A volta da queima de livros: Por que eles assustam tanto o bolsonarismo?

O expurgo de obras importantes pretendido por Sérgio Camargo, da Fundação Palmares, reacendeu o fantasma da doutrinação. A Fórum foi ouvir especialistas para saber por que os livros põem tanto medo no atual governo

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A tentativa de retirar obras de uma biblioteca e lançá-las ao lixo de Sérgio Camargo, presidente da Fundação Palmares, reacendeu um velho tema e uma igualmente velha prática que atravessou os séculos: a queima de livros para proteger a população da “doutrinação”, da “má influência” ou do “pecado”.

Segundo Camargo, mais de 300 obras do acervo da Fundação Palmares tinham traços “marxistas, bandidólatras, de perversão sexual e de bizzarias”. Ainda que a iniciativa do feroz bolsonarista tenha sido abandonada, já que a repercussão negativa foi imensa, provocando a manifestação de figuras importantes da área da cultura no país, além de uma decisão da Justiça Federal do Rio de Janeiro, que o proibiu de cometer tal insanidade, a estapafúrdia e criminosa ideia voltou a nos rondar nos últimos dias, depois da revelação de que o juiz federal Cristiano Miranda de Santana, da 5ª Vara Federal Cível de Brasília, endossou numa decisão a intenção de Camargo de se desfazer de obras literárias, mesmo que seu parecer não tenha prevalecido em relação à outra determinação do Judiciário, dada na corte fluminense.

Para compreender a sanha por liquidar livros e obras artísticas que o bolsonarismo vem colocando em marcha no país, a reportagem da Fórum foi ouvir acadêmicos especialistas da História, que falaram um pouco sobre episódios parecidos do passado, sempre ocorridos durante regimes autoritários e sem liberdades democráticas. Eles conectaram alguns pontos que ligam essas práticas ao modelo ideológico radical que eclodiu com a chegada de Jair Bolsonaro à Presidência da República.

Livros sempre preocuparam

Para a historiadora e professora da Unesp Paula Vermeersch, que é doutora em Teoria Literária, com pós-doutorado em História da Arte, os livros são um pesadelo para quem pretende impor uma visão única de mundo.

“Desde sempre os livros trazem diversas visões, diversas opiniões, de diversos autores, de diversas épocas. E é importante lembrar que o mundo dos livros é o mundo das visões dissonantes, dos debates, da construção do conhecimento e essa construção é dialética. Por isso, muitos regimes são, naturalmente, contra isso, por princípio”, começou explicando.

Para ela, determinadas obras, com recortes específicos do Brasil, como as do período literário do Romance de 30, com forte apelo político, ou ainda as publicações de autores que formam a base do pensamento social brasileiro, acabam por afrontar o entendimento simplista, reducionista e distorcido que o bolsonarismo tem do Brasil e de sua formação como nação.

“Essas obras são uma ameaça ao pensamento dessa turma. Tome como exemplo as obras da literatura brasileira da década de 30. São obras que discutiram o Brasil, discutiram aspectos da vida nacional. Um romance como os de Graciliano Ramos, ou ainda outras publicações de autores como por exemplo Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Júnior, que foram centro do debate intelectual daquela época, mostram pra gente que o Brasil é muito mais complicado do que parece”, disse.

Paula Vermeersch segue falando sobre essa visão resumida e infantilizada que a doutrina encabeçada pelo presidente prega.

“O bolsonarismo faz tábula rasa dos problemas da nação. O próprio Bolsonaro já disse coisas como “se a Ditadura Militar tivesse matado mais, os problemas do Brasil estariam resolvidos”. Autores como esses que citei antes, especificamente, são uma ameaça ao bolsonarismo, até porque o bolsonarismo quer que todo mundo acredite que o Brasil é muito mais simples do que ele realmente é. Foi o esforço desses autores em investigar a formação social, o papel da escravidão, aspectos da vida econômica, enfim, que trouxe à tona uma visão complexa do nosso país. No caso da literatura, se a gente pensar no Graciliano Ramos... Sua obra traz muitos dissensos, consensos e passos errados, luzes e sombras da realidade e do cotidiano brasileiro de uma determinada época. É algo como tentar apagar com acetona todas as obras do Portinari”, esclareceu.

