471 anos depois, o pesadelo de bolsominions em Ruen: seria o "mito" um mau selvagem?

Na coluna de hoje, Estevan Mazzuia relembra dois desfiles de 1994 que narraram a exibição de nativos brasileiros à corte real francesa e traça um paralelo com uma improvável repetição do acontecimento usando nativos atuais.

Foto: YouTube (reprodução)
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Por Estevan Mazzuia *

Esta semana, meu oráculo desafiou-me com uma efeméride exótica: em 13 de abril de 1519, nasceu, em Florença, Catarina Maria Romola di Médici que, aos 14 anos de idade, se casaria com Henrique, o segundo filho de Francisco I, e da Rainha Cláudia, tornando-se, em 1547, rainha da França.

Ingenuamente, acreditava que eu jamais pudesse encontrar relação entre a rainha francesa e nosso carnaval. Sabe de nada, inocente! Por falta de um desfile, falarei logo de dois, conectados por uma série de curiosas coincidências.

Sigamos com os prolegômenos...

Em 1549, em visita a Lyon, no sul da França, Henrique e Catarina foram recebidos com grande festa, como era costume, para recepcionar soberanos. Ruen, no norte, traçou planos para a realização de uma festa ainda maior em 1º de outubro de 1550, ocasião da visita real por ali: convocou seus marujos a buscar nativos brasileiros, para dar um profundo toque de inovação aos festejos.

Os normandos já tinham relativa penetração em terras tupiniquins e, muitos deles, inclusive, conheciam o idioma tupi. Não foi difícil convencer 50 pessoas, entre Tabajaras e Tupinambás, a encararem os 20 dias de navegação até o solo francês.

Patrocinada por comerciantes e armadores de Ruen, a ideia também tinha como objetivo fomentar alianças, em prol de uma colonização "humanitária", dentro do projeto civilizatório imperialista francês.

A encenação dos pitorescos costumes indígenas, seus hábitos de guerra, caça, pesca e dança, suas alegrias e a venda de madeira aos europeus, inclusive, ocorreu às margens do Rio Sena, que corta a cidade, e contou com a presença de duas naus e 250 marujos fazendo figuração, nus, como os nativos do Novo Mundo.

Cabanas foram erguidas e macacos, marmotas e saguis, levados do Brasil, subiam nos galhos das árvores francesas.

Os franceses ficaram tão fascinados com o que viram que pediram bis e ganharam nova encenação no dia seguinte.

O evento contribuiu, ainda, para que Montaigne escrevesse sobre a pureza de costumes do “bom selvagem”, conceito que seria popularizado, anos depois, por Rousseau.

O que os franceses jamais poderiam imaginar é que, em 1994, essa história seria tema de duas escolas de samba para o carnaval carioca. E aqui, aproveito para diferenciar “tema” de “enredo”, que nada mais é do que a abordagem específica dada ao tema. Os enredos tinham pequenas divergências em seu desfecho.

As escolas que levaram a festa em Ruen para a avenida foram a Imperatriz Leopoldinense, que já havia sido campeã do grupo principal em 1980, 1981 e 1989, e que vinha do vice-campeonato de 1993, e o Império Serrano, campeão em nove oportunidades, mas que vivia uma fase ruim, voltando ao grupo principal após dois anos de ausência, em virtude do rebaixamento em 1991.

Agora, as deliciosas coincidências (além do tema em comum, é claro):

1 – o Império Serrano é a escola-madrinha da Imperatriz Leopoldinense;

2 - a carnavalesca da Imperatriz, Rosa Magalhães, havia conquistado apenas um título, até então: em 1982, e pelo Império Serrano. Justamente a última conquista da escola da Serrinha;

3 – Cid Camilo e Sanclair Boiron, carnavalescos do Império Serrano, haviam sido alunos de Rosa Magalhães na Escola de Belas Artes.

A relação entre os carnavalescos deu margem a elucubrações sobre a coincidência temática mas, até onde se sabe, tudo não passou mesmo de mera coincidência.

Ambas desfilaram no domingo de carnaval, mas as coincidências pararam por aí.

Segunda escola a desfilar, o Império contou “Uma Festa Brasileira”, fazendo um paralelo entre a recepção Real em Ruen e nosso carnaval. Decidida a provar que seu lugar era no grupo principal, a agremiação de Madureira fazia um desfile digno, até que problemas com alegorias afundassem a nau verde-e-branca.

A comissão de frente, coreografada pelo médico Carlos Alberto Machado, conquistaria o Estandarte de Ouro naquele ano, o único da história imperiana no quesito. E olha que a comissão de frente da Imperatriz, comandada por Fábio de Mello, é lembrada até hoje pela ágil coreografia de seus integrantes, com leques verde-e-dourado que eram abertos e fechados em impecável sincronia com os passos dos bailarinos.

A conquista imperiana é atribuída à malandragem de Machado, que improvisou uma coreografia em plena avenida, após adereços da fantasia (uma espécie de maracas indígenas) de Henrique II começarem a se partir. O coreógrafo fez com que o desastre parecesse calculado, ludibriando os votantes com a boa e velha malandragem carioca.

Impecável, a bateria também levou o Estandarte de Ouro, embalada pelo excelente samba de Lula, Zito e Beto Pernada, puxado por Roger da Fazenda:

“Que zoeira, que zoeira

Tem batuque na corte

Dia e noite, noite inteira

O novo mundo

Mostra a arte em brincadeira”

Dona Olegária dos Anjos, a primeira destaque do carnaval carioca, representava Catarina de Médici, prometendo que seria o último de 44 anos na função. Promessa que jamais cumpriria, até seu falecimento, em 2012.

