O suicídio do Reitor: a política de execração pública

O caso do Reitor é gravíssimo, exige investigação e atribuição de responsabilidades que leve em conta o que expressamente está denunciado pela vítima.

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O caso do Reitor é gravíssimo, exige investigação e atribuição de responsabilidades que leve em conta o que expressamente está denunciado pela vítima. Por Carol Proner e Juarez Tavares* À primeira vista, parece que o suicídio é a expressão de uma condição patológica ou de grave distúrbio mental, próprio de pessoas enfermas e destituídas de racionalidade. Sem querer introduzir aqui a polêmica em torno de suas causas reais ou da noção de racionalidade, que poderiam suscitar longas especulações, o certo é que a eliminação da própria vida é um ato grave e que está a merecer certa consideração, não importam as condições que o desencadearam. Na época da ocupação americana do Vietnam, não foram poucos os protestos da população local contra os invasores, sendo bem marcantes os suicídios de monges budistas, autoimolados em praça pública. Os corpos carbonizados na combustão da gasolina, despejada sobre a cabeça e depois inflamada com o auxílio de uma pira, expressavam a dureza e quase irreversibilidade de uma situação de desespero e de impotência diante do senhor poderoso do Ocidente. Nos tempos atuais, a violência do sistema econômico-financeiro produziu tentativas de autoimolação na Grécia, suicídios pelos desahucios, na Espanha e a morte do jovem Mohamed Bouazizi, estopim da crise Tunisina e um dos símbolos das chamadas Primaveras Árabes. O relato das vítimas do sistema econômico é semelhante quanto à angustia, o desespero e a impotência. No suicídio, como sacrifício extremo, há sinais intensos de rebeldia e protesto. Antes mesmo desses acontecimentos que marcaram época, já interessava ao estudo de suas causas. Tendo em conta sua frequência em grupos sociais determinados, chega DURKHEIM a anunciar, a partir dele, sua teoria de coesão social, como fundamento explicativo dos fenômenos que ocorrem nas chamadas sociedades anômicas. Uma vez que o suicídio não é somente o ato de um indivíduo isolado, mas também um fenômeno social, conclui DURKHEIM que cada sociedade possui, em determinado momento histórico, uma atitude definida diante dele. Conforme o grau de integração social seria possível explicar por que, em certas condições e em determinados grupos, sua taxa de incidência seria maior ou menor. O que assinala, então, sua principal característica não é a patologia, a qual pode ocorrer, é verdade, mas, sim, a posição social do sujeito e suas relações com o mundo da vida. À medida que sua personalidade e os mecanismos de superação de traumas já não possam mais corresponder às exigências de uma integração ou reintegração social, estarão nele suspensos todos os vínculos vitais. O suicídio, portanto, não é um ato irracional, nem um ato de covardia, senão um ato de valentia, de coragem, de discernimento, de rebeldia, de enfrentamento de uma realidade que já não lhe serve e que deve ser mudada, mas para cuja mudança o sujeito se vê impotente, tal como os monges budistas do Vietnam ou os imolados do sistema econômico. Se a cada sociedade há uma forma de suicídio que lhe corresponde, na atual sociedade pós-moderna, em que os vínculos sociais se desagregam em favor de sentimentos de ódio e oposição ao próximo, fortalecidos e disseminados de maneira massiva e universal por atos de desprezo e humilhação, estão cada vez mais evidentes os atos de autoextermínio, como demonstração da própria impotência para alterar a realidade inóspita. Justamente, a partir da crítica exposta por esse ato extremo, podemos ver como a sociedade contemporânea se ajusta ao que a mais eminente historiadora alemã, UTE FREVERT, assinala, à chamada política da execração. ?Não é nova essa política de execração. Fora das películas, a política de execração nasce justamente das formas de execução penal, ou seja, é um produto do poder punitivo, uma criação do Estado. Como pena infamante, estava presente em todas as legislações desde o século XIII até a implantação dos Estados constitucionais. Não é à toa que a Constituição mexicana de 1917, que é o diploma legislativo por excelência da modernidade e sob cujo modelo se elaboraram os demais diplomas constitucionais, expressamente a proíbe (art. 22). Essa proibição representa os anseios de uma sociedade que valoriza a pessoa, que faz dela o centro da ordem jurídica, o que, na verdade, correspondia ao arcabouço teórico do iluminismo, mas que, na prática, ficara perdida nas urdiduras parlamentares. Nos seus primórdios, as penas infamantes eram geralmente impostas aos autores de furto e de delitos sexuais. Mais tarde se estenderam a inúmeros outros delitos, como aos atos de violação sexual ou de defloramento, ao homossexualismo, às blasfêmias, às falsificações, ao falso testemunho e a toda a sorte de heresia. De conformidade com a legislação então vigente, o condenado deveria ser submetido à execração pública