Na visão da acadêmica, o Estado tem que se manter alerta para agir contra esse tipo de proposta desarrazoada, impondo limites, para que ideias assim nunca sejam colocadas em prática, em que pese todo o descaso com o qual as autoridades vêm agindo diante da destruição do patrimônio artístico-cultural brasileiro.

“O Estado é o responsável pela memória da nação. Ponto. E isso é um fato. É inacreditável que agora, pessoas de dentro do poder Judiciário duvidem de coisas assim, do básico. Essa ideologia está tão entranhada em determinados segmentos que a destruição do Museu Nacional não causou nada nessa gente. A principal instituição de salvaguarda da memória de nossa nação queimou, nós perdemos um acervo incalculável, era a nossa biblioteca de Alexandria. Como o bolsonarismo é um programa de destruição do Estado brasileiro, para que o país se torne essa colônia empobrecida, que fornece uma mão de obra quase escrava para o capital internacional e para o neoliberalismo, fica realmente parecendo que não há nação, que o Estado tem que ser mínimo, enfim, é uma selvageria, uma barbárie”, desabafou.

A professora da Unesp ainda lembrou que, no caso dos nazistas, que também queimaram muitos livros, algumas lideranças do regime, de forma hipócrita, pregavam a destruição dessas obras literárias ou artísticas, mas davam valor pessoal a elas, escondendo exemplares para tê-los como artigos privados, diferentemente dos bolsonaristas que parecem realmente não compreender o tamanho da quimera que é proceder de tal forma.

“Os nazistas queimavam livros e faziam cerimônias em praça pública, mas por outro lado eles mantinham escondidas as obras dos artistas daquilo que eles chamavam de arte degenerada. Evidentemente isso era uma hipocrisia, mas no caso dos bolsonarista existe essa crença real de que tem que queimar tudo, acabar com tudo, acabar até com recursos naturais, como a Amazônia. E o interessante é que os livros são recursos, são recursos discursivos, de memória, que servem de base para as novas gerações”, finalizou.

A “ameaça” segue viva

Cesar Agenor Fernandes da Silva, professor da Universidade Estadual do Centro Oeste (UNICENTRO-PR), que é doutor em História pela Unesp, entende que essa “ameaça” dos livros e da imprensa, registrada inúmeras vezes ao longo da humanidade, segue firme ainda em ideologias autoritárias contemporâneas, mesmo com todos os recursos para evitá-la na atualidade. Ele começa explicando quando manifestações desse tipo ocorreram no passado, até que se chegasse às intenções bolsonaristas do presente.

“Quando os livros surgem lá no século XV, na forma como os conhecemos hoje, eles passam a ser vistos pelos detentores do poder estatal como um perigo. No Antigo Regime, período que vai do século XVI até a Revolução Francesa, os livros sofriam com a censura. No caso do mundo português, havia censura do Estado e da Inquisição, da Igreja. No Brasil, a livre publicação de livros e jornais sem censura só foi ocorrer em 1821 porque havia um medo, um receio que ideias, chamadas de ímpias e sediciosas, poderiam afetar a população e levar a revoltas contra o poder vigente”, contextualizou.

O historiador da UNICENTRO-PR explica que com o advento dos ideiais iluministas, uma mentalidade de liberdade ecoou fortemente pelo Ocidente a partir do século XVIII, mas que em vários pontos da História, inclusive aqui no Brasil, a repressão ao pensamento e a censura voltaram com força.

“O Iluminismo veio trazer uma perspectiva de que era necessário que houvesse impressa livre e livre acesso aos livros e textos. Aí, as sociedades democráticas do século XIX e XX adotaram como princípio a liberdade editorial, da livre circulação de ideias. Mas em situações mais autoritárias, a imprensa e a literatura, os livros de filosofia e de ciências sociais em geral, sofreram com a censura. Aqui no Brasil, na Primeira República, que teve seu início em 1889, com a Proclamação da República, e que acabou com a Revolução de 1930, de Vargas, qualquer texto que fizesse menção à monarquia, defendendo-a, era censurado. O regime republicano brasileiro, que tinha uma inspiração liberal, que tinha lei de imprensa, de liberdade de expressão, limitava essa liberdade de expressão se você fosse defender o antigo regime. No período Vargas, sobretudo no Estado Novo, essa censura foi ainda mais ampliada, principalmente com o Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP). Isso só vai cair com a volta de um ambiente democrático com o fim do Estado Novo, em 1945, mas que acaba em 1964 com o golpe militar. Já na Ditadura Civil-Militar volta um forte cerceamento dessas liberdades, uma vez que jornais, livros, reportagens, filmes, peças de teatro, tudo, passava pelo crivo da censura, limitando muito a circulação de ideias”, contextualizou.

