Três saudades, três exemplos

Raquel, Singer e Dona Ivone, que nos deixaram em abril, são forças inspiradoras para a construção do país que haverá de recordar dos que levantaram a bandeira da justiça, da tolerância, da liberdade e da arte, em busca do tempo bom nos dias de tempestade

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Por Chico D'Angelo* Um país disposto a construir um futuro justo e generoso precisa, antes de qualquer coisa, conhecer e honrar a memória daqueles que lutaram para que a terra da fraternidade um dia possa ser realidade. O Brasil perdeu recentemente, neste mês de abril, três personagens da maior relevância: Raquel Solano Trindade, Paul Singer e Dona Ivone Lara. Raquel Solano Trindade, pernambucana do Recife, morou na infância em Duque de Caxias, Rio de Janeiro, e acabou se radicando em Embu das Artes, São Paulo, na década de 1960. Filha do poeta, dramaturgo, ator, cineasta e militante negro Solano Trindade, Raquel foi uma legítima herdeira do legado do pai, criador do Teatro Popular Brasileiro. Folclorista, pesquisadora, intelectual negra, militante da cultura, vigorosa voz na luta contra o racismo e a discriminação da mulher, Raquel deixa um exemplo de perseverança e coragem. Em tempos duros como os que vivemos, sua vida é um farol que há de iluminar horizontes mais promissores. Paul Singer nasceu numa família de pequenos comerciantes judeus em Viena, Áustria. Em 1938, a Áustria foi anexada à Alemanha e a família Singer, para fugir do nazismo, chegou ao Brasil, onde tinha parentes radicados em São Paulo. Singer foi metalúrgico, militou no movimento sindical e estudou economia na Universidade de São Paulo. Fez brilhante carreira acadêmica, sem abandonar a militância. Em 1966, defendeu o doutorado em Sociologia com um estudo sobre desenvolvimento econômico e seus desdobramentos territoriais em grandes cidades brasileiras A tese, orientada por Florestan Fernandes, deu origem ao livro Desenvolvimento Econômico e Evolução Urbana. Cassado pelo AI-5 e aposentado compulsoriamente, em razão de suas atividades políticas, Singer fundou, ao lado de vários intelectuais contrários ao regime militar o CEBRAP - Centro Brasileiro de Análise e Planejamento. Singer foi ainda fundador do Partido dos Trabalhadores, em 1980, incansável estudioso e defensor da economia solidária e um dos criadores da Incubadora Tecnológica de Cooperativas Populares da USP. Dona Ivone Lara foi uma das maiores artistas da história da música popular brasileira. Enfermeira de formação, trabalhou durante anos com a Dra. Nise da Silveira, referência mundial na luta anti-manicomial. Dona Ivone, mulher e negra, sofreu os preconceitos do racismo e do machismo e, apesar do enorme talento, só abraçou a carreira musical depois dos cinquenta anos, aposentada e viúva. Muita ligada ao Império Serrano (foi uma das primeiras mulheres a assinar um samba-enredo, com Os cinco bailes da história do Rio, parceria de 1965 com Silas de Oliveira e Bacalhau), Dona Ivone consagrou-se como compositora de grande sofisticação melódica. Tem seu nome definitivamente marcado na história da cultura brasileira e haverá de ser lembrada pelas gerações vindouras como uma das maiores referências da nossa canção popular. Raquel, Singer e Dona Ivone: três forças do Brasil que nos deixam tristes pela partida, mas confiantes nos exemplos e trajetórias de vida que precisam ser divulgadas. Elas são inspiradoras para a construção do país que haverá de recordar dos que levantaram a bandeira da justiça, da tolerância, da liberdade e da arte, em busca do tempo bom nos dias de tempestade. *Chico D’Angelo é deputado federal pelo PDT-RJ