por duas horas, aos domingos e feriados, mediante a inflição de insultos, sofrimentos físicos e, inclusive, lançamentos de dejetos ou excrementos. Alguns condenados estavam também sujeitos a apedrejamentos, que lhes causavam dores e até lesões graves. A execração servia tanto à vingança pessoal ou à exteriorização dos sentimentos de torpeza, como também à imposição de uma condição de medo e terror. Com esse último propósito, a própria execução da pena de morte se fazia publicamente e era sempre precedida de atos de humilhação, na Alemanha até o Código Penal prussiano de 1851, na Inglaterra até 1868 e na França até 1939. As penas infamantes eram comuns no mundo jurídico medieval, mas sua disseminação começa aos poucos a retroceder, com a multiplicação de movimentos de repulsa e também por força de alterações ocorridas no âmbito do próprio direito penal e dos direitos humanos. O governo da saxônia, por exemplo, pressionado por revoltas contra essa forma de punição, recomenda aos tribunais, em 1727, que não mais a apliquem. Sua decisiva eliminação só se dá, porém, com o fortalecimento da prisão, que inaugura, no dizer de FOUCAULT, uma nova tecnologia de poder e de disciplina. No seio dessa alteração de perspectiva e no sentido da tônica dos movimentos de reforma penal humanitária, em 1815, o deputado britânico Michael Taylor apresenta um projeto de lei para eliminar, definitivamente, do Reino Unido, todas as formas desonrosas de execução de penalidades e, com efeito, todas as penas infamantes. Apesar da disseminação dos movimentos de reforma penal, em muitos outros países ainda perduraram penas infamantes e desonrosas. Assim, o Código Penal napoleônico de 1810, sob o argumento de seus efeitos dissuasórios, as manteve, como penas acessórias das penas de prisão perpétua ou de longa duração, previsão essa mais tarde revogada para facilitar a reintegração social do condenado. A Idade Média é sempre invocada como a época das trevas, dos infortúnios, dos sofrimentos, dos abusos e das desumanidades. Mas a questão fundamental que se coloca na pós-modernidade é justamente a de verificar até que ponto as penas infamantes medievais ou, como chama FREVERT, a política de execração se recupera e se dissemina. A execração pública medieval, apesar de todos seus malefícios e atentados à dignidade da pessoa humana, tinha uma limitação: só era executada por no máximo duas horas, aos domingos e feriados; em determinadas épocas, já no final de seu desenvolvimento, durante duas horas a cada mês. Uma vez que se admita sua reconstituição na atual quadra histórica, principalmente diante do chamado direito penal do espetáculo, será que essa execração está ainda sujeita a limites? Aqui, não interessa propriamente a execução das penas de prisão, que como todo o mundo sabe, por ser fato público e notório, encerra toda a torpeza, humilhação e sofrimento. O que nos interessa mesmo, até em face do ato de suicídio que temos como parâmetro, é outra forma de humilhação: é a própria política de execração. Quando foram substituídas as penas infamantes pelas penas privativas de liberdade, tinha-se em vista sua natureza, tomada no sentido de retributivo, e também sua finalidade, essa última bem esboçada no Programa de Marburg: a ressocialização dos capazes de ressocialização, a intimidação dos não carentes de ressocialização e a inocuização dos incapazes de ressocialização. Com essas finalidades, o positivismo sociológico alemão compreendia a pena como um instrumento do Estado destinado a disciplinar os cidadãos conforme sua capacidade de adaptação social. Com isso, obteve uma ocultação do sofrimento causado pela execução e, ao mesmo tempo, maior eficácia na contenção dos indesejados. A execração nessa forma de disciplina se resumia, assim, ao uso dos aparelhos internos de repressão. Para o público, em geral, bastava a publicidade da condenação. Procedia-se, como elucida FOUCAULT, ao desaparecimento do corpo. O projeto todo se destinava mesmo à destruição do condenado como agente social ou à intimidação dos não condenados. Na pós-modernidade, no entanto, a política de execração deixa os muros da prisão e, sem limites, alcança formas eficientes de eliminação do inimigo a ser combatido, entrando em cena a midiatização do comportamento desviante acompanhado de narrativas de pós-verdade que tornam o ato da privação da liberdade apenas o complemento de um martírio psicológico. Os tempos sombrios vividos no Brasil convidam a uma reflexão sobre o agravamento da tensão social e o correspondente aumento dos mecanismos de controle de poder e comportamento, censura, atos de exceção e abuso de autoridade. O inimigo a ser combatido, o antissistema, não está bem definido, assim como também não está identificado com clareza quem é o perpetrador, sequer o próprio sistema é conhecido, sendo essa uma característica estratégica da pós-modernidade, ou modernidade líquida, como prefere ZYGMUNT BAUMAN. O traço mais evidente do aumento da exceção no Brasil tem sido identificado pelo uso do sistema de justiça criminal