O professor entende que é necessário reunir esforços para frear esse tipo de iniciativa, como a de Sérgio Camargo, sob pena de termos que dar satisfação para o Estado sobre aquilo que lemos, como já aconteceu no passado.

“Se no século XVIII você quisesse adquirir um livro no Brasil, era necessário pedir autorização para o Desembargo do Paço e para o Tribunal Sacro, até porque você precisava saber se podia ou não ler aquela obra, se ela estava ou não no index expurgatorius. No Brasil do século XXI, tentar expurgar uma linha de pensamento é algo absolutamente inadequado, ilegal, além do que não faz sentido. Imaginar que ler um livro de Marx, ou de um autor marxista, possa afetar a sociedade é absurdo. Deve haver pluralidade de pensamento”, comparou Silva.

Os arroubos ideológicos de Olavo de Carvalho, um astrólogo autointitulado filósofo que serve de guru a Bolsonaro, seus filhos e seguidores também foi lembrado pelo doutor em História, que fez questão de ressaltar o caráter autoritário e delirante do seu pensamento, marcado por evidentes teorias conspiratórias e por um estado permanente de guerra a qualquer outra maneira de pensar, o que estimula “elementos menores” do bolsonarismo, como Sérgio Camargo, a tomarem atitudes como a do expurgo de livros da Fundação Palmares.

“Uma face interessante do bolsonarismo é o olavismo. Muitas das ideias do Olavo de Carvalho têm uma tese de que toda a educação, toda a academia, toda a imprensa são dominadas por uma esquerda que está promovendo uma guerra cultural para dominar o mundo. Uma grande esquerda que é gramsciana e que trava uma guerra cultural para dominar um mundo. E isso aplica-se a todos os veículos de imprensa, como o próprio presidente diz. E nós sabemos, e isso é muito claro, que há uma pluralidade na imprensa brasileira, e que inclusive as linhas editorias predominantemente não são de esquerda. É interessante a gente pensar que um elemento menor dentro da estrutura estatal do bolsonarismo está tentando implementar, ou destruir, tudo que existe até então, até porque esse é um governo da destruição. Achar que esses livros podem ofender e que eles são parte dessa guerra cultural, enfim... E nessa mentalidade, se é uma guerra, nós precisamos destruir as armas do inimigo”, concluiu.

Integralismo já procurava ser pensamento único

A utilização de obras e publicações específicas para a doutrinação, assim como o combate às obras “proibidas”, também eram correntes no Integralismo brasileiro, movimento ultranacionalista, superconservador e notadamente católico que conseguiu relativa relevância política nos anos 30 do século passado.

Para Lilian Tavares de Bairros, historiadora e detentora de um título de mestrado da PUC-SP no qual estudou as relações do Integralismo com o mundo feminino, há uma relação íntima entre a doutrinação autoritária do grupo e as obras e veículos impressos, que serviam como propagadoras da ideologia, à época alinhada a movimentos semelhantes da Europa, como o fascismo italiano e o nazismo alemão.

“Todo integralista tinha a obrigação de ler as obras recomendas, era uma doutrinação ideológica muito forte. No livro de Plínio Salgado, por exemplo, ‘A Mulher no Século XX’, ele vai ditando as regras do que se espera de uma mulher naquela concepção, naquele período. Os integralistas usavam os jornais não só para convocar para as reuniões, mas também para convocar mais adeptos para suas fileiras. Em 1937 eles até copiaram uma revista feminina de grande circulação e a converteram numa revista integralista, sempre impondo o que uma mulher integralista deveria fazer e como deveria ser”, explicou a pesquisadora do movimento.

Até as fake news já davam as caras nas publicações de mais de 80 anos atrás, adaptadas ao contexto da imprensa da época.

“Esses veículos de imprensa, com profundo teor ideológico, serviam até ao propósito de inflacionar os números, porque veja só, em muitos artigos publicados nesses veículos eles chegavam a propagar a informação de que tinham mais de um milhão de adeptos no movimento integralista no Brasil, e hoje é possível saber que isso era mentira porque esses números eram dados pelos próprios integralistas”, revelou Lilian.