitenciária todo mês. Eu já passei por isso, e no Estadão. Eu tenho um processo contra o Estadão até hoje (...) O Estadão, logo após a rebelião de 2017, que eu intermediei a pedido da Polícia Federal, saiu na manchete do Estadão: “juiz que negocia o fim da rebelião é suspeito de favorecer facção”, uma coisa assim... É, saiu isso...”, relembrou o magistrado em entrevista à Fórum.