A intervenção militar: entre o riso carnavalesco e o medo oficial

O medo da desordem, como ocorreu no período da ditadura militar que levou muitos brasileiros a defender a intervenção, parece ter voltado. É uma moeda muito interessante para os donos do poder: manter a violência em níveis catastróficos em períodos de crise para agir de forma radical

Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil
Escrito en BRASIL el
Não é preciso ler um livro de Bakunin ou uma obra de Malatesta para saber que a polícia (ou o militarismo de modo geral) tem a função de proteger o Estado e não o cidadão, ou talvez defender o Estado do cidadão. Esse pensamento está tão disseminado que é possível encontrá-lo no ator Wagner Moura1, conhecido mundialmente pela série Narcos. Ou em um game onde adolescentes hackeiam toda a cidade de San Francisco.2 Mas existem pessoas que acreditam que a intervenção militar no Estado do Rio de Janeiro tem a função de pôr fim a violência. Contudo, todos nós sabemos historicamente que esse tipo de ação concentra-se, com maior vigor, na Zona Sul e Norte da Cidade. Os bandidos fogem dessa região e se encastelam na Zona Oeste e na Costa Verde levando terror para as comunidades dessas regiões. Zona Sul, Norte e Centro são certamente as regiões onde acontecerão os diversos protestos contra a Reforma da Previdência. A população eufórica com os blocos e os sambas enredos politizados no Carnaval, sem dúvida, não ficará calada quando a votação começar. A confusão será generalizada. Além disso, há o medo das classes dominantes de que as esquerdas, que compadecem da indignação popular, consigam infiltrar uma carga ideológica nessas manifestações. Alguns acreditam que a Intervenção Militar vai frear a Reforma, pois se sabe que durante a ação dos militares não pode haver nenhuma alteração da Constituição. Mas se houver uma alteração na Constituição durante a Intervenção, quais serão as medidas legais? Intervenção Militar? Essa é uma forma de desgastar o próprio exército. O dinheiro gasto para operações urbanas irá prejudicar em outros investimentos como o grande sonho da Marinha de possuir um submarino nuclear. No México isso já ocorreu. A Marinha mexicana espalhada pelas cidades não possui um mísero submarino.3 O medo da desordem, como ocorreu no período da ditadura militar que levou muitos brasileiros a defender a intervenção, parece ter voltado. Na verdade, é uma moeda muito interessante para os donos do poder: manter a violência em níveis catastróficos em períodos de crise para agir de forma radical. Afinal, acabar com a criminalidade acabaria, também, com a utilidade da polícia. Logo, como o Estado iria vigiar a população? É uma questão tratada por Michel Foucault magistralmente. Para que a agenda política neoliberal consiga avançar é necessário um choque, já que em um ambiente democrático, projetos antipopulares não desfrutam de um terreno fértil para prosperar. O golpe de 2016 foi o primeiro choque. O segundo é a aprovação das Reformas, sendo que uma delas - a Trabalhista - já está em vigor. Os trabalhadores já estão sentindo na pele. O terceiro choque, como afirma o professor Ramon Blanco, baseando-se nos estudos de Naomi Klein, é a articulação das “cargas policiais reprimindo as manifestações”.4 Lógico que isso já vem ocorrendo, mas com uma Intervenção Militar irá se radicalizar. A política do medo sempre foi fundamental ao longo da história Ocidental. Na Idade Média a Igreja administrava o pavor do Apocalipse provocando punições e torturas para manter a ordem da salvação. Mais tarde, o maior teórico do absolutismo baseava as suas teorias no medo, no temor de uma figura monstruosa: o Leviatã. Os países do oeste propagavam, no século XX, o medo do comunismo. Hoje o medo é voltado ao criminoso, o indesejado que não permitirá o consumo da liberdade. Passado o riso carnavalesco que, desta vez, foi bastante politizado, voltamos ao medo político. É a mesma batalha travada no Renascimento de que fala Mikhail Bakhtin, entre o medo oficial e o riso popular. Esse medo, como bem mostrou o sociólogo Zygmunt Bauman, é a vulnerabilidade que, por seu turno, “deve ser fabricada”.5 Sartre disse uma vez que “aquele que não tem medo não é normal, isso nada tem a ver com a coragem”. Mas não podemos deixar o medo chegar ao pânico, deixá-lo nos obrigar a fazer escolhas insanas. A criminalidade tornou-se um argumento para legitimar determinadas ações, mas temos que tomar cuidado. O medo retarda a nossa vontade de ir para frente. O riso, durante o Carnaval, foi tão lindo e instigador que seria um absurdo deixarmos a política temerosa do governo golpista pôr fim a luta que alcançou um nível de identificação surpreendente.  

1 https://revistaforum.com.br/semanal/wagner-moura-pm-e-treinada-para-proteger-o-estado-nao-o-cidadao/

2 http://diplomatique.org.br/watch-dogs-2-e-a-retorica-dos-games-a-interdependencia-entre-dois-mundos/ 3 RODRIGUES, Thiago. Rio de Janeiro sitiada?. http://diplomatique.org.br/rio-de-janeiro-sitiada/ 4 BLANCO, Ramon. A doutrina de choque temerário. Le monde diplomatique Brasil, ano 10, n. 116, mar. 2017. p. 11. 5 BAUMAN, Zygmunt. Em busca da política. Rio de Janeiro: Zahar, 2000. p. 66.