Infelizmente, dois carros quebraram ainda na concentração, bloqueando a entrada de outros que vinham atrás, e a escola infringiu o regulamento, ao não apresentar o número mínimo de alegorias, sendo punida com a perda de cinco pontos.

Para piorar, uma das que entraram quebrou no meio da avenida. Alas que vinham atrás começaram a passar por ela, para evitar a formação de buracos, mas comprometendo todo o desenvolvimento do enredo. E destaques e composições, que viriam sobre os carros que não entraram na Sapucaí, atravessaram a avenida no chão, de forma improvisada e sem qualquer sentido dentro do enredo.

Em meio ao caos instalado, a bateria posicionou-se de forma equivocada na dispersão da Praça da Apoteose, comprometendo o escoamento dos componentes.

Com apenas cinco notas máximas, entre 30 possíveis, a escola teria ficado em penúltimo lugar. Caiu para o último lugar, com a punição, e precisou contar com a atuação política de seu presidente, Jamil “Cheiroso”, junto à LIESA, que resolveu cancelar o rebaixamento de duas escolas, previsto no regulamento daquele carnaval.

Já a Imperatriz Leopoldinense, por sua vez, ficaria na extremidade oposta da tábua de classificação, conquistando o carnaval naquele ano, com os barroquismos de Rosa, impecável nos detalhes e no acabamento das fantasias e alegorias, em contraste brutal com a escola-madrinha. A agremiação encerrou a noite de domingo, com o enredo “Catarina de Médicis na corte dos tupinambôs e tabajeres”

Um título indiscutível, mas sem promover o êxtase nas arquibancadas que ocorrera em 1992, com Estácio de Sá, e 1993, com o Salgueiro. Seria o primeiro dos carnavais marcados por extrema qualidade técnica, e pouca comunicação com o público, resultando no bicampeonato em 1995 e no tricampeonato de 1999/2000/2001, e no apelido de “a certinha de Ramos”, em alusão ao bairro onde fica a quadra da escola, na Zona da Leopoldina.

Como curiosidade, as fantasias da bateria haviam sido confeccionadas por presidiários, que ganham redução de suas penas em troca da mão-de-obra.

Com 26 notas máximas, a escola ficou três pontos e meio à frente da segunda colocada, o Salgueiro, campeão do ano anterior. Foram penalizados, em meio ponto, o enredo, a evolução e o casal de porta-bandeira e mestre-sala, formado por Maria Helena e Chiquinho, mãe e filho. Em um ponto, o samba de Alexandre da Imperatriz, Alvinho, Aranha e Márcio André, puxado por Preto Joia:

“E lá nas margens do Sena / O Brasil a imagem

De nudez e coragem / Índios marujos, enfim

Misturavam-se assim / Na mais linda paisagem

E a plateia no bis / Com a Imperatriz a delirar

Na França o bom selvagem / Deu o tom de igualdade

Fraternité, liberte”

A verde-branco-e-ouro de Ramos finalizava seu enredo, portanto, sugerindo que os ideais da Revolução Francesa teriam sido inspirados na encenação dos Tabajaras e Tupinambás, dois séculos antes, em Ruen.

Não pude deixar de imaginar como seria se hoje os franceses levassem 50 “bolsominions” para encenar seus costumes, às margens do Sena, em celebração aos 502 anos do nascimento de Catarina de Médici.

O que os franceses pensariam, ao ver aquelas 50 pessoas, vestindo camisas da seleção brasileira de futebol, com suas dancinhas de passo marcado exaltando o “capitão” e cantando:

“Por onde ele passa, arrasta a massa / Eu vim de graça ninguém me mandou

Levante a bandeira nação brasileira / e avisa que o mito voltou

Quiseram calar a democracia / Mas quem é valente sempre se levanta

Se Deus é por nós quem será contra nós / Brasil acima de tudo e Deus acima de todos”

De repente, uma parte daquela gente começa a derrubar as árvores do entorno e a jogar lixo no Rio Sena; outra parte, fazendo gestos de “arminha” com a mão, começa a correr atrás de quem estiver usando vermelho na plateia; uns batem em mulheres, outros matam crianças... A cada realização, olham para o céu e, apontando os dedos indicadores para as nuvens, gritam: “em nome de Jesus!”.

Alguns chegam até a chorar de emoção.

A realidade brasileira seria um pesadelo em Ruen, jogando por terra o “mito do bom selvagem”.

E, definitivamente, não teria bis.

P. S. A coluna de hoje é dedicada às mais de 350 mil vítimas da falta de combate à Covid-19 no Brasil e a dois grandes nomes do Império Serrano: Aluízio Machado, vencedor da disputa de samba-enredo imperiano em 14 oportunidades, incluindo 1982 (“Bum Bum Paticumbum Prugurundum”), e Dona Ivone Lara, a primeira mulher a assinar um samba-enredo e a fazer parte da ala de compositores de uma escola. Ele completa 82 anos hoje. Ela completaria 99, se não tivesse nos deixado, em 16 de abril de 2018.

*Estevan Mazzuia, o Tuta do Uirapuru, é biólogo formado pela USP, bacharel em Direito, servidor público e compositor de sambas-enredo, um apaixonado pelo carnaval.
**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.