para combater um pretenso mal maior da sociedade, a corrupção sistêmica, difusa, corrupção líquida, que passou a ser justificativa para a inobservância do estado de inocência em nome do bem maior, a sociedade. Admite-se abertamente a hipótese da condenação sem provas, admite-se o uso de métodos ilegais para a obtenção de provas e o vazamento seletivo de informações processuais à imprensa com o fim de informar a opinião pública, manobrando a verdade pós factual e atingindo a execração pública do inimigo, mesmo sem qualquer acusação formal. Eis a fórmula da execração pós-moderna. Com o enfraquecimento dos poderes legislativo e executivo e a crise política, o poder judiciário acolhe boa parte das expectativas populares de rearranjo institucional, o que reforça o fenômeno da judicialização da política e o estímulo ao ativismo de juízes e procuradores que parecem cumprir uma missão civilizatória. A fórmula da exceção se locupleta pela legitimidade do poder punitivo apoiado na ideia segundo a qual vivemos tempos igualmente excepcionais que precisam ser enfrentados com o apoio da população, com o respaldo midiático amparado no princípio da publicidade dos atos processuais, fazendo crescer o clamor popular e a possibilidade aniquilação moral. O arbítrio que decorre do sistema de justiça criminal tem função didática e já é sentido em todas as partes, espraiando-se nas relações verticais com a certeza da impunidade. O problema não é o general, mas o guarda da esquina, lembrando a frase de Pedro Aleixo nos tempos de Costa e Silva. O arbítrio está no delegado de plantão, no chefe de departamento na Universidade, no síndico do prédio, no juiz corregedor, nas relações de subalternidade que se inspiram na exceção judicial. O suicídio do Reitor da Universidade Federal de Santa Catarina, Luiz Carlos Cancellier Olivo, serve de alerta para a gravidade do fenômeno e foi denunciado por ele próprio como ato extremo diante da humilhação e do abuso de autoridade. Sem deixar de reconhecer que a seletividade penal é traço definidor do sistema de justiça brasileiro, atuando no compasso discriminatório social e racial desde as origens, um tipo novo de seletividade tem sido recorrente nesses processos de combate à corrupção, a seletividade política que, a pretexto de combater os desmandos, escolhe investigar e perseguir apenas alguns. Mas o Reitor não corresponde ao alvo-tipo político, tal qual ocorre na Operação Lava-jato. O que assemelha a Lava-Jato à Operação Ouvidos Moucos é a forma de atuação do aparelho repressivo penal e a exposição midiática coordenada que, em nome da transparência, respaldou uma série de violações de direitos e garantias individuais que levaram um homem público a uma situação limite. Em escritos anteriores e no bilhete de despedida, Cancellier relatou a humilhação e o vexame a que ele e outros colegas da instituição estavam sendo submetidos, tendo sido presos, desnudados, revistados e encarcerados sem qualquer denuncia prévia, tiveram suas vidas devassadas e, acusados de formarem uma quadrilha criminosa, foram impedidos de entrar na Universidade. As medidas de força adotadas, da condução coercitiva aos mandados de busca e apreensão acompanhados pela mídia, produziram um linchamento moral indefensável, o sentimento de banimento, infâmia perante a comunidade universitária. Na sociologia do conhecimento, a contenção do desvio social e o correspondente processo de aniquilamento simbólico ou real do inimigo (usando as categorias de P. BERGER e T. LUCKMANN) se dá pelos mais variados e difusos mecanismos de controle social, da violência propriamente dita à execração simbólica. O reitor foi desprezado, achincalhado, mesmo sem denúncia formal, sem processo e sem possibilidade de defesa. Com a espetacularização do processo midiático-penal, de partida ele já estava desafamado, humilhado e condenado. A exposição do acusado à infâmia com o fim de rebaixá-lo, atingir sua reputação, probidade até desacreditá-lo por completo e produziu o desejo do auto-desaparecimento do corpo, fim de todos os tormentos. E se a cada sociedade existe uma forma de suicídio que lhe corresponde, os tempos sombrios vividos no Brasil convidam a uma reflexão sobre o agravamento da tensão social e o correspondente aumento dos mecanismos de controle e do avivamento dos atos de exceção pelo sistema midiático de justiça, capazes de produzir a indefensável execração. O caso do Reitor é gravíssimo, exige investigação e atribuição de responsabilidades que leve em conta o que expressamente está denunciado pela vítima, capaz de discernir perfeitamente a respeito da escolha extrema, deixa registrado o sentimento de impotência e de repúdio a uma realidade que se naturaliza com consequências monstruosas. *O artigo "O suicídio do Reitor: a política de execração pública", de Carol Proner e Juarez Tavares, faz parte do livro/documentário "Em Nome da Inocência: Justiça", organizado pelo ex-deputado Jailson Lima, em conjunto com o desembargador e professor Lédio Rosa de Anbdrade e Sérgio Grazano Fotos: